O asterisco sombrio do Mundial de 78
O Mundial de 78 é um daqueles títulos que sempre virá com um asterisco. Tudo porque o futebol ficou, naqueles anos, a serviço de um planejamento violento
“Me parece que soy
De la quinta que vio el Mundial 78
Me tocó crecer viendo a mi alrededor
Paranoia y dolor
La moneda cayó por el lado de la soledad
Otra vez…”
(Andres Calamaro, Crimenes Perfectos)
O sonho argentino de levantar um Mundial se concretizou no inverno de 1978, entre uma e outra noite fria e escura. Foi o primeiro título portenho, ansiado desde a Copa de 30, quando o selecionado argentino atravessou o Rio da Prata sem a taça, que ficara com os uruguaios em Montevideo. O Mundial de 78, porém, é um daqueles títulos que sempre virá com um asterisco – em qualquer registro, histórico ou literário, ou ainda em uma narrativa familiar, de vô para neto, a conquista será contada com um “mas”. Tudo porque o futebol ficou, naqueles anos, a serviço de um planejamento violento. Ou, se este jogo possui mesmo um caráter inteiramente independente do contexto, ao menos foi o elemento secundário da repressão que caía sobre a Argentina.
A Copa do Mundo – ou simplesmente o “Mundial”, nos países de língua castelhana – foi organizada pelo regime militar que desde 1976 controlava política e, é evidente, militarmente todo o território argentino. Um ano antes do acontecimento esportivo, o impacto da repressão havia se acentuado. Em 77, a estratégia mais desumana de liquidar com as ameaças subversivas entrou em vigor – a prática se tornou o símbolo do poderio militar na Argentina, ilustrando a ditadura provavelmente mais cínica que castigou a América Latina naqueles anos em que as armas e os tanques estavam em alta. Eram os voos da morte: neles, os prisioneiros eram primeiramente dopados e empilhados em aviões da força aérea argentina. Por uma hora, os voos se distanciavam da costa argentina. E então os presos eram jogados ao mar – a maior parte ainda com vida.
Segundo o incompreensível Adolfo Scilingo, ex-militar argentino que havia participado de algumas destas expedições, cerca de quatro mil e quatrocentas pessoas foram eliminadas nos voos da morte. Scilingo é um dos milicos que mais esteve próximo dos holofotes: tudo porque, sete anos após o fim do governo militar, tomado por uma suposta loucura desesperadora, resolveu contar tudo o que sabia. Delatou companheiros de massacre e desvelou os detalhes mais sórdidos da última viagem de muitos dos tidos como subversivos. Ele conta, em uma entrevista para a Rádio Onda Cero, em outubro de 1997, que o sistema de execução aérea tinha o apoio da igreja argentina, por ser uma forma “cristiana y humanitária” de separar o joio do trigo. Entre as particularidades dos afogamentos, o ex-capitão conta que um médico viajava junto com os presos, para controlar as doses de anestesia – mas que ele se retirava da cabine para não violar o juramento hipocrático. Enquanto isso, Kempes, Passarella e Fillol se preparavam para o grande evento de logo mais.
Para amenizar as contestações que surgiam, ainda por parte de uma parcela bastante reduzida da população, os militares decidiram por erguer um Mundial naquela Argentina banhada por águas já sangrentas. A ideia era simples e explorava o que havia de mais óbvio nos eventos massivos: a alienação do povo, que estaria ocupado demais com o “sonhar em ser campeão” para buscar as informações desencontradas que boa parte da imprensa omitia nos grandes jornais. Mas a realização do Mundial perigava, muito porque, na Europa, os métodos rudimentares empregados por um governo ainda mais primitivo não era visto com olhos omissos. Da França e da Holanda partiram os protestos mais fortes – mas chegou o “sim” para a Argentina, e uma das versões da história indica a participação de um brasileiro notável na autorização.
Quando da realização do Mundial, o presidente da FIFA era o carioca João Havelange. Segundo a boataria causada pela pressão europeia, o Mundial poderia cair no Brasil em razão do grande campo de concentração que havia se tornado a Argentina. A autorização, segundo o jornalista Pablo Llonto, que até livro publicou sobre o tema, só veio a partir de uma libertação. O brasileiro Paulo Antônio Paranaguá, filho de diplomata, penava nos porões portenhos desde 1977, assim como a sua namorada, ambos presos pelo exército. O jornalista aponta que Havelange fechou os olhos para o Mundial após a liberdade de Paulo Antônio, que serviu como moeda de troca na negociação com os militares argentinos. Confirmada a participação, era a hora de levantar canchas, esparramar dólares e criar um cenário majestoso – passando por cima de tudo, como era a orientação primária da ditadura.
Programado desde 1976, o Mundial teria o seu comitê organizador encabeçado por Omar Actis e Carlos Alberto Lacoste. O primeiro, que defendia uma Copa sem devaneios financeiros, teve as ideias atoradas pela raiz: a caminho de uma entrevista coletiva na qual dissertaria sobre os planos para o Mundial, Actis foi assassinado – primeiramente, a baixa foi creditada às guerrilhas de esquerda, mas as indicações mais fortes dão conta de que as desavenças entre os organizadores é que afastaram Omar Actis do comando daquele Mundial. Solto para lavar os seus dólares, Lacoste tratou de, primeiro, erguer três canchas: o estádio Malvinas Argentinas, de Mendoza, o Olímpico de Córdoba e o José María Minella, de Mar del Plata. Mais além dos que nasceram do vazio, outros palcos foram remodelados – o Monumental de Nuñez, do River, situado a três quadras de uma delegacia onde prisioneiros eram torturados, o José Amalfitani, do Vélez, e o Gigante de Arroyito, do Rosario Central.
Estruturados os estádios, cabia então ao “Flaco” César Luis Menotti a armação do escrete argentino que iria a campo com missões incertas: pelear por vencer o Mundial e elevar ao real o sonho popular ou mostrar um posicionamento contrário às atrocidades que ocorriam no país e que se utilizavam daquela jaqueta, a celeste e branca tão cultuada, para assegurar a popularidade do regime com a população. A verdade é que era uma tarefa complexa demais para chutadores de pelota – boicotar uma ditadura era uma ilusão para uma classe historicamente alienada, mesmo na Argentina. Além do mais, havia o fervor popular, a responsabilidade de sair campeão como local e a oportunidade, talvez única, de gravar o nome na memória da maior competição futebolística. O que os atletas de 78 dizem é que marcar gols, frear os atacantes adversários ou gambetear naquelas jornadas são significava compactuar com o regime – era simplesmente cumprir um papel há muito designado. E que nem os malditos anos de exceção poderiam alterar.
É o que afirmava o atacante Leopoldo Luque, que em 1978 defendia o River Plate: “¿A quién no le hubiera gustado jugar y salir campeón mundial con un gobierno democrático? Pero yo tiraba paredes con Kempes y Bertoni, no con la Junta”. Se julgar os jogadores parece forjar uma conscientização apenas utópica, o mesmo não se pode direcionar a Menotti. Ele, que assumia a condição de homem de esquerda, politizado e oposicionista do governo militar, não fez nem menção de dirigir o esperado discurso aos generais. Cabia a Menotti explicitar para a imensa torcida argentina a independência daquela seleção – mas, por temer as consequências, o cargo ou por estar também dopado pela fantasia mundialista, não abriu a boca. Jorge Valdano, ex-jogador e treinador argentino, opina sobre Menotti: “en defensa de Menotti debo decir que yo oí las palabras que él dirigió a los jugadores antes de la final. El dijo: ‘Nosotros somos el pueblo, pertenecemos a las clases perjudicadas, nosotros somos las víctimas y nosotros representamos lo único legítimo en este país: el fútbol. Nosotros no jugamos para las tribunas oficiales llenas de militares sino que jugamos para la gente.”
Se para Menotti e os jogadores o sentimento em relação ao desempenho naquela Copa já não era dos mais claros, para alguns torcedores o torcer incondicionalmente para a Argentina era uma tarefa que exigia reflexão prévia. Um dos relatos mais interessantes é o do jornalista Roberto Benedetto, que escreve sobre o Mundial na sua perspectiva de hincha. Benedetto esteve em Rosario na primeira partida da segunda fase, quando a Argentina enfrentaria a Polônia. Pendendo entre a decisão de ignorar totalmente a partida, o apoio para uma seleção que representava, apesar de tudo, um país muito maior do que o contingente dos quartéis, e a torcida para a seleção européia, como forma de protesto, o jornalista decidiu por soltar o grito dos inconformados: as ofensas dirigidas aos milicos das tribunas, no entanto, não encontraram coro entre os 40 mil torcedores – Videla, o presidente da época, e a alta cúpula do governo, presentes na partida, receberam até aplausos.
Após o absurdo presenciado no Gigante de Arroyito, Benedetto decidiu expurgar o Mundial dos seus pensamentos – mas quando a maldita Copa surgiu na cabeça, ele conta que desejava a eliminação imediata da Argentina, para que aquele torpor massivo enfim tivesse o seu final. Como se sabe, a partir de cada desarme preciso de Passarella e dos gols infindáveis de Kempes, a Argentina alcançou a finalíssima, na qual bateu a Holanda que não tinha Cruyff: o camisa 14 recusou-se a viajar ao se interar da situação política no sul da América. Houve a festa inevitável pelas principais ruas de Buenos Aires, La Plata, Avellaneda, Salta e os milicos repetiam insistentemente que a realização do Mundial havia sido magistral: os argentinos haviam vivenciado a maior competição futebolística da história.
Mas o golpe doeu fundo demais e, ao acordar daquela anestesia – tão semelhante à aplicada nos vôos da morte – o argentino se envergonhou da sua primeira taça. Porque no troféu não só a conquista do campeonato de futebol aparecia. Ao observar com atenção os detalhes do caneco, surgiam as acusações logo confirmadas da tortura, dos desaparecimentos, dos vôos derradeiros e inclusive da morte pura e simples. Agora, a morte não era a mesma que poderia ser superada nas canções dos clubes de Buenos Aires – “ni la muerte nos va a separar, en el cielo nos vamos a encontrar” ou a intransponível da cantiga do Cerro de Montevideo: “y la muerte nos va a separar, pero será la muerta y nada más”. A morte agora não era o ingrediente dramático de uma canção da barra-brava – e sim o aspecto mais vergonhoso do Mundial de 78.
Iuri Müller é jornalista e colunista do blog Impedimento, Solamente futebol sul-americano.
Fonte: http://www.brasildefato.com.br/
terça-feira, 19 de janeiro de 2010
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