[EUA] Entrevista a
Mumia Abu-Jamal sobre a música negra
[Mumia conversa com
Michael Coard sobre música negra desde os tempos da escravidão até a época do
hip hop, passando por sua entrevista com Bob Marley em 1980. É o segundo
episódio do Radio Prision Show realizado em 3 de julho em 900AM-WURD,
na Filadélfia. Agora este programa se transmite todas as primeiras
quartas-feiras de cada mês, às 11 horas da manhã, durante o último segmento do
programa Radio Courtroom (Tribunal pela Rádio). Se perdeste o
programa, leia a transcrição abaixo.]
Michael Coard > Este
é o Radio Prision Show, um segmento do Radio Courtoom Show, aqui em
900AM WURD, apresentando Mumia Abu-Jamal. Vocês se lembrarão de que mês passado
Mumia esteve conosco para a estreia do Radio Prision Show. Vamos conversar
sobre vários temas, mas para alguns de vocês que talvez não conheçam o nome de
Mumia Abu-Jamal, digamos que tem vivido em uma jaula durante as últimas duas
décadas, permitam-me lhes dizer quem é: um pai, um esposo, um autor e um
inquilino temporário de uma prisão, mas um revolucionário permanente. Sem mais
delongas, aqui está conosco Mumia Abu-Jamal. Como está Mumia?
Mumia Abu-Jamal < Mais
ou menos bem, Michael. É um bom dia para estar vivo. E um bom dia para estar
conversando contigo.
Michael > Bem
dito, Mumia. Tenho que te dizer que no mês passado quando fizemos nosso
primeiro programa, a sala estava abarrotada, não sobravam assentos, se tal
coisa é possível para um show de rádio. As pessoas ficaram assombradas. As
convidei a mandar suas perguntas para conversar contigo sobre elas, mas disse
que nos primeiros programas queremos escutar sua voz e o que tem a dizer. Agora
estamos no mês de julho e você vai estar conosco nas primeiras quartas-feiras
de cada mês. Mas uma das coisas que não tivemos a oportunidade de conversar
contigo foi a respeito de música. Impressiona-me cada vez que escuto mais sobre
você. O que quero dizer é que conheço seu trabalho para os despossuídos, os
desamparados, conheço sua luta como revolucionário, mas esta não é a totalidade
de Mumia Abu-Jamal. De fato, me interei ao conversar com outras pessoas que
você sabe muito mais de música que alguns chamados profissionais da música.
Alguém me perguntou por que não havia falado contigo mês passado sobre o mês da
Música Negra e o que significa para você, o que significa para nosso povo e o
que significa para os revolucionários, porque há aqueles que pensam que se você
está ai, na primeira linha lutando pelas pessoas, não pode apreciar a música.
Fale-nos sobre tudo isto, começando com a importância da música, se é que é
importante, e em particular a música negra.
Mumia < Então,
acho que a música negra tem uma importância vital. Quando pensa em nossos
antepassados que chegaram principalmente de várias partes da África Ocidental,
o que nos ajudou a suportar a noite escura da escravidão foi a música. Por que
seria um crime tocar tambores? O que aprenderam os inteligentes observadores da
gente africana foi que na África e em outras partes das Américas, era possível enviar
mensagens sobre imensos espaços com os tambores. Assim se comunicaram e por
isso o fizeram ilegal. O que fizemos é o que sempre fazemos. Usamos o que
tínhamos para superar a situação e prevalecer. Os irmãos e irmãs em grilhetas
bailaram. Seus pés descalços golpearam a terra. Bailaram. Cantaram. Deixa eu te
dar um exemplo.
Michael > Sim,
sim.
Mumia < Há
vários anos li um livro autobiográfico escrito por uma das pessoas mais
importantes das Américas. Chama-se “A Narrativa da Vida de Frederick Douglass”,
publicado primeiro em 1845. Te dou uma breve citação.
Michael > Sim,
por favor.
Mumia < É
sobre o poder das canções que se conhecem como “as espirituais”, para que
entenda. Diz: “Quando eu fui escravo não compreendi o significado profundo
dessas canções rudes e aparentemente incoerentes, eu mesmo estava dentro do
círculo, por isso não via, tampouco escutava o que alguém de fora poderia ver
ou escutar. Contaram uma história de infortúnio que ia além de minha pobre
compreensão. Os tons eram fortes, longos e profundos. Exaltaram as preces e
queixas de almas que ferviam com a angústia mais amarga. Cada tom foi um
testemunho contra a escravidão e uma oração a deus para libertá-los de suas
correntes. Escutar essas notas selvagens sempre deprimia o meu espírito e me
enchia de uma tristeza indescritível. Com frequência eu chorava ao escutá-las.
Até agora a repetição dessas canções me aflige. E enquanto escrevo estas linhas
uma expressão de sentimento me corre pelo rosto. Essas canções me levaram a
minha primeira tênue percepção do caráter desumanizante da escravidão. Nunca
posso me desfazer dela. Essas canções me perseguem para afiar meu ódio pela
escravidão e avivar minha simpatia com meus irmãos e irmãs em grilhões”.
Este é Frederick
Douglass quem nos dá um sentido da força que nossa gente conseguiu comunicar,
do profundo sentimento que transmitiram em nossas “espirituais”, as quais eram
nossa primeira forma de música nas Américas. Devido ao fato desta ser a nossa
única maneira de se expressar, houve uma explosão, geração após geração de
gente negra se expressando através da música. Este era o espaço onde dizíamos:
somos seres humanos, exigimos liberdade e isto é o que sentimos. Era uma
maneira de nos comunicarmos não só entre nós, senão com todo o mundo. E agora,
que música negra não é mundial? O rap se escuta em cada canto do planeta. A
música pode ser uma ferramenta revolucionária se usada corretamente.
Michael > Bem
dito, Mumia, e me agrada que ao princípio de seu comentário deixou claro que
estava citando a narrativa de vida de Frederick Douglass escrita em 1845. Se
você não tivesse esclarecido, eu poderia ter pensado que se referia a John
Coltrane em 1965.
Mumia < (risos)
Soa assim, sério?
Michael > Absolutamente.
É muito poderoso. Antes que se acabe o tempo Mumia, gostaria de escutar seu
ponto de vista sobre o rap, sobre o hip hop. Tenho lido seus escritos sobre
muitos artistas. O que diz agora? Eu dou aulas sobre hip hop e me parece que
muitas pessoas que tem mais de 40 anos o desaprovam. Dizem que é destrutivo,
que é negativo, que não tem nada a ver com os velhos tempos, com a idade
dourada do hip hop. Que acha disso tudo?
Mumia < Se
me permite, tenho duas respostas. Uma é de memória e outra é uma nota que escrevi
em preparação para momentos como este.
Quando Miles, o
grande Miles Davis ainda vivia e estava tocando todo tipo de música, algumas
pessoas o criticavam por suas mudanças, suas adaptações, suas criações. E
Miles, sendo Miles, disse “Só há dois tipos de música – boa e ruim”. Pois bem,
existem dois tipos de rap, bom e ruim. A música que te prende obviamente é a
boa. A que não te alcança é ruim para você. Mas eu entendo que não se componha
para pessoas de sua idade ou para minha idade. Compõe-se para gente mais jovem.
Michael > Sim,
sim.
Mumia < Tenho
outra citação. Do livro de Jay-Z, “Decoded” (Decifrado). Esta citação me
impressionou porque penso que nos diz muito: “Penso que nós, os rappers, os
DJs, os produtores fomos capazes de contrabandear algo da magia daquela
civilização moribunda em nossa música e usá-la para construir um novo mundo.
Éramos meninos sem pais. Por isso encontramos nossos pais na cera, nas ruas e
na história. Em certo sentido, isto é um presente. Podemos escolher os
antepassados que haviam inspirado o mundo que íamos criar para nós mesmos. Era
parte do espírito e valores dos tempos e do lugar e se incorporou na cultura
que nós criamos. Já se tinham partido nossos pais. Normalmente, se recuperaram.
Mas tomamos seus velhos discos e os usamos para construir algo fresco”.
Isto é poderoso em
muitos níveis.
Michael > Sim,
é sim. Nunca imaginei que chegaria o dia quando estaria citando Mumia e Jay-Z
ao mesmo tempo, mas é exatamente o que vou fazer. Mumia, você mencionou que há
bom rap e mal rap. Qual sua posição sobre a chamada vulgaridade, a profanidade
que vem até dos chamados rappers conscientes ou progressistas? Vê isso como
algo desfavorável, algo negativo?
Mumia < Bem,
eu não sou doutrinário sobre isso, por haver estado perto do pessoal do MOVE
durante tantos anos, me acostumei a escuta-los usar o que se chama de
“profanidade”. Mas eles dizem que não há nada mais profano que uma bomba, uma
bomba atômica ou uma bomba de hidrogênio. Há gente que as constrói e as utiliza
e isto não é entendido como uma profanidade. Por outro lado, se escuta uma
palavra, te tiram uma onda. Eles queriam dizer que as palavras seguramente tem
seu poder, mas os governos e estados tem outro tipo de poder e usam sua lei,
seus exércitos, seus policiais e tudo para impor um tipo de obscenidade às
pessoas diariamente. E suas ações não se entendem como obscenidade. A mim não
me molestam as palavras porque todos as usamos. A questão é para quê.
Michael > Falando
das palavras, sei que as usa para falar dos grandes músicos que você como
jornalista entrevistou, entre eles Bob Marley. Conte-nos sobre isto.
Mumia < Uau!
Em que ano foi? 1980, creio. Ele havia chegado a Filadélfia e se
encontrava em um hotel na cidade. Falei com seu agente e consegui uma
entrevista. Fui ao hotel com uns irmãos e, como te direi? Compartimos o sagrado
sacramento.
Michael > (risos)
Ah sim, a comunhão, como não.
Mumia < Tremendo.
Poderoso. (risos) Bob Marley era uma alma realmente linda. Uma alma amorosa
negra. Uma alma amorosa do mundo. Fizemos uma entrevista de mais ou menos vinte
minutos.
Michael > Sim,
te escutamos.
Mumia < Ele
falava de como quisera que o povo negro neste país conhecesse ao movimento
rastafári e escutasse ao reggae, que usasse dreadlocs e pensasse na África,
coisas assim. Doía-lhe que poucas pessoas negras neste país assistissem a seus
shows ou escutassem sua música ou a de outros artistas do reggae. E isto era
certo naquele momento. Não acredito que seja agora. Mas sim o doía. Na verdade
fizemos uma entrevista maravilhosa, muito bonita. Foi algo do mais memorável na
minha vida, conhecer um dos meus heróis musicais, Bob Marley.
Michael > E
falando de entrevistas maravilhosas, esta está para terminar. Conte pra gente
nos últimos quarenta segundos, quem são alguns dos seus favoritos MCs e
artistas de hip hop. Seguramente Public Enemy, Dead Prez, The Coup, Immortal
Technique.
Mumia < Eu
gosto dos irmãos que dizem muita verdade e colocam muita alma, muito espírito
em sua música. KRS é lendário. Existem muitos irmãos talentosos e irmãs também.
Michael > Immortal
Technique. Que acha?
Mumia < Immortal
Tech. Um monstro.
Tradução > Caróu
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