Às três da tarde na Teodoro Sampaio
Eu poderia ter dito e feito muitas outras coisas, mas estas foram as que consegui sem ter sido presa por desacato. Por Ana Paula Salviatti
São três da tarde, esquina da Pedroso de Morais com a Teodoro Sampaio, próximo ao Largo da Batata, Zona Oeste de São Paulo, um dos pontos mais movimentados da capital paulista. Dois homens em plena esquina agridem três crianças. Crianças pobres: uma negra, uma mulata e a última, uma branca que não era loira.
Agredindo.
Ao ver de dentro do ônibus a cena pude ver a criança negra sendo agarrada por detrás do pescoço e sendo lançada no meio da rua. Foi o suficiente para sair em disparada do ônibus e ir em direção a eles. Ao chegar, o segundo homem estava levando a criança branca, mas não loira, pela orelha até à calçada do outro lado da rua. Nesse momento tive a desgraçada sorte de vê-lo, ao largar a criança na calçada, dizer com o dedo apontado em seu rosto:
– Cala sua boca, você é um bosta.
Disparei em meio àquela cena que os dois homens adultos se afastassem das três crianças imediatamente. A discussão estava instalada. Naquele exato momento tive a plena consciência de que um linchamento público não seria um destino distante das três.
– Mas eles são seus filhos?
– Não são e nem precisariam ser, são crianças e isso basta.
– São ladrões, são bandidos, fazem isso sempre.
– Não é sua função dizer o que eles fazem ou não. Inclusive o crime é seu. Você não pode agredir essas crianças, eu mesma vi.
Nisso, dois polícias que estavam do outro lado da rua vieram em direção à confusão que eu sozinha havia instalado.
– Pois não, o que está acontecendo aqui?
– Esses dois homens estavam agredindo essas crianças, senhor policial, eu posso ser testemunha. O primeiro senhor agarrou a criança pelo pescoço e o segundo arrastou a outra criança pela orelha, a xingando de bosta.
Um dos homens me interpelou:
– Mas você não vê que eles são bandidos?
– Não, não vejo, senhor. Vejo três crianças serem agredidas no meio da rua por vocês.
O primeiro policial se aproximou, pôs suas mãos no cinto e disparou:
– Eu resolvo isso já, vou levar esses três moleques para a FEBEM e a gente resolve isso já.
Imediatamente disparei:
– É assim que se dirige a uma criança, senhor policial?
– O que a senhora disse, senhora?
– É assim que o senhor se dirige a uma criança senhor policial? Se ele fosse branquinho dos olhos azuis o senhor falaria assim com ele, senhor policial?
Com um sorriso nos lábios me disse:
– A senhora gostaria de ir à delegacia abrir uma representação?
– Estou à disposição.
O adulto que disse a uma das crianças que ele era um bosta me perguntou:
– Você não acompanha a televisão?!
– Não coloque apresentadores da tevê no meio disso aqui. Vocês acreditam que pegando uma criança no pescoço no meio da rua, xingando ela de bosta, vocês vão incentivar o quê?! Essas crianças vão ficar malucas e por muito menos vocês estão cultivando o que assistem na televisão. Eles têm direitos sonegados. Eles têm direito a lazer, cultura e educação, e é tudo o que os três não têm.
As poucas pessoas que paravam soltavam comentários a favor de um linchamento público das três.
– São bandidos, já assassinaram alguém! Isso ai é tudo bandido, tudo assassino!
O homem que havia segurado o pescoço do menino se aproximou de mim e disse que ele estava errado e que me pedia desculpas. Respondi que ele não devia desculpas a mim, mas à criança a quem ele havia dado a enforcadura no pescoço. Ele então sumiu.
O segundo policial, muito mais flexível, abordou a questão da seguinte forma:
– O papel da Polícia Militar é mediar conflitos. São situações onde é difícil se chegar a um consenso.
– Senhor policial, mas não se trata de chegarmos a um consenso, não? Eles não podem agredir as crianças. É a lei.
– Sim, a senhora tem razão.
O policial dirigiu-se a mim e às crianças, que a esta altura já estavam todas atrás de mim como pintos atrás de uma galinha. Disse o que eles poderiam e não poderiam fazer, e que eu estava dispensada – após anotar somente o meu RG. Questionei então se o senhor policial não iria falar o que aqueles dois homens não poderiam fazer.
– Sim, sim. O senhor, quando tiver algum problema, retém a criança no local e liga no 190.
Só.
– A senhora pode ir embora, vocês podem ir embora.
E um instante de silêncio se fez em mim. Eu não ia embora. Eu poderia ter dito e feito muitas outras coisas, mas estas foram as que consegui sem ter sido presa por desacato. No final eu tinha três crianças olhando para mim imóveis. Eu tinha três crianças ali.
Detalhe: nenhum dos dois homens negou o que havia feito em momento algum; para meu espanto tentaram justificá-lo de uma forma bastante específica. Nossa televisão está regando o fascismo que transborda dos corações paulistanos. O que era uma simples ideia, agora é plena realidade. Eram três horas da tarde em plena Teodoro Sampaio, o que será das três da tarde no Jardim Paulistano ou no Campo Limpo? Eram três crianças que não passavam da altura do meu diafragma. Eram três indivíduos em plena formação, que foram humilhados em praça pública por pessoas que entenderam-se no direito. Adultos alimentados e pavimentados por um discurso massivo vomitado hora a hora pela nossa televisão.
A não implementação das garantias constitucionais dos direitos das crianças e dos adolescentes está dando seus frutos mais amargos. Até quando nosso Ministério Público irá esperar para que ele, sim, entre com uma representação contra o discurso de ódio midiatizado? Quando crianças como essas forem assassinadas preventivamente? Afinal, são todas assassinas como mostram na tevê, memória que não me deixou escapar um transeunte que se dignou a parar e a verborragir à minha frente. Se são todos assassinos, na dúvida eles não merecem outra coisa que um tratamento preventivo.
O que eu assisti abalou a mim, mas e às três? Por muito menos eu me tornaria um adulto revoltado. Alguém aqui sabe o que significa ser chamado de bosta ou ser segurado pelo pescoço como um animal em meio à Av. Teodoro Sampaio às três da tarde numa quinta-feira? Alguém?
Fonte: http://passapalavra.info/
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