Brecht, Walter Benjamin e o “novo ruim”.
Avanço do virtual, agora mais intenso, reforça a naturalização da vida: a ilusão de que o que ocorre é necessário e inevitável. Mas arte e técnica podem mostrar as entranhas da condição social e o mundo como construção precária e transformável
1. No ano de 1938, Walter Benjamin visita pela terceira vez o amigo Bertolt Brecht, que então vivia exilado em Svendborg, Dinamarca, um dos muitos lugares por onde o dramaturgo alemão passaria ao longo dos seus quinze anos de desterro, transitando entre a hospitalidade e a hostilidade.Benjamin em breve seria, como sabemos, o autor das teses
“Sobre o conceito de história”, últimos e incontornáveis escritos antes da sua
opção pelo suicídio, em 1940, como forma de escapar da violência da Gestapo
hitlerista. Não obstante, naquele ano de 1938, mais precisamente em 25 de agosto,
o que o filósofo anota em seu diário íntimo é algo muito conciso, em certo
sentido, algo mínimo.
Nessas páginas, onde Benjamin registra os debates, os
confrontos, as partidas de xadrez que, ao longo dos dias, mantém com Brecht,
encontramos lapidada, com efeito, em pouquíssimas palavras, “uma máxima
brechtiana”; máxima que propõe o seguinte: “não partir do antigo bom, mas do
novo ruim” (em Ensaios sobre Brecht).
Em tamanha concisão, hoje nada seria mais preciso e urgente.
É como se fôssemos tomados por um eco do passado dirigido às emergências do
nosso presente. Quer dizer, somos interpelados por uma exigência cifrada há
mais de 80 anos, sob a ameaça do nazifascismo, exigência que permanece neste
nosso presente destemperado e pungente, ameaçado pelas formas contemporâneas do
autoritarismo.
2. O novo ruim: eis de onde devemos partir, para
que não seja normalizada, sem mais, a catástrofe do “novo normal”. Esta seria a
posição crítica a ser adotada nestes tempos que, imagino, teriam colocado
Benjamin diante de impasses inauditos a respeito da amplitude assumida pela
reprodutibilidade técnica; tempos que, nesse sentido, ainda, parecem pedir o
reforço não só de nossas capacidades de compreensão das técnicas, mas,
sobretudo, de um gesto caro a seu amigo e parceiro de xadrez: um gesto que
muitas vezes é chamado de distanciamento, ou estranhamento.
Sabemos que Benjamin não recuava perante as mais avançadas
tecnologias do seu tempo. Além de postular que um posicionamento político e
estético antifascista deveria ser alcançado não com o rechaço, mas sim,
justamente, por meio das técnicas modernas de reprodução
(principalmente o cinema), Benjamin foi, ele mesmo, entre o final dos anos 1920
e o início da década de 1930, um speaker em rádios alemãs, falando a
crianças e jovens sobre assuntos nada distantes dos seus ensaios mais
exigentes.
Brecht não destoava dessa posição em seu pensamento crítico
sobre o teatro. Palavras de Benjamin: “As formas do teatro épico correspondem
às novas formas técnicas, o cinema e o rádio. Ele está situado no ponto mais
alto da técnica”.
Com efeito, o dramaturgo propunha que a superação da
identidade emocional entre o público e as ações encenadas, ou ainda, que a
interrupção das prescrições miméticas e catárticas do teatro clássico
“naturalista” deveria ser alcançada não fora ou para além do teatro, mas pela
mobilização radical dos seus próprios recursos e artifícios. Assim, o teatro
deveria interpelar o público ao expor o mundo humano como uma construção
contingente, portanto passível de transformação, ao mesmo tempo em que deveria
se expor, ele mesmo, como construto, como técnica de exposição.
3. O título de um poema de Brecht sintetiza bem essa
operação – “O mostrar tem que ser mostrado” – e seus versos dão contorno ao
programa do teatro épico:
[…]
Eis o exercício: antes de mostrarem como
Alguém comete traição, ou é tomado pelo ciúme
Ou conclui um negócio, lancem um olhar
À plateia, como se quisessem dizer:
Agora prestem atenção, agora ele trai, e o faz deste modo.
Assim ele fica quando o ciúme o toma, assim ele age
Quando faz negócio. Desta maneira
O seu mostrar conservará a atitude de mostrar
De pôr a nu o já disposto, de concluir
De sempre prosseguir. […]
Assim como Benjamin, Brecht sabia que na modernidade o
problema da arte confina com o problema da política porque, para ambas, a
exposição mediada pelas técnicas é decisiva. Obras de arte, artistas, públicos
e políticos – todos compartilham, desde então, os mesmos espaços de exposição;
todos se medem, cada vez mais, com as técnicas de reprodução, isto é, com as
mediações que montam e desmontam, que modulam, compõem e recompõem o mundo que
eles compartilham e disputam.
E se, a priori, o teatro pareceria escapar a esse
destino, pelo fato de se valer de atores que confrontam o público diretamente e
de cenas – por assim dizer – sempre originárias, desempenhadas sem edição, o
que o teatro épico de Brecht propõe se aproxima, sim, da transformação causada
pelo cinema na exposição de atores e políticos, igualmente. Pois vale para o
teatro épico o que Benjamin escreveu a respeito da técnica cinematográfica:
“Seu objetivo é tornar ‘mostráveis’, sob certas condições sociais, determinadas
ações de modo que todos possam controlá-las e compreendê-las”.
Ao romper com o ilusionismo da cena, com seu andamento
supostamente natural, Brecht faz intervir o teatral, vale dizer, o caráter
artificial, não só do teatro, mas também das condições sociais, dessa nossa
“realidade”, que tantas vezes é vista como necessária e inegociável. E com isso
seu teatro afirma que, na arte como na política – nos modos da representação e
nos meios da representatividade –, se o objetivo é a transformação da vida em
comum, é preciso, então, não apenas mostrar; na mesma medida é necessário
mostrar que se mostra, mostrar-se. Expor as formas de exposição: o que está em
jogo com esse gesto é, não a reprodução do que já é vivido, mas a produção de
formas de vida ainda possíveis.
4. As fundamentais medidas de preservação da vida – de
toda vida – deveriam ser, estas sim, absolutamente inegociáveis. Mas, para
muito além dessa conduta de fato ética, o chamado “novo normal”, entre outros
aspectos muito problemáticos, apresenta-se, notadamente, como normalização da vida
virtual. E se tampouco em nossos dias as respostas devem ser buscadas na recusa
das técnicas mais avançadas, essa normalização definitivamente é algo que
deveria ser submetido a uma crítica severa e constante.
Respostas políticas e estéticas afirmativas de uma vida
comunitária somente serão possíveis com a exposição e o exame da realidade
produzida pelas técnicas. Nesse sentido, é preciso mostrar que, em geral, a
atual naturalização da virtualidade parece não reforçar a compreensão da
contingência do mundo humano, ou seja, da possibilidade de transformá-lo. Ao
contrário, parece cristalizar uma suposta certeza, sem dúvida arrogante: a
certeza de que tudo que se dá é necessário, obrigatório, inevitável. Trata-se
de uma lógica conservadora que, não raro, é perversamente associada ao discurso
do progresso, do avanço, da evolução etc.
Afinal, conhecemos bem o elogio dos fluxos desimpedidos; o
elogio da comunidade global sem hierarquias; da revolução dos conteúdos, dos
afetos e das identidades; o elogio das novas formas de intimidade; do acesso e
da autonomia usuária a qualquer hora e da entrega em casa just in
time. Conhecemos, em suma, essa forma de apropriação que capitaliza a
energia transformadora do mundo e limita nossas ações à escolha entre produtos
e serviços (zoom, meet, facebook, instagram…), evitando assim as
questões mais urgentes, que na verdade são as mais básicas.
O mundo virtual não reforça formas de exclusão? Que tipo de
trabalho o sustenta? Quem gerencia as informações das plataformas e redes sociais?
O que fazem com esses dados? A vida nos espaços públicos se intensifica? As
demandas coletivas se reforçam? Essa estranha intimidade distanciada e exposta
produz novos sujeitos? Em que medida essas formas de subjetivação nos
interessam? É um problema a exposição da intimidade de muitos gerar lucro para
pouquíssimos? E, para além da exposição, a virtualidade de fato intervém nas
partilhas do mundo? Ela favorece, efetivamente, a produção de novas condições
sociais, de realidades alternativas mais igualitárias?
As respostas devem ser matizadas: às vezes sim, às vezes
não, em outras vezes, parcialmente. Seja como for, são perguntas como essas
que, a meu ver, devem orientar, por exemplo, o debate sobre o uso na educação –
e sobretudo na educação pública – de plataformas privadas ligadas ao mercado do
chamado big data, assim como devem orientar a discussão sobre o fato de,
hoje, cada usuário online ser “automaticamente” um produtor e, ao
mesmo tempo, um consumidor de conteúdos.
Esse trabalho imaterial, segundo Peter Pál Pelbart, é
uma das definições do mundo virtual. E responder criticamente a ele não é uma
tarefa simples, já que através desses fluxos virtuais formatamos nossos gostos,
condutas, sonhos, opiniões – nossos afetos. Como escreveu o autor em A
vertigem por um fio, produzimos e consumimos “cada vez mais maneiras
de ver e de sentir, de pensar e de perceber, de morar e de vestir, ou
seja, formas de vida”. Daí a complexidade da situação.
5. Apesar das diferenças sobre os modos do
posicionamento político-partidário (bem sinalizadas em Quando as imagens
tomam posição, de Georges Didi-Huberman), Benjamin e Brecht demarcaram em torno
das técnicas de reprodução e exposição o ponto da crise, da crítica e da
criação.
No teatro épico, o público deixa de ser um espectador: ele é
chamado a atuar, pois deve avaliar e tomar decisões sobre o que é mostrado. O
homem e a sociedade são confrontados pela investigação que os afasta do
conhecido, do que seria “natural”. Nada mais próximo de Benjamin, que afirmava
que através do cinema a realidade podia ser vista como uma segunda natureza:
produzida como uma flor azul no jardim da técnica.
Claro, somos desde o início criaturas prometeicas, ou seja,
fomos e somos algo como deuses, mas com próteses, como sugeriu Freud em O
mal-estar na civilização. Por isso, diante desse nosso mal-estar, diante
do novo ruim, talvez a estratégia seja reforçar a exposição da nossa
natureza de segunda ordem: nossa natureza técnica.
O mundo virtual não deixa de ser um imenso palco, uma cena
montada, produtora de inúmeros efeitos reais. Não podemos naturalizar essa
condição. Se não conseguirmos expor os artifícios que criamos e que também nos
criam, não conseguiremos criticá-los, compreendê-los e controlá-los.
Benjamin escreveu que, no teatro de Brecht, o palco ainda
ocupa uma posição elevada. Mas com uma diferença fundamental: em sua elevação,
o palco já não tem nada de sublime, mágico ou extático. O que nele se
desempenha é o estranhamento do mundo que até agora construímos. Quem sabe
desse estranhamento resulte uma tomada de posição que coincida com a
interrupção dos acontecimentos e com a sua leitura a contrapelo. Afinal, esse
mundo estranho é o mundo ordinário, o nosso mundo humano de todos os dias. Um
mundo de próteses e técnicas, artes e artifícios que é, sim, contingente.
Modificar esse mundo profundamente é o papel dos atores de hoje.
Fonte: https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/brecht-walter-benjamin-e-o-novo-ruim/
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