O apocalipse japonês explicado ao Ocidente
Como o 11 de setembro transformou os Estados Unidos, o 11 de março transformará o Japão. O cataclismo será um eletrochoque e a reconstrução se converterá no objetivo nacional do qual carecem hoje os japoneses? O fato de ter roçado o Apocalipse os levará a reconsiderar um modo de desenvolvimento, onde um único acidente pode transformar uma de suas megalópoles em um deserto envenenado? Estas perguntas dirigem hoje todo o futuro do Japão.
Imediatamente depois da tragédia que atingiu o Japão, os meios de comunicação ocidentais maravilharam-se diante das multidões de Tóquio que caminhavam em ordem na noite do terremoto sem manifestações de desespero e sempre contendo as lágrimas. Falou-se de estoicismo, dignidade, fatalismo, tabu...Essa atitude foi atribuída à formação (“todos os estudantes japoneses aprendem o que é preciso fazer em caso de terremoto”), ao costume (“no Japão, as fúrias da natureza fazem parte da vida”) e, às vezes, à manipulação (“os meios de comunicação ocultam o que é mais horrível”). Também falou-se muito de uma suposta mescla de Zen e cultura pop, desenhos e “mangás” (HQ japonesas), “cultura do efêmero” e “cultura do desastre” (1). Chegaram a recitar na televisão – sobre a tumba de barro onde jazem enterradas vinte mil vítimas – os antiquíssimos “haikus” para explicar aos telespectadores “por que os japoneses não choram” (2).
Como reação a essa avalanche midiática, outros denunciaram o velho fantasma orientalista de uma diferença inventada, e inclusive as reminiscências do “japonismo”, tão ao gosto dos ultranacionalistas nipônicos que querem demonstrar, por meio de anedotas e generalizações abusivas, que os japoneses constituem um povo cultural e geneticamente homogêneo cuja “essência” não se parece com nenhuma outra...(3).
No entanto, não podemos negar que as nações estão dotadas de uma “essência” e comprovamos que muitas delas são reconhecidas simbolicamente em uma grande narrativa fundadora. Os estadunidenses na conquista do Oeste e os franceses na tomada da Bastilha. Os japoneses possuem um cenário recorrente: o do cataclismo seguido de um renascimento. No mito original, a colérica deusa do sol Amaterasu, antepassada da família imperial, mergulha o mundo nas trevas antes de devolver a luz. Em uma época mais próxima, o Japão conheceu a longa paz do período Edo (1603-1868) que sucedeu dois séculos de anarquia sangrenta. A modernização nasceu da terrível irrupção, em 1853, das canhoneiras ocidentais nos portos de um arquipélago fechado ao mundo há mais de dois séculos. E o holocausto de Hiroshima foi o prelúdio do “milagre japonês” que converteu o país na segunda potência econômica do mundo.
A impregnação desta trama histórica nas mentalidades é reforçada pela contínua sucessão de catástrofes naturais que afetam o arquipélago: o regresso anual de tufões e deslizamentos de terras, erupções vulcânicas, terremotos e tsunamis. Nos últimos cem anos, o Japão sofreu 119 terremotos de magnitude superior a 6. Destes, 65 foram mortíferos, especialmente em Tóquio (140 mil mortos em 1923), no Sanriku (3.064 mortos em 1930), em Fukui (3.800 mortos em 1948) e em Kobe (6.437 mortos em 1995). A população, encurralada na franja costeira de um arquipélago acidentado, nunca teve outra opção que a de voltar a construir no mesmo lugar. Sempre conseguiu. O arquipélago possui uma experiência sem igual em matéria de cataclismos, mas ignora o fim do mundo que o cristianismo promete para a humanidade. O budismo não ameaça seus fiéis e o xintoísmo centra-se totalmente no ciclo da vida. Diante do Apocalipse cristão, no qual o ser humano não pode fazer nada e que só promete a ressurreição dos crentes no outro mundo, o Apocalipse made in Japan leva o germe de um futuro que devolve às pessoas o seu renascimento.
Isso é certo inclusive em relação a Hiroshima e contribui para explicar por que se desenvolveu no Japão a energia nuclear sem encontrar a oposição feroz que seria de se esperar em um país sofreu o fogo atômico. O holocausto nuclear, ainda que horrível, fechou um ciclo de hábitos guerreiros e de totalitarismo opressivo e abriu espaço para um novo Japão, pacifista, democrático e próspero. A atitude dos japoneses frente ao átomo reflete esta ambiguidade fundamental. Todos os pequenos baby bombers nipônicos aprenderam que o fogo nuclear foi um horror, mas todos se apaixonaram pelo Tetsuwan Atomu (Átomo poderoso), aliás Astroboy (4), o pequeno e valente robô criado em 1952 pelo “deus do mangá” Tezuka Osamu. Astroboy, que foi à escola com as crianças de sua geração e defendia o bem, a democracia e a igualdade entre as raças nos quatro cantos do mundo, tinha um coração atômico...A lei sobre o desenvolvimento da energia nuclear foi votada três anos depois de seu nascimento e o primeiro reator começou a funcionar em 1965, a menos de 150 quilômetros de Tóquio, enquanto a versão animada de Astroboy batia todos os recordes de audiência na tv pública NHK.
Desde a guerra, os cataclismos são uma fonte de inspiração inesgotável para a cultura japonesa. Os mangás, o cinema e os jogos de vídeo familiarizaram os japoneses com as imagens apocalípticas de maremotos gigantescos, cidades arrasadas, sucatas de veículos espalhados em paisagens devastadas e refinarias em chamas. Mas em meio século o gênero viveu uma evolução radica. Nos anos 70, o jovem sobrevivente de Hiroshima (Hadashi no Gen), cuja mãe fê-lo jurar na tarde do bombardeio atômico que lutaria por um mundo melhor, supera a prova com um otimismo incrível e um sentido muito claro de seu dever; no final, avança com entusiasmo na direção do futuro. Uma década depois, os heróis de Akira vagam entre as ruínas de Tóquio perseguindo objetivos pessoais insignificantes em relação ao cataclismo que destruiu a megalópole, e, no final, o mundo não é reconstruído.
A heroína de Nausicaa (cuja versão mangá de Hayao Miyazaky é muito mais complexa e sombria que o filme) decide que a humanidade que transformou o planeta em um inferno contaminado não merece recuperar seu domínio. Na virada do século XXI, em “A arma definitiva” ou “Dragon Head” ninguém mais sabe por que o mundo afundou, a loucura reina por todas as partes e uma morte solitária espera os adolescentes perdidos nesse desastre (5). Se o tema pós-apocalipse evoluiu desta forma em menos de cinquenta anos, pode-se perguntar legitimamente por esse elemento que aparece nesta “aguda consciência da precariedade (...) entre o sonho e a realidade” (6), que já inspirava os poetas da época de Heian (794-1185), e se é legítimo invocá-los para explicar a atitude dos japoneses de 2011...
Essa evolução também reflete a crise profunda do impulso nacional em um país que envelhece, debilitado por vinte anos de depressão econômica, traumatizado pelas reformas neoliberais implantadas desde princípios do século e paralisado por um sistema político sem alento. Como o 11 de setembro transformou os Estados Unidos, o 11 de março transformará o Japão. O cataclismo será um eletrochoque e a reconstrução se converterá no objetivo nacional do qual carecem hoje os japoneses? O fato de ter roçado o Apocalipse os levará a reconsiderar um modo de desenvolvimento, onde um único acidente pode transformar uma de suas megalópoles em um deserto envenenado? Estas perguntas dirigem hoje todo o futuro do Japão.
Notas:
(1) «Japon, la culture du désastre», Le Monde, 16 de março de 2011.
(2) Por exemplo, no programa «Un autre midi» (Canal+), 19 de março de 2011.
(3) Por exemplo Philippe Pelletier, geógrafo e especialista no Japão, no programa «Débats» de France 24, dia 15 de março de 2011.
(4) Astroboy. Publicado en Shônen de 1952 a 1968.
(5) Keiji Nakazawa, Hiroshima, 1973-1985; Katsuhiro Ôtomo, Akira, 1982-1990; Hayao Miyazaki, Nausicaa del Valle del viento, 1982-1994; Shin Takahashi, El Arma definitiva, 2000-2001; Dragon head, Minetaro Mochizuki, 1994-1999.
(6) «Ces Japonais à l’héroïsme poignant», Le Monde, 18 de marzo de 2011
(*) Jean-Marie Bouissou é diretor de investigação en Sciences Po (Paris), especialista en Japão contemporâneo. Sua última obra é: Manga. Histoire et univers de la bande dessinée japonaise, Philippe Picquier, Arles, 2010.
Tradução: Katarina Peixoto
Fonte: Carta Maior
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