quinta-feira, 16 de junho de 2011

A revolução como estado de consciência alterada - por Henrique Carneiro

A revolução como estado de consciência alteradaUm dos aspectos mais notáveis da onda revolucionária que se espalha desde o início de 2011 é seu caráter epidêmico. Essa palavra, de origem grega, quer dizer “sobre o povo”, como algo que atinge a todos de maneira praticamente involuntária, algo superior até mesmo a uma “vontade” particular ou egoística que se eleva como um arrebatamento, uma força superior que muda completamente a vida cotidiana, rompe a rotina dos dia-a-dia e cria um amálgama moral entre as pessoas. É uma forma de contágio, portanto, lembrando que antes da ideia de contaminação por uma doença, a noção de epidemia tinha um sentido dionisíaco, pois era assim que se denominava na Grécia antiga a conversão coletiva aos ritos convulsivos e ruidosos do deus da ebriedade.

É como uma embriaguez, portanto, que se manifesta esse contágio epidêmico da disposição revolucionária, cuja propagação é mimetizada e emulada por meios de comunicação em redes que se propagam não só por TV, rádio ou boca a boca, mas por uma difusão midiática nova das chamadas “redes sociais” da Internet, particularmente o twitter, onde ocorrem fenômenos virais com as mensagens que podem ser replicadas a milhares de outros emissores.

A disposição de luta que nasce com uma velocidade espantosa em povos acostumados por décadas de passividade e inação impressiona por sua intensidade psicológica que advém de um impacto moral, uma reverberação social de ondas de indignação, de sensações de que chegou o momento do basta. O auto-imolado suicídio de Mohamed Bouazizi na Tunísia, em 17 de dezembro de 2010, fez parte de uma onda de atos semelhantes que além dos desesperos individuais simbolizou o esgotamento psicológico de muitos povos num mesmo momento. Essa sincronia, esse cosmopolitismo, essa natureza culturalmente febril e viral de uma sequência de rebeliões criou ondas de choque que já atingiram, de imediato, o Mediterrâneo, levando para a Espanha, Grécia, Portugal e outros países levantes sociais de caráter semelhante: ações de rua, ocupações de praças, uso de mídias e redes de comunicação – tudo será filmado e colocado on line – e articulações que recusam o espaço institucional tradicional. Países como a China sentiram o risco e proibiram menções à Praça Tahrir. Lá, onde a Internet mais cresce e mais é controlada, a maior fortuna do país é a Baidu, equivalente chinês do Google, criada por Robin Li, que teve sua empresa como a primeira chinesa a entrar na Nasdaq.

Não é acidental que o ditador Kadafi tenha usado sistematicamente uma teoria estapafúrdia para explicar a irrupção súbita da insurreição do povo líbio contra seu governo que foi a das “pílulas alucinógenas” distribuídas pela Al Qaeda para os rebeldes. Três dias após o início do levante em Bengazi, seu filho foi à TV, em 20 de fevereiro de 2011, num discurso exaltado ameaçou mais de 100 mil mortos e acusou os rebeldes de serem drogados com alucinógenos. A versão foi repetida pelo próprio ditador quando, dias mais tarde retomou na TV a versão das “pílulas alucinógenas” de Bin Laden, e chegou a apresentar, em 04 de março de 2011, quatro containers cheios de remédios supostamente apreendidos, especialmente o opióide Tramadol, como evidência dessa conspiração “alucinógeno-fundamentalista”, numa versão que foi exibida como algo verossímil apenas pelo correspondente da Tele Sur venezuelana, Jordan Rodríguez[1]. A CNN chegou a fazer uma entrevista com o porta-voz líbio em que o repórter Anderson Cooper questionava como pílulas anestésicas opióides, que produzem sono e sedação, poderiam ajudar a despertar disposições bélicas e rebeldes[2].

O recurso a uma droga alucinógena como única explicação para as causas do levante popular é não só uma das utilizações mais grotescas dos argumentos da “guerra contra as drogas” por parte de um ditador caricato, mas é também uma mostra de como a disposição revolucionária em povos que viveram passivos por décadas é um fenômeno também de ordem psicológica, de uma disposição mental que irrompe como um relâmpago em céu claro.

A acusação às revoluções de serem obras da embriaguez é antiga. Após a derrota da Comuna de Paris, em 1871, a Academia de Medicina criou uma comissão especial para analisar as causas da irrupção revolucionária, num esforço que já era antigo de relacionar a dissidência com a doença. Sua conclusão foi de que “a Comuna se fez numa espécie de embriaguez permanente, uma vasta erupção de alcoolismo”[3]. Como sublinha Yves Lequin, “o que é novo é que o inebriamento alcoólico deixa de ser uma simples metáfora e que os médicos pretendem estabelecer sobre a frieza das observações a filiação biológica da subversão”[4].

Walter Benjamin havia se dado conta dessa força do êxtase, ao escrever sobre o surrealismo, que este, “em todos os seus livros e empreendimentos, empenha-se em conquistar as forças do êxtase para a revolução”, pois é uma “verdade, de nós conhecida, de que em qualquer ato revolucionário existe vivo um componente extático”[5].

A partir das dimensões do sonho e do êxtase, Benjamin identificava uma possibilidade de expansão da consciência racional, para um âmbito supra-racional ou supra-real como conceberam os surrealistas a denominação do seu movimento. Diante de um mundo técnico industrial no qual a humanidade é oprimida e explorada, onde a guerra é a grande meta e a publicidade o seu método de arrebanhar multidões, a “sua concepção da essência dessa época” era a seguinte: “ou bem a técnica se tornava, nas mãos das massas, o órgão sensato de uma experiência cósmica embriagadora ou então caminhava para catástrofes ainda piores do que a Primeira Guerra Mundial”[6].

A consciência política de classe foi teorizada por grande parte da tradição marxista como parte da tradição filosófica da filosofia do sujeito que via na auto-reflexividade crítica do espírito humano consigo próprio no seu desdobramento histórico como o foco cognitivo não só dos indivíduos, mas do próprio “espírito da época”. A consciência crítica de uma época sobre si própria se cristalizaria institucionalmente nas organizações sociais da classe trabalhadora como os sindicatos e os partidos. Estes, entretanto, após as ascensões e as crises das internacionais operárias, se tornaram a principal camisa de força burocrática dedicada a bloquear a luta social. A consciência política rebelde, órfã dos aparatos, e desconfiada da política institucional, emerge atualmente em manifestações muitas vezes espontâneas de rebelião, cujo caráter mais imediato é um estado de espírito de euforia coletiva, de festa transgressiva, de entusiasmo político.

Esse estado corresponde também às características de inorganicidade e perda de direitos sociais, políticos e sindicais das novas camadas do proletariado, especialmente na Europa, caracterizado pela presença de um verdadeiro apartheid em relação aos imigrantes ilegais e por uma exclusão de direitos também em relação às novas gerações de trabalhadores. O “precariado” é o termo que vem designar uma nova forma de proletariado informalizado, precarizado, terceirizado, também já chamado de “cognitariado”, termo que parece ter sido proposto originalmente por Franco Berardi[7] para se referir a um novo tipo de trabalhador empregado especialmente no campo da telemática cujas habilidades intelectuais são exploradas por meio de precarização, desregulamentação e perda dos direitos sociais do welfare state das gerações anteriores do proletariado industrial.

A palavra “precariado” parece ter surgido como um neologismo anglicizado no Japão, onde a força de trabalho desregularizada passou de 15% em 1984 para 33% em 2006[8]. O economista Guy Standing publicou o livro The Precariat. A new dangerous class, em 2011, desenvolvendo a tese de que este setor vem se tornando cada vez mais importante e socialmente conflitivo [9]. O termo se tornou comum no debate sociológico contemporâneo, a ponto de alguns, talvez apressadamente, relacioná-lo com um novo modelo de acumulação “pós-industrial” típico do século XXI[10].

O cenário contemporâneo se parece mais com uma nova divisão internacional do trabalho, no qual a high-tech, as indústrias da informação, da mídia e do espetáculo se localizam no centro, enquanto as indústrias pesadas se transferem para áreas periféricas e pior remuneradas, não havendo, portanto, em escala global, nenhuma diminuição do proletariado industrial. Mas, tanto no setor industrial como no de serviços, há um enorme esforço global de desregulamentação e perda de direitos sociais em nome da “flexibilização” que criou uma nova camada social precarizada que se concentra nos mais jovens. A exigência de que a crise desencadeada desde 2008 pelo sistema financeiro seja paga por meio dos cortes públicos e pela privatização foi a gota d´água que está fazendo a Espanha e a Grécia transbordarem.

Esses “indignados” da Europa, assim como os insurretos do mundo árabe, são os que podem despertar uma nova euforia política coletiva num mundo dominado pelos ideais de individualismo e continuidade perpétua do cotidiano. A sua apropriação dos recursos técnicos da comunicação de massas hipermidiática cria um novo fórum público de opinião e coordenação política. A ruptura do cotidiano é uma emancipação da criatividade e uma vazão de alegria e excitação contidas e se apresenta como uma consciência política não apenas crítica e voltada para a ação, mas com um potencial embriagador, que pode contagiar povos inteiros para sua elevação ao protagonismo público de uma vida social solidária em que o futuro deixa de ser a repetição do mesmo, mas uma invenção prática na novidade de cada dia, quando a política sai da sujeira cinzenta dos salões e vai para a iluminação das ruas.

Um exemplo dessa nova consciência crítica e rebelde foram as “marchas da maconha” no Brasil, cuja proibição suscitou não apenas enfrentamentos com a polícia nas ruas ou a retomada das lutas por liberdades democráticas, mas um chamado às “marchas da liberdade”, cuja próxima deverá ser realizada em várias cidades do país em 18 de junho próximo, um dia antes do dia para o qual foi chamado um protesto unificado em toda a Europa. As conexões de rebelião neste annus mirabilis de 2011 se tecem em meio a muitas coincidências felizes em que a emulação internacional da revolta volta a criar aquilo que podemos chamar de uma “atmosfera” revolucionária geral.

Bibliografia:
Benjamin, Walter, O Surrealismo, O mais recente instantâneo da inteligência européia, in Textos escolhidos, trad. José Lino Grünnewald, Col. Os Pensadores, 2. Ed., São Paulo, Abril Cultural, 1983.

Delumeau, Jean; e Lequin, Yves (orgs.), Les Malheurs des Temps. Histoire des fleaux et des calamites em France, França, Larousse, 1987.

Wiggershaus, Rolf, A Escola de Frankfurt. História, desenvolvimento teórico, significação política, Rio de Janeiro, Difel, 2002.

[1] http://multimedia.telesurtv.net/5/3/2011/28474/autoridades-libias-detuvieron-en-tayura-contenedores-con-pastillas-provenientes-de-dubai/
[2] http://www.dosenation.com/listing.php?id=8281&utm_medium=twitter&utm_source=twitterfeed
[3] Yves Lequin, Au péril de la race in Delumeau, Jean; e Lequin, Yves (orgs.), Les Malheurs des Temps. Histoire des fleaux et des calamites em France, França, Larousse, 1987 , p.438.
[4] Yves Lequin, Au péril de la race in Delumeau & Lequin, p.439.
[5] Walter Benjamin, O Surrealismo, O mais recente instantâneo da inteligência européia, in Textos escolhidos, Col. Os Pensadores, 2. Ed., São Paulo, Abril Cultural, 1983, p.83.
[6] Rolf Wiggershaus, A Escola de Frankfurt. História, desenvolvimento teórico, significação política, Rio de Janeiro, Difel, 2002, p.228.
[7] La fabbrica dell’infelicità: new economy e movimento del cognitariato. Roma, DeriveApprodi, 2001.
[8] http://search.japantimes.co.jp/cgi-bin/nn20070621f2.html
[9] http://www.policy-network.net/articles/4004/-The-Precariat-%E2%80%93-The-new-dangerous-class
[10] http://politique.eu.org/spip.php?article333

*Henrique Carneiro é professor de História Moderna da USP (Universidade de São Paulo). Originalmente publicado no Coletivo DAR (Desentorpecendo a Razão).
Fonte: Opera Mundi

Um comentário:

palavrasdeumnovomundo disse...

Quando lhe respondi ao seu coment lá no blog faltou dizer ou disse sim de outras formas no post de que a única crença que me resta é do contágio epidêmico de que fala.
Obviamente, desde que desvinculada de quaisquer interesses políticos e outros que corrompem qualquer movimento.

Forte abraço.
Rosa