terça-feira, 24 de novembro de 2009
O exército dos invisíveis em fuga da miséria
O exército dos invisíveis em fuga da miséria
Os jornais fazem a crônica da crise econômica mundial como mero confronto de estatísticas, sobretudo financeiras. Recuperação em 'L' ou oscilação recessiva em 'W'? No tabuleiro dos números digitais, depois do fundo do poço, a contabilidade flerta com a recuperação. Mas o estrago humano está longe de cicatrizar. Vidas rasas fulminadas por massas de forças invisíveis condensadas em movimentos fulminante de capitais especulativos continuam a perambular pelas bordas da globalização sem um fundo do poço à vista. O IHU de hoje traduz um artigo do La Republica que cuida de jogar um pouco de luz nessa ciranda dos desesperados.
Daniele Mastrogiacomo - La Repubblica
Data: 24/11/2009
Eles chegam do Zâmbia, do Zimbábue, da Somália e de Guiné-Bissau. Só em Joanesburgo, são quase quatro milhões de clandestinos que constróem novas barracas e esperam por um novo Eldorado. Mas tudo não passa de uma miragem. A reportagem é de Daniele Mastrogiacomo, publicada no jornal La Repubblica, 23-11-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto, para o IHU Online.
Passaram-se 14 meses, mas ainda estão ali. São dois mil: jovens, magros como fios, olhos vivazes que olham ao redor, em perene movimento em busca de um trabalho, de uma troca furtiva, de um pequeno comércio que os faça comer ainda hoje. E depois muitas mulheres. Também elas jovens, deformadas por maternidades precoces e contínuas, o último neonascido agarrado ao seio, um saco de juta sempre cheio de objetos impensáveis, recolhidos por aí.
Muitos se estabeleceram ao longo das grades que protegem a igreja metodista e por trás das grades expõem suas mercadorias. Frutas secas e frescas, verduras, grãos, cartões telefônicos, canetas, cadernos, blocos de papel. São os invisíveis, os clandestinos, parte daqueles quatro milhões de imigrantes que fugiram dos países que caíram no precipício da inflação e que estão assediados pela miséria. Zimbábue, Zâmbia, Moçambique, Somália, África central para baixo, até a República Democrática do Congo, Guiné-Bissau quase transformada em narco-Estado.
Em junho de 2008, estiveram no centro de uma revolta que semeou sangue e morte: dezenas de milhares de sul-africanos, também eles imigrantes tempos antes, colocaram sob ferro e fogo os novos distritos de Joanesburgo em uma guerra entre desesperados que provocou cerca de cem mortos e quase dois mil feridos. Isso até o governo de Jacob Zuma decidir hospedá-los e inseri-los no circuito dos regulares.
A realidade, uma vez terminada a campanha eleitoral, tornou-se mais complicada. Porém, a crise econômica mundial, limitada aqui pelo aumento dos preços das matérias-primas, atingiu as finanças públicas. O desemprego aumentou, a raiva e a frustração entre as camadas mais populares começaram a explodir. Tudo ficou como antes. O Zimbábue não consegue se governar. Assim, o país mais ligado e dependente da África do Sul, considerado tempos atrás como o celeiro do continente, continuou o seu inexorável declínio, entre preços nas alturas e uma repressão brutal. Jacob Zuma continua mediando com um projeto sempre mais evidente: sustentar financeiramente o Zimbábue e englobar um território que não tem mais nenhuma forma de governo.
A principal igreja batista da cidade se encontra no coração do centro, que foi quarteirão da cidade financeira e hoje se transformou no gueto de Joanesburgo. Ao longo da via principal, milhares de homens e mulheres compram e vendem de tudo. Grupos de rapazes e moças se saúdam, gritam, levantam as mãos, assoviam, imersos em uma espécie de mercado alegre e colorido. Tudo aqui é irregular. As pessoas que aqui vivem, os objetos de troca. Alguns vigias estão localizados nas esquinas da rua e nos becos laterais. Sinalizam a chegada da polícia que, uniformizados ou em trajes comuns, avança a pé, munida de cacetetes e luvas de borracha. As pessoas são paradas ao acaso, empurradas contra um muro, revistadas.
Outros são parados com o carro, o porta-malas aberto, os chassis controlados. A cada tempo, o barulho contínuo é interrompido por gritos mais fortes. Rapazes fogem perseguidos por outros, mais velhos. As pistolas ficam nos bolsos, enfiadas nas calças e escondidas pelas camisetas. As armas despontam de noite, quando esse enxame humano se retira para as casas e para os apartamentos ocupados. Os imigrantes se mantêm à distância. Ficam na guarda do seu pequeno território, que o bispo John McCann, um irlandês branco há 40 anos na África do Sul, lhes concedeu. Ao longo das escadas que levam até o terceiro piso, as pessoas se ajeitam da melhor forma que podem. Diante da grande sala onde se celebra a missa, quatro moças e dois rapazes treinam passos de dança.
Outros assistem fascinados. Um rádio com o som estridente dispara as velhas canções de Michael Jackson. Outros grupos mais numerosos discutem em círculos. Há um cheiro acre de urina misturado com lixo. Os muros estão descascando, algumas partes soltas cedem negligentemente.
O escritório do bispo encontra-se sob o telhado, fechado por uma porta e por uma grade que é trancada todas as noites. A sala de espera é uma esquina do corredor. Sobre dois sofás, sentam-se há horas dezenas de mulheres e de homens, cada um com sua história de misérias e de violências, um saco, uma bolsa, documentos protegidos por sacos plásticos rasgados e sujos. Buscam um trabalho, uma recomendação, um canto onde dormir, remédios para doenças crônicas que se arrastam há anos. Uma mulher sorri, canta e pronuncia frases que os outros deixaram de escutar. "Somos 2.200 – diz-nos o bispo – e a cada dia aumentam. As pessoas vão se falando, telefonam para o Zimbábue, convidam amigos e parentes para vir para Joanesburgo. Lá nem se consegue mais comer. Esta é a última praia ou o novo Eldorado, depende do ponto de vista. Mas todas essas pessoas são uma bomba pronta a explodir de novo".
Fonte: www.cartamaior.com.br
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