O contrato de vassalagem e a cegueira estratégica dos
militares
Na verdade, é a insegurança generalizada e crescente em que
se debate, agoniada a humanidade de hoje, o ópio venenoso que cria e alimenta
estas hórridas visões, capazes, entretanto, de se tornarem uma realidade
monstruosa.
Golbery do Couto e Silva, Conjuntura, Política Nacional, o Poder Executivo
& Geopolítica do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2ª ed. 1981,
p. 9.
***
Nunca houve consenso ideológico dentro das Forças Armadas brasileiras, e sempre
existiram militares que foram democratas, nacionalistas e comunistas. O mais
famoso talvez tenha sido o capitão Luiz Carlos Prestes, que participou do
“movimento tenentista” dos anos 20 e da “Revolta dos 18 do Forte” de
Copacabana, e depois liderou – ao lado do Major Miguel Costa – a famosa Coluna
que marchou pelo Brasil, durante 2 anos e 5 meses, antes de ser derrotada,
defendendo a justiça social, a universalização do ensino gratuito e a adoção do
voto secreto nas eleições brasileiras. E mesmo depois da Segunda Guerra
Mundial, houve muitos que se opuseram aos golpes de Estado de 1954, 55, 61 e
64, e que tiveram participação importante na luta pelo monopólio estatal do
petróleo e pela criação da Petrobras. Mais do que isto, sempre houve militares
que defenderam a centralidade do Estado no desenvolvimento econômico e la luta
contra a desigualdade social do Brasil.
Mesmo assim, não há dúvida de que a grande maioria dos oficiais brasileiros,
sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial, foi sempre conservadora e de
direita, golpista e partidária da submissão militar do Brasil aos Estados
Unidos. E foi essa tendência majoritária e conservadora que sempre venceu e se
impôs, dentro e fora das FFAA, em todos os momentos cruciais da história
política brasileira dos últimos 80 anos. E agora de novo, foram eles que
venceram com o golpe de Estado de 2016 e a instalação do atual governo; e foram
eles que reestabeleceram a vassalagem militar do Brasil com relação às Forças
Armadas e à política externa dos Estados Unidos. Por isso cabe perguntar-se: em
que consiste exatamente a “vassalagem moderna” entre Estados nacionais
soberanos? Qual é a aposta ou expectativa dos militares brasileiros, depositada
neste tipo de relacionamento com os Estados Unidos, e mais recentemente, também
com relação a Israel? E sobretudo, quais as consequências de curto e longo
prazo, desta relação de vassalagem, para o Estado e a sociedade brasileira?
Do ponto de vista estritamente contratual, os acordos modernos de vassalagem
militar garantem ao “Estado-vassalo” a venda de armas e munições mais
sofisticadas, e de algumas “tecnologias de ponta” controladas pelo
“estado-suserano”, em troca de recursos e minerais estratégicos do país
vassalo, e da cessão de suas tropas para as guerras da potência dominante. E
emm muitos casos, esse contrato também envolve – como na Colômbia – a cessão de
território para instalação de soldados e bases militares norte-americanas. No
período da Guerra-Fria, essas armas foram entregues ao Exército brasileiro para
combater os “países comunistas”. Mas hoje não está claro quem seja o inimigo
brasileiro, e o que pretendem fazer suas Forças Armadas com este armamento mais
sofisticado e destrutivo que receberão dos Estados Unidos. Contra quem
pretendem utilizá-las? Se for contra as Grandes Potências, serão inúteis porque
elas dispõem do poder atômico que o Brasil não tem, mas se for contra seus
vizinhos sul-americanos, isto acabará provocando uma corrida armamentista no
continente, uma vez que não se pode supor que os outros não façam o mesmo que
no Brasil. E quem pode sair ganhando com a transformação da América do Sul num
grande comprador de armas? E qual o custo dessa loucura para um continente que
já é pobre e que sairá ainda mais pobre da atual pandemia do coronavírus? Neste
sentido, cabe perguntar aos militares brasileiros se eles já fizeram este
cálculo, e se eles têm clara a herança que deixarão para seus filhos e netos, e
sobretudo para a grande maioria dos brasileiros que não são militares e que não
têm nada a ver com essas armas que lhes serão financiadas e favorecidas em
troca de sua vassalagem?
Mas além disto, a expectativa de todo “Estado vassalo” é obter também vantagens
econômicas de sua vassalagem, sob a forma do livre acesso aos mercados e
investimentos da “potência-suserana”. Foi assim que de fato, durante a Guerra
Fria, em particular entre 1950 e 1980, a vassalagem brasileira foi compensada
pelo apoio norte-americano ao projeto desenvolvimentista dos militares
brasileiros daquela época. E neste sentido se pode dizer, inclusive, que o
chamado “milagre econômico” da ditadura militar” foi uma espécie de réplica
latina do “desenvolvimento a convite” da Coreia, de Taiwan, do Japão ou mesmo
da Alemanha, e de quase toda a Europa que foi favorecida pelo Plano Marshall.
Essa situação, no entanto, não se repetiu em lugar nenhum do mundo depois da
década de 80, quando os Estados Unidos abandonaram sua estratégia econômica
internacional do pós-Segunda Guerra inaugurada pelos acordos de Bretton Woods,
de 1944, e adotaram sua nova estratégia de desregulação e liberalização
selvagem dos seus mercados periféricos, que foi experimentada depois do golpe
militar chileno de 1973, mas que só chegou ao Brasio na década de 90. E agora,
mais recentemente, a expectativa de que os Estados Unidos possam ajudar o
desenvolvimento econômico de seus “vassalos”, já na terceira década do século
XXI, não tem pé nem cabeça. Neste momento, a economia americana está sendo
atropelada pela “crise epidêmica”, mas mesmo antes disto, o governo de Donald
Trump já havia adotado uma política econômica “de tipo nacionalista”, com a
proteção de seu mercado interno e de sua indústria, e com a defesa
intransigente de seus produtores de grãos e alimentos, que concorrem diretamente
com o agro-business brasileiro.
Assim mesmo, é impossível imaginar um governo que seja mais subserviente e
lambe-botas de Donald Trump que o atual governo brasileiro. No entanto, nos
últimos dois anos, o Brasil não logrou nenhum acordo comercial significativo
com os Estados Unidos e não obteve nenhuma vantagem ou favorecimento especial
do governo norte-americano. Pelo contrário, o Brasil já foi objeto de várias
retaliações e humilhações econômicas do governo Trump, sem que tenha dito uma
só palavra de protesto ou defesa de seus próprios interesses nacionais. E para
além dos Estados Unidos, o Parlamento Europeu rejeitou recentemente o acordo
comercial que havia começado a tramitar, entre a União Europeia e o Mercosul,
como forma de retaliação explícita contra o o governo do Sr, Bolsonaro. E para
culminar, nos últimos 12 meses, a fuga dos investidores privados estrangeiros
do Brasil mais que dobrou, não havendo nenhuma expectativa de reversão dessa
tendência que, pelo contrário, deve piorar ainda mais. Por tanto, até agora, a
nova vassalagem militar do Brasil não trouxe nenhuma vantagem econômica, nem de
mercados abertos nem de investimentos
Os bufões do atual governo não entendem nada de economia, nem sabem o que seja
o capitalismo. Mas o mais grave é que seus militares não também não consigam
entender que seus novos aliados econômicos – diferentemente do período da
Guerra Fria – são financistas; e que, no capitalismo contemporâneo, os
financistas não necessitam do crescimento econômico do PIB, para aumentar seus
lucros e acumular sua riqueza privada. Basta dizer que nos últimos cinco meses
em que a pandemia do coronavírus destroçou a economia mundial, a riqueza
financeira do mundo cresceu 25%, para mais de US$10 trilhões, e o patrimônio
dos 42 maiores bilionários brasileiros, quase todos financistas, cresceu US$34
bilhões. E enquanto os militares do governo não entenderem este aparente
paradoxo capitalista, nem conseguirem perceber que sua vassalagem contemporânea
não lhes trará vantagens econômicas, eles seguirão se debatendo para controlar
este governo” que ajudaram a criar, que consegue ter, ao mesmo tempo, um
chanceler que ataca a China e a globalização econômica, enquanto seu ministro
de economia aposta todas as suas fichas exatamente na China e na globalização.
Por último, a “relação de vassalagem” moderna envolve também compromissos e
consequências estratégicas que não aparecem explicitados nos acordos militares.
Por exemplo, depois da Segunda Guerra Mundial, as FFAA brasileiras não
precisaram mais escolher seu “inimigo externo”, que passou a ser definido
diretamente pelos Estados Unidos. E durante toda a Guerra Fria, esse “inimigo”
foi a União Soviética, que não tinha o menor interesse nem a menor
possibilidade de atacar o Brasil, um país que estava inteiramente fora do
“jogo” das grandes potência”. Além disso, esta estranha condição de “inimigo do
inimigo dos outros” criou uma distorção permanente no comportamento do Exército
brasileiro, que se transformou numa polícia especializada no combate aos
“traidores internos”, ou seja, para começar, todos aqueles que divergissem da
posição norte-americana e da vassalagem militar brasileira. Foi assim que
nasceu a figura do “inimigo interno”, criada pela Doutrina de Segurança
Nacional formulada na década de pela Escola Superior de Guerra, imediatamente
depois da assinatura do Acordo Militar Brasil-Estados Unidos, de 1952. E foi
graças a essa verdadeira “cambalhota funcional” que as FFAA passaram a espionar
seu próprio povo, na busca constante e obsessiva do “ópio venenoso” e das
“hórridas visões” que estariam ameaçando a paz interna da sociedade e do estado
brasileiro, segundo as palavras do General Golbery do Couto e Silva, citadas na
epígrafe deste texto. E foi assim que nasceu e se consolidou historicamente a
relação direta entre a “vassalagem internacional” do Brasil e o “autoritarismo
nacional” das suas Forças Armadas, que passaram a denunciar como “inimigos” do
Estado todos aqueles que discordassem das suas próprias posições ideológicas, e
da sua cegueira estratégica.
Esta distorção das Forças Armadas explica porque depois da Guerra Fria, e
durante o período da uni-polaridade americana, os militares brasileiros
perderam sua bússola e ficaram sem inimigos claros durante quase vinte anos. E
quando tentaram definir um “inimigo externo” por sua própria conta, escolheram
a França[1], o que é pouco menos que ridículo, uma
vez que ela é hoje apenas uma potência intermediária declinante, que mal
consegue exercer alguma influência no norte da África e que, ainda por cima, é
adversária do governo venezuelano que os militares brasileiros tanto odeiam. E
como consequência, para recriar o seu o “boneco de pancada” ou “inimigo
interno”, tiveram que recorrer a uma invenção esdrúxula da ultradireita
norte-americana: um tal de “marxismo cultural”, que eu ninguém sabe o que seja,
mas que serviu para os militares brasileiros demonizarem todos os “movimentos
identitários”’ e “politicamente corretos”, e em particular, a um ex-presidente
da República, seu partido e seus militantes, apesar deles serem uma peça
essencial de todo e qualquer jogo democrático.
Esta confusão se mantem até hoje, mas o quadro alterou-se radicalmente no
momento em que o presidente Donald Trump elegeu o novo inimigo externo dos
Estados Unidos, em 2019, ao declarar sua guerra comercial e tecnológica contra
a China, e ao tentar polarizar o mundo em torno de seu contencioso com os
chineses. O problema, entretanto, é que no momento em que Donald Trump mudou
sua política externa, o Brasil já tinha se transformado numa economia
primário-exportadora dependente dos mercados e investimentos chineses, e está
cada vez mais difícil de transformar em inimigo estratégico do Brasil, o país
que é precisamente o seu principal parceiro econômico. Além disso, como os
chineses são pragmáticos e não se propõem a converter ninguém, fica ainda mais
difícil transformar os admiradores da China em “inimigos internos” do estado brasileiro,
como aconteceu com os comunistas durante a Guerra Fria.
No meio dessa “barafunda” ideológica e política, e do caos econômico que se
acentua a cada momento que passa, o homem comum se pergunta o que afinal tem a
dizer e propor os militares brasileiros com relação aos milhões de brasileiros
que hoje vegetam na miséria e na fome dos campos e das grandes cidades do país,
e que reclamam e protestam porque têm fome, mas não são “inimigos” do Estado
brasileiro, nem muito meos de suas Forças Armadas ?
E aliás, quem deu a estes senhores o direito, e de onde vem sua arrogância de
querer julgar e decidir quem são os bons, e quem são os maus brasileiros ?
13 de outubro de 2020
***
José Luis Fiori é Professor permanente de Economia Política Internacional do PEPI/UFRJ.
*Este artigo complementa nosso último texto sobre “A
lenta construção de um ‘Estado vassalo’ e o papel dos militares brasileiros”,
publicado em Carta Maior em 30 de setembro de 2020.
[1] “Elite militar brasileira vê França
como inimiga nos próximosm20 anos”, Folha de São Paulo, 10/02/2020
Fonte: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/O-contrato-de-vassalagem-e-a-cegueira-estrategica-dos-militares/4/48988
Nenhum comentário:
Postar um comentário