segunda-feira, 19 de agosto de 2013

[EUA] Entrevista a Mumia Abu-Jamal sobre a música negra - por ANA



[EUA] Entrevista a Mumia Abu-Jamal sobre a música negra

[Mumia conversa com Michael Coard sobre música negra desde os tempos da escravidão até a época do hip hop, passando por sua entrevista com Bob Marley em 1980. É o segundo episódio do Radio Prision Show realizado em 3 de julho em 900AM-WURD, na Filadélfia. Agora este programa se transmite todas as primeiras quartas-feiras de cada mês, às 11 horas da manhã, durante o último segmento do programa Radio Courtroom (Tribunal pela Rádio). Se perdeste o programa, leia a transcrição abaixo.]

Michael Coard > Este é o Radio Prision Show, um segmento do Radio Courtoom Show, aqui em 900AM WURD, apresentando Mumia Abu-Jamal. Vocês se lembrarão de que mês passado Mumia esteve conosco para a estreia do Radio Prision Show. Vamos conversar sobre vários temas, mas para alguns de vocês que talvez não conheçam o nome de Mumia Abu-Jamal, digamos que tem vivido em uma jaula durante as últimas duas décadas, permitam-me lhes dizer quem é: um pai, um esposo, um autor e um inquilino temporário de uma prisão, mas um revolucionário permanente. Sem mais delongas, aqui está conosco Mumia Abu-Jamal. Como está Mumia?

Mumia Abu-Jamal < Mais ou menos bem, Michael. É um bom dia para estar vivo. E um bom dia para estar conversando contigo.

Michael > Bem dito, Mumia. Tenho que te dizer que no mês passado quando fizemos nosso primeiro programa, a sala estava abarrotada, não sobravam assentos, se tal coisa é possível para um show de rádio. As pessoas ficaram assombradas. As convidei a mandar suas perguntas para conversar contigo sobre elas, mas disse que nos primeiros programas queremos escutar sua voz e o que tem a dizer. Agora estamos no mês de julho e você vai estar conosco nas primeiras quartas-feiras de cada mês. Mas uma das coisas que não tivemos a oportunidade de conversar contigo foi a respeito de música. Impressiona-me cada vez que escuto mais sobre você. O que quero dizer é que conheço seu trabalho para os despossuídos, os desamparados, conheço sua luta como revolucionário, mas esta não é a totalidade de Mumia Abu-Jamal. De fato, me interei ao conversar com outras pessoas que você sabe muito mais de música que alguns chamados profissionais da música. Alguém me perguntou por que não havia falado contigo mês passado sobre o mês da Música Negra e o que significa para você, o que significa para nosso povo e o que significa para os revolucionários, porque há aqueles que pensam que se você está ai, na primeira linha lutando pelas pessoas, não pode apreciar a música. Fale-nos sobre tudo isto, começando com a importância da música, se é que é importante, e em particular a música negra.

Mumia < Então, acho que a música negra tem uma importância vital. Quando pensa em nossos antepassados que chegaram principalmente de várias partes da África Ocidental, o que nos ajudou a suportar a noite escura da escravidão foi a música. Por que seria um crime tocar tambores? O que aprenderam os inteligentes observadores da gente africana foi que na África e em outras partes das Américas, era possível enviar mensagens sobre imensos espaços com os tambores. Assim se comunicaram e por isso o fizeram ilegal. O que fizemos é o que sempre fazemos. Usamos o que tínhamos para superar a situação e prevalecer. Os irmãos e irmãs em grilhetas bailaram. Seus pés descalços golpearam a terra. Bailaram. Cantaram. Deixa eu te dar um exemplo.

Michael > Sim, sim.

Mumia < Há vários anos li um livro autobiográfico escrito por uma das pessoas mais importantes das Américas. Chama-se “A Narrativa da Vida de Frederick Douglass”, publicado primeiro em 1845. Te dou uma breve citação.

Michael > Sim, por favor.

Mumia < É sobre o poder das canções que se conhecem como “as espirituais”, para que entenda. Diz: “Quando eu fui escravo não compreendi o significado profundo dessas canções rudes e aparentemente incoerentes, eu mesmo estava dentro do círculo, por isso não via, tampouco escutava o que alguém de fora poderia ver ou escutar. Contaram uma história de infortúnio que ia além de minha pobre compreensão. Os tons eram fortes, longos e profundos. Exaltaram as preces e queixas de almas que ferviam com a angústia mais amarga. Cada tom foi um testemunho contra a escravidão e uma oração a deus para libertá-los de suas correntes. Escutar essas notas selvagens sempre deprimia o meu espírito e me enchia de uma tristeza indescritível. Com frequência eu chorava ao escutá-las. Até agora a repetição dessas canções me aflige. E enquanto escrevo estas linhas uma expressão de sentimento me corre pelo rosto. Essas canções me levaram a minha primeira tênue percepção do caráter desumanizante da escravidão. Nunca posso me desfazer dela. Essas canções me perseguem para afiar meu ódio pela escravidão e avivar minha simpatia com meus irmãos e irmãs em grilhões”.

Este é Frederick Douglass quem nos dá um sentido da força que nossa gente conseguiu comunicar, do profundo sentimento que transmitiram em nossas “espirituais”, as quais eram nossa primeira forma de música nas Américas. Devido ao fato desta ser a nossa única maneira de se expressar, houve uma explosão, geração após geração de gente negra se expressando através da música. Este era o espaço onde dizíamos: somos seres humanos, exigimos liberdade e isto é o que sentimos. Era uma maneira de nos comunicarmos não só entre nós, senão com todo o mundo. E agora, que música negra não é mundial? O rap se escuta em cada canto do planeta. A música pode ser uma ferramenta revolucionária se usada corretamente.

Michael > Bem dito, Mumia, e me agrada que ao princípio de seu comentário deixou claro que estava citando a narrativa de vida de Frederick Douglass escrita em 1845. Se você não tivesse esclarecido, eu poderia ter pensado que se referia a John Coltrane em 1965.

Mumia < (risos) Soa assim, sério?

Michael > Absolutamente. É muito poderoso. Antes que se acabe o tempo Mumia, gostaria de escutar seu ponto de vista sobre o rap, sobre o hip hop. Tenho lido seus escritos sobre muitos artistas. O que diz agora? Eu dou aulas sobre hip hop e me parece que muitas pessoas que tem mais de 40 anos o desaprovam. Dizem que é destrutivo, que é negativo, que não tem nada a ver com os velhos tempos, com a idade dourada do hip hop. Que acha disso tudo?

Mumia < Se me permite, tenho duas respostas. Uma é de memória e outra é uma nota que escrevi em preparação para momentos como este.

Quando Miles, o grande Miles Davis ainda vivia e estava tocando todo tipo de música, algumas pessoas o criticavam por suas mudanças, suas adaptações, suas criações. E Miles, sendo Miles, disse “Só há dois tipos de música – boa e ruim”. Pois bem, existem dois tipos de rap, bom e ruim. A música que te prende obviamente é a boa. A que não te alcança é ruim para você. Mas eu entendo que não se componha para pessoas de sua idade ou para minha idade. Compõe-se para gente mais jovem.

Michael > Sim, sim.

Mumia < Tenho outra citação. Do livro de Jay-Z, “Decoded” (Decifrado). Esta citação me impressionou porque penso que nos diz muito: “Penso que nós, os rappers, os DJs, os produtores fomos capazes de contrabandear algo da magia daquela civilização moribunda em nossa música e usá-la para construir um novo mundo. Éramos meninos sem pais. Por isso encontramos nossos pais na cera, nas ruas e na história. Em certo sentido, isto é um presente. Podemos escolher os antepassados que haviam inspirado o mundo que íamos criar para nós mesmos. Era parte do espírito e valores dos tempos e do lugar e se incorporou na cultura que nós criamos. Já se tinham partido nossos pais. Normalmente, se recuperaram. Mas tomamos seus velhos discos e os usamos para construir algo fresco”.

Isto é poderoso em muitos níveis.

Michael > Sim, é sim. Nunca imaginei que chegaria o dia quando estaria citando Mumia e Jay-Z ao mesmo tempo, mas é exatamente o que vou fazer. Mumia, você mencionou que há bom rap e mal rap. Qual sua posição sobre a chamada vulgaridade, a profanidade que vem até dos chamados rappers conscientes ou progressistas? Vê isso como algo desfavorável, algo negativo?

Mumia < Bem, eu não sou doutrinário sobre isso, por haver estado perto do pessoal do MOVE durante tantos anos, me acostumei a escuta-los usar o que se chama de “profanidade”. Mas eles dizem que não há nada mais profano que uma bomba, uma bomba atômica ou uma bomba de hidrogênio. Há gente que as constrói e as utiliza e isto não é entendido como uma profanidade. Por outro lado, se escuta uma palavra, te tiram uma onda. Eles queriam dizer que as palavras seguramente tem seu poder, mas os governos e estados tem outro tipo de poder e usam sua lei, seus exércitos, seus policiais e tudo para impor um tipo de obscenidade às pessoas diariamente. E suas ações não se entendem como obscenidade. A mim não me molestam as palavras porque todos as usamos. A questão é para quê.

Michael > Falando das palavras, sei que as usa para falar dos grandes músicos que você como jornalista entrevistou, entre eles Bob Marley. Conte-nos sobre isto.

Mumia < Uau! Em que ano foi?  1980, creio. Ele havia chegado a Filadélfia e se encontrava em um hotel na cidade. Falei com seu agente e consegui uma entrevista. Fui ao hotel com uns irmãos e, como te direi? Compartimos o sagrado sacramento.

Michael > (risos) Ah sim, a comunhão, como não.

Mumia < Tremendo. Poderoso. (risos) Bob Marley era uma alma realmente linda. Uma alma amorosa negra. Uma alma amorosa do mundo. Fizemos uma entrevista de mais ou menos vinte minutos.

Michael > Sim, te escutamos.

Mumia < Ele falava de como quisera que o povo negro neste país conhecesse ao movimento rastafári e escutasse ao reggae, que usasse dreadlocs e pensasse na África, coisas assim. Doía-lhe que poucas pessoas negras neste país assistissem a seus shows ou escutassem sua música ou a de outros artistas do reggae. E isto era certo naquele momento. Não acredito que seja agora. Mas sim o doía. Na verdade fizemos uma entrevista maravilhosa, muito bonita. Foi algo do mais memorável na minha vida, conhecer um dos meus heróis musicais, Bob Marley.

Michael > E falando de entrevistas maravilhosas, esta está para terminar. Conte pra gente nos últimos quarenta segundos, quem são alguns dos seus favoritos MCs e artistas de hip hop. Seguramente Public Enemy, Dead Prez, The Coup, Immortal Technique.

Mumia < Eu gosto dos irmãos que dizem muita verdade e colocam muita alma, muito espírito em sua música. KRS é lendário. Existem muitos irmãos talentosos e irmãs também.

Michael > Immortal Technique. Que acha?

Mumia < Immortal Tech. Um monstro.

Tradução > Caróu

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agência de notícias anarquistas-ana

No final da tarde

compridas sombras no muro.

E o som dos teus passos...

Regina Carvalho

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