Ciberativismo do Egito à Ocupação de Wall Street
A luta pela liberdade de expressão e ação online se tornou uma coisa só com a luta offline pela liberdade de ir e vir e de idéias. Por Laurie Penny
O guri [rapaz] no banco de réus poderia estar fazendo teste para um papel principal no psicodrama global O Rapazinho Versus O Estado. Pálido, magro e diminuído por dois enormes seguranças no Tribunal Westminster de Magistrados de Londres, Jake Davis fala sussurrando, e somente para confirmar seu nome. Ele tem 18 anos, é do remoto arquipélago escocês de Shetland, e é acusado de ser um agente chave em um coletivo internacional de ciberativismo chamado LulzSec, o qual atacou as operações na web de entidades que vão desde a CIA ao império midiático [de meios de comunicação] de Murdoch [1]. Davis está sendo acusado por cinco delitos relacionados a computador, incluindo um ataque a um dos principais websites da polícia britânica e três acusações de conspiração. Ele parece se encolher dentro da sua camisa xadrez, agarrando uma brochura intitulada Free Radicals: The Secret Anarchy of Science (Radicais Livres: A Anarquia Secreta da Ciência).
Os hackers se apresentam de muitas formas, desde criminosos que roubam detalhes de cartão de crédito a sombrias organizações governamentais que atacam instalações nucleares inimigas; mas hoje os mais proeminentes e controversos são os ciberativistas – ou “hacktivistas”, como alega-se que Davis seja. Afiliados de maneira solta e em rápida expansão, estes grupos têm milhares de membros ao redor do mundo e nomes como AntiSec [2] e, o mais famoso, Anonymous. Estes grupos representam um novo front no que tem sido rotulado de “guerra global da informação”: a crescente batalha a respeito de quem controla a informação no ciberespaço.Operando anonimamente, principalmente através de canais de IRC, grupos de hacktivistas derrubam websites, invadem servidores e roubam senhas. O seu movimento de assinatura é o ataque DDoS (Distributed Denial of Service – algo como Negação de Serviço Distribuída), que envolve a coordenação de milhares de computadores para enviar tráfego para um website até que ele se sobrecarregue, colapse e seja derrubado – o equivalente digital de uma ocupação, exceto que a coordenação de uma ocupação não costuma resultar em uma pena de dez anos, que é a qual recairá sobre Davis se ele for considerado culpado.
Hackers tradicionalmente são arruaceiros de bate-papos; uma das acusações contra Davis é o seu alegado papel na invasão da página do jornal Sun, redirecionando leitores para uma notícia falsa declarando ao mundo que Rupert Murdoch estava morto. Risos abafados vêm do banco da imprensa conforme a promotoria lê a acusação, e para Davis é impossível impedir o menor dos sorrisos de se estampar em seu rosto. Para ciberativistas, isto sempre teve a ver com causar diversão: uma colisão anárquica de sátira e ação direta que faz zombaria dos poderosos e presunçosos. Eles fazem isso “pelo lulz” [2], em ciberdialeto.
Nos últimos anos, o trabalho destes grupos se tornou cada vez mais ligado a uma missão mais séria, uma que combate a censura na Internet, seja por parte de empresas ou de governos. O Anonymous, em particular, se tornou um coletivo poderoso. Nos protestos de Occupy Wall Street em Nova York, os quais o Anonymous ajudou a promover, pessoas jovens andavam pra lá e pra cá entre a multidão com máscaras de Guy Fawkes – um símbolo de resistência popular coletiva e inominada tirado do filme e do romance gráfico V de Vingança, que foi adotado pelo grupo [3]. Em apoio aos protestos, que têm como alvo a ganância empresarial e a desigualdade econômica, o Anonymous postou um vídeo na rede ameaçando apagar o New York Stock Exchange (a bolsa de NY) “da Internet”. Em outro lugar da Liberty Plaza jovens ativistas de tecnologia davam palestras sobre liberdade digital e forneciam cópias de softwares de código aberto gratuitos para qualquer um que trouxesse um laptop consigo. A tecnologia representa um papel essencial nos novos movimentos de pessoas conectadas que têm surgido em toda a Europa, América e Oriente Médio – e estes movimentos trouxeram o ciberativismo consigo. A geração que deveria ter sido transformada em indiferente e apática pela tecnologia – as crianças que supostamente deveriam ficar olhando sem expressão para mundos virtuais sozinhas em seus quartos – estão, ao invés disso, usando tecnologia para se reengajar com eventos atuais numa era em que os próprios princípios do poder estão sendo reescritos em termos que não estão completamente sob o controle dos Estados-nações.“Não há muito precedente histórico” para o ciberativismo nesta escala, diz Gabriela Coleman, que dá aulas sobre tecnologia e antropologia na Universidade de Nova York. “É difícil dizer o que vai acontecer, exceto que os Estados cairão em cima disso rapidinho.”
A maioria dos especialistas em segurança concorda que os ciberataques sofisticados perpetrados por Estados-nações, como o ataque da Stuxnet a uma instalação nuclear iraniana no ano passado, representam uma ameaça muito maior à segurança global do que os coletivos de hackers autônomos que derrubam sites de empresas. O primeiro é o equivalente digital de espionagem entre Estados; o último, o equivalente de um protesto com bloqueio de estrada ou com cartazes. Apesar disso, o FBI e outros órgãos para o cumprimento da lei estão concentrando um grande esforço sobre estes ciberprotestos. Os Estados Unidos passaram o ano passado recrutando centenas de hackers “de chapéu branco” para combater o ciberativismo e os crimes virtuais (e-crime) e lançaram uma caçada global aos membros do Anonymous, Lulzsec e outros grupos. E estão também contando com a ajuda de outros países para tomar medidas similares: sob pressão dos E.U.A, o Japão está considerando exigir que empresas compartilhem informação sobre hackers com o governo.
Como os ataques adquiriram caráter mais político – com mais agências para o cumprimento da lei e grandes empresas sendo alvo de hackeamentos de protesto –, a reação também o fez. Desde o verão passado, diversos membros suspeitos do Anonymous, Lulzsec e outros grupos, alguns deles de até 16 anos, foram presos na Europa e na América do Norte em uma série de operações de trapaça. Ainda assim os ataques continuaram, tendo como alvo, entre outros, mais de setenta websites da polícia ao redor dos Estados Unidos e o website do Ministério de Defesa da Síria, onde o grupo postou uma mensagem de solidariedade para com o povo sírio. A resposta de pulso de ferro para um ciberativismo relativamente benigno parece apenas gerar mais do mesmo enquanto desvia recursos que poderiam ser usados para perseguir o tipo de cibercrime que verdadeiramente representa uma ameaça pública.
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Como tantas coisas na internet, de certo modo, o hacktivismo contemporâneo começou com pornografia. Anonymous, por exemplo, se originou no site de bate-papo 4chan, cujos quadros de mensagem são canais obscenos cheios de piadas internas sujas.
Alguns dos primeiros ataques DDoS, começando em fevereiro de 2010, tiveram como alvo autoridades australianas que tentaram censurar a distribuição de pornografia virtual – um projeto sob o codinome Operation Titstorm (algo como Operação Tempestetas) – assim como uma empresa de Proxy que tentou derrubar o The Pirate Bay, um site de compartilhamento de arquivos para download de música e vídeo. O que estava em jogo não eram tanto fotos de nus ou MP3 gratuito, mas o próprio princípio da livre troca de informação gratuita. Neste sentido, a trajetória do hacktivismo, partindo da defesa do livre compartilhamento de arquivos para a defesa da liberdade em si mesma pode ter sido inevitável. “Tudo começou com expor vídeos com peitinhos para os amigos”, explica um membro do coletivo militante “dissidente tecnológico” DSG (Deterritorial Support Group – Grupo de Suporte Desterritorial), que se identifica como Zardoz. “E terminou com a derrubada de [um] regime autocrático”.Ele (ou ela) está se referindo à revolução do Egito, um momento chave de politização para os ciberativistas, que se prontificaram para ajudar os rebeldes com comunicação após Hosni Mubarak haver derrubado a internet. Conforme a Primavera Árabe e o subseqüente levante global do verão demonstraram, a luta pela liberdade de expressão e ação online se tornou uma coisa só com a luta offline pela liberdade de ir e vir e de idéias. A “politização do 4chan”, como esta trajetória é parcialmente conhecida entre os hacktivistas, pode ser remontada ao WikiLeaks. Depois que o site de denúncias publicou milhares de documentos e comunicações diplomáticos secretas no último outono, a MasterCard e o PayPal anunciaram que suspenderiam pagamentos ao WikiLeaks, estimulando os membros do Anonymous a derrubar os websites das empresas. Intitulado Operation Payback (Operação Troco), o projeto mudou as regras de combate para aqueles ciberativistas que haviam anteriormente visto as suas atividades anticensura como separadas da geopolítica. Neste sentido, o grande triunfo do WikiLeaks foi fazer com o que mundo pensasse novamente sobre se os governos devem ter o direito de reter informação de cidadãos e obstruir a livre troca de idéias online.
Para os jovens em todo o mundo que cresceram com a internet – “nativos digitais” – a questão é tanto profunda quanto profundamente descomplicada. Defender a liberdade de troca de informações online é mais importante do que política individual ou moralidade. “É por isso que o Anonymous interveio no caso WikiLeaks”, explica Zardoz. “É por isso que eles intervieram na Tunísia. E é por isso que eles intervieram no Egito.” Na Operação Egito e na Operação Tunísia, o Anonymous e outros grupos se coordenaram para restaurar o acesso dos cidadãos a websites bloqueados pelo governo. Os esforços se estenderam além da internet, com faxes utilizados para comunicar informação vital como um meio de último recurso. (No clássico estilo “lulzy”, ciberativistas também causaram caos ao pedir enormes quantidades de pizza para serem entregues nas embaixadas do Egito e da Tunísia).
Depois do Egito, ficou claro que a luta contra a censura e a luta contra a opressão do Estado estavam caminhando bem próximas. “Não se trata de uma luta de pouca importância entre nerds estatais e nerds vagabundos”, escreveram membros do coletivo DSG em junho, em um post de blog influente intitulado “Vinte razões porque o bicho tá pegando no ciberespaço (Twenty reasons why it’s kicking off in the cyberspace)”. “Trata-se do campo de guerra do Século 21, com os termos e as condições de guerra sendo configurados bem diante dos nossos olhos”.
Neste ponto, hacktivistas e especialistas em segurança concordam. “O LulzSec e o Anonymous estão expondo um enorme número de vulnerabilidades que estão por aí esperando para serem exploradas por alguém que tenha as habilidades e a motivação”, diz Chris Wysopal, co-fundador do Veracode, uma empresa de segurança com sede em Massachusetts. “Os dados têm um isolamento tão ruim,” diz Coleman da NYU, “e se tudo o que você precisa para invadir uma instalação do governo é um pendrive, será que nós podemos mesmo impedir que isso aconteça?”.
Esta é precisamente a pergunta que causa pavor nos poderes estatais. Nestes tempos instáveis, umas das poucas coisas que nós podemos saber com alguma certeza é que o futuro é digital; a internet – e as possibilidades para o enfrentamento e o rompimento coletivo que ela oferece – não vai embora. Seria necessário um programa massivo de censura e vigilância em todo o mundo tanto online quanto offline para desmantelar esta possibilidade, e é justamente isso que os “dissidentes tecnológicos” esperam conseguir evitar.
* * *
A ligação entre a dissidência pela tecnologia e a dissidência nas ruas está se tornando cada vez mais forte. O fato de que cidadãos ordinários podem obter e compartilhar informação instantaneamente não apenas fornece a eles as ferramentas para resistir à autoridade e evitar a prisão; ele também deslegitima aquela autoridade em níveis práticos e filosóficos. Controlar a informação, afinal de contas, é uma das mais importantes maneiras pelas quais um Estado exerce seu poder. Ao longo de mais de dezenove meses que viram a natureza e a estrutura do poder questionadas ao redor do globo, a natureza e a estrutura da dissidência tecnológica cresceram e amadureceram. Para a polícia, a imprensa e os poderosos, esta ligação crescente entre tecnologia e dissidência é uma causa de alarme: ninguém sabe o que os ciberativistas podem ser capazes de fazer a seguir.
No final das contas, o ciberterrorista para uns é o defensor da liberdade digital para outros, e para muitos é exatamente isso que os hacktivistas são. Em Liberty Plaza, o centro nervoso do protesto de Occupy Wall Street é um barracão provisório de mídia cheio de jovens sérios fazendo barulho em laptops sobre um emaranhado de cabos. Nem todos os ciberativistas são jovens – estereotipar os hacktivistas como adolescentes reclusos é uma maneira fácil de descartar suas idéias – mas há uma coisa que adolescentes e tecnologias conseguem fazer mais rápido do que adultos e governos: se adaptar.
Notas do tradutor:
[1] Rupert Murdoch fundador e presidente da News Corporation, o segundo maior conglomerado de mídia no mundo.
[2] AntiSec é acrônimo de Anti-Security, ou Anti-Segurança, assim como LulzSec é acrônimo para Lulz Security (Lulz é uma corruptela de , expressão de internet indicando divertimento que significa literalmente Laughing Out Loud ou Rindo Alto). Vale notar que tanto “safety” quanto “security” se traduzem em português como segurança; no entanto, a primeira diz respeito, de maneira geral, a segurança pessoal e a última diz respeito, de maneira geral de novo, a segurança da informação ou patrimonial.
[3] Guy Fawkes foi um militar inglês que participou numa conspiração católica, em 1605, na qual se pretendia assassinar o rei e todos os membros do parlamento. Foi condenado à morte e executado em 1606. Pese o anacronismo, o nome de Guy Fawkes é muitas vezes evocado por aqueles que se opõem ao parlamento e às instituições da democracia representativa (Nota do Passa Palavra).
Original em inglês publicado em http://www.thenation.com/article/163922/cyberactivism-egypt-occupy-wall-street.
Tradução de Sara Santedicola
Fonte: http://passapalavra.info/
quinta-feira, 3 de novembro de 2011
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