O Leviatã e a classe dos Soberbos
O capitalismo moderno, para defesa da apropriação privada dos meios sociais de produção, passou a depender cada vez mais do seu cão de guarda armado, o Leviatã. Por Passa Palavra
16.02.2012 – Escadaria da 1ª Região Integrada de Segurança Pública, centro de Belo Horizonte. Policiais civis e militares de Minas Gerais, em cena talhada para um Estado do Espetáculo, posam exibindo à multidão de curiosos que se aglomerava na rua defronte ao prédio o produto do dia de sua caçada na região metropolitana da capital: 111 homens e mulheres presos, de um total ainda de 326 com mandados de prisão, entre traficantes, receptadores e trambiqueiros de variada gama. Operação planejada para ser deflagrada às vésperas do Carnaval, “para dar tranquilidade às famílias”. O titular da Secretaria de Segurança Pública, envolvido em desconfortável polêmica sobre maquiagem e censura de informações acerca da criminalidade no estado (veja box), resolveu não tergiversar: a operação “é uma das respostas do governo de Minas ao crescimento da criminalidade”.A razzia (953 policiais militares, 667 policiais civis, 421 viaturas), batizada de “Leviatã” – mesmo nome de operação com fins similares levada a cabo em 2009 pela Polícia Militar do Rio de Janeiro – , foi apresentada numa embalagem de sapiência: “inspirada na essência do Leviatã – ponto pacífico em qualquer Estado Democrático de Direito, que visa a supremacia dos interesses coletivos em detrimento dos individuais e da segurança em detrimento da desordem.”
O Leviatã de que se socorreram os corpos de segurança mineiros é o nome da obra clássica do filósofo inglês Thomas Hobbes. Desde sua publicação em 1651, vem sendo tomada como a bíblia sagrada das forças da ordem, desde as monarquias autocráticas dos séculos anteriores até quaisquer Estados democráticos de direito de nossos dias. Rasgando-se o rebuscamento terminológico, trata-se aqui sempre do Estado organizado em defesa do poder das classes proprietárias.
Hobbes em seu livro não faz distinções sociológicas; era uma época feudal, em que a futura estratificação social do capitalismo ainda adormecia. Mas Hobbes foi contemporâneo da Revolução Inglesa de Cromwell, e pôde assistir ao cercamento das terras comunais em benefício da nobreza e que esvaziou os campos dos antigos pequenos usufrutuários, incubando nas aldeias e cidades a futura massa do proletariado industrial.
Já de pé um século mais tarde, o capitalismo moderno, para defesa da apropriação privada dos meios sociais de produção – travestida ideologicamente em Propriedade como direito natural –, passou a depender cada vez mais do seu cão de guarda armado, o Leviatã.
Na defesa da propriedade e da estabilidade institucional o Leviatã é impiedoso. Em resposta à organização dos movimentos sociais ele se lança à violência contra greves, manifestações, ocupações e demais iniciativas coletivas vistas como ameaças aos privilégios dos proprietários governantes. A outra frente de repressão mais quotidiana do “Estado de direito” visa a camada do lumpemproletariado abertamente dedicada ao crime, e com a qual, aliás, a elite proprietária é atraída a ações de transação (veja aqui).
Na passagem bíblica que incitou a análise de Hobbes, Jeová discorreu a Jó sobre o monstro Leviatã: “[…] Os seus espirros fazem resplandecer a luz […] Da sua boca saem tochas; faíscas de fogo saltam dela. Dos seus narizes procede fumaça, como de uma panela que ferve, e de juncos que ardem. O seu hálito faz incender os carvões, e da sua boca sai uma chama. […] Debaixo do seu ventre há pontas agudas; ele se estende como um trilho sobre o lodo. […] Após si deixa uma vereda luminosa; […] Na terra não há coisa que se lhe possa comparar; pois foi feito para estar sem pavor. Ele vê tudo o que é alto; é rei sobre todos os filhos da soberba.” (Jó, 41-v. 18 a 34). Hobbes se confessou inspirado mais pelos dois últimos versículos, mas é uma ironia como os demais se ajustam à perfeição à descrição de como parece o Estado quando desafiado.
Quando planejam surtos espetaculosos à criminalidade endêmica no capitalismo, os homens de Estado, seja nas Minas Gerais ou em qualquer parte, buscam reconhecimento e legitimidade para seu monopólio da violência. E mais se reforçam porque seu temor é do inimigo maior: a multidão dos humildes e despossuídos, os únicos com potencial e potência para mandar ao monturo da pré-história humana os Soberbos e a soberba, e o Leviatã junto.Realidade do crime em Minas faz governo pirar o cabeção
O grau de confiabilidade das estatísticas produzidas pelo governo de Minas Gerais entrou em suspeição nas últimas semanas por conta da pantomima que se estabeleceu com os números referentes à criminalidade no estado. Da comemoração ruidosa da queda da criminalidade violenta em Minas até 2010, o governo mineiro passou todo o ano de 2011 segurando a divulgação dos números correspondentes, culminando com proibição expressa do governador a que qualquer “fração” da polícia do estado desse publicidade aos dados. Mas todo esse muro não conteve nem as inconfidências de membros das corporações sobre maquiagem de boletins, nem o constrangedor cotejo com outras fontes de informação sobre a realidade da violência em Minas.
As estatísticas organizadas na rubrica criminalidade violenta (homicídios, homicídios tentados, estupros, roubos e roubos à mão armada) eram divulgadas trimestralmente pela Fundação João Pinheiro, órgão estatal de formação de gestores públicos e de produção de informações, que, para não ter o brilho de sua seriedade empanado, adverte ao leitor que esses dados “são oriundos de sistemas de informações corporativos que pertencem às organizações do Sistema de Defesa Social [segurança] do Estado de Minas Gerais. A Fundação João Pinheiro não tem acesso aos dados primários ou às rotinas de produção ou registro destes dados e, portanto, não pode responsabilizar-se pela sua factibilidade.”
O governo do PSDB em Minas, desde a gestão Aécio Neves, trombeteia ser o mais moderno no planejamento da gestão pública do país, condensado na fórmula: metas e resultados, com índices de produtividade e bônus aos funcionários que cumprirem em seu setor o atingimento dos índices preestabelecidos.
Mas no setor da segurança pública a realidade em 2011 parece ter fugido ao planejamento das metas estatísticas, criando um salseiro nos gabinetes de comandos. O governador Antônio Anastasia e sua cúpula policial-militar souberam em primeira mão que a curva da criminalidade começara a subir em 2011. Como divulgar isso, considerado por ele uma derrota que aos inimigos aproveitaria?
Uma primeira atitude parece ter sido uma tentativa de adocicar a brutalidade dos dados, com a ajuda de um arsenal orwelliano. Policiais militares e civis confessaram em detalhes aos jornais Hoje em Dia e O Tempo como foram orientados a redigir boletins em que homicídio devia ser relatado como encontro de cadáver, tentativa de assassinato apelidada de lesão corporal, esta transmutada em agressão, que, por sua vez, devia dar lugar a atrito verbal; o roubo devia ser rebaixado a furto. Batata: na contabilidade parcial de companhias e delegacias os eventos violentos começaram a cair, e os abrandados a subir.
Também a página da internet Mapa de Georreferenciamento dos Homicídios, que permitia ao internauta conhecer data e local de cada assassinato no estado, bem como sexo e idade da vítima, lançada no final do governo Aécio, foi adormecida pouco depois de inaugurada, encontrando-se, desde o início do governo de seu pupilo Anastasia, em manutenção.
Mas uma divulgação pela Polícia Civil de aumento de 10% do número de homicídios em Belo Horizonte no período de janeiro a novembro de 2011 em relação a igual período de 2010, com projeção de chegar a 15% ao final do ano, parece ter frustrado e apavorado o governo. Daí a proibição à divulgação de informações. Mas diante de uma inédita reação de parte da imprensa mineira (jornais O Tempo e Hoje em Dia) – a qual, de resto, tem na submissão aos governos estaduais em geral e ao tucanato em particular sua marca definidora –, um início de indignação da opinião política no estado fez com que Anastasia não só revogasse sua proibição como anunciasse a retomada da divulgação dos boletins criminais a partir do dia 27 de fevereiro, e agora numa periodicidade mensal.
É aguardar para ver. Mesmo porque a qualidade da informação criminal de Minas não aparece bem na foto. Os mesmos jornais citados publicaram que as informações do governo estadual sobre homicídios registrados em Belo Horizonte, que até 2006 variavam a menor entre 2% e 3% em relação àquelas do banco de dados do SUS (Data-SUS), se descolaram e chegaram em 2010 a 15% de diferença. Já o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2011, publicado sob a responsabilidade da Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça (MJ), analisando os anos 2008 e 2009, lamentava haver “um grupo de Estados que chama atenção pela piora de cenário [da criminalidade] e agora estão entre os Estados que precisam investir urgentemente na melhoria dos seus dados. Entre estes, três compõem a Região Sudeste do país – Espírito Santo, Minas Gerais e Rio de Janeiro – e oscilaram negativamente, sendo agora classificados como Estados com informações precárias em termos de qualidade e fidedignidade. No caso de Minas Gerais, os dados que têm sido publicados nas edições anteriores do Anuário e informados ao MJ correspondem a uma média de 74% daqueles oficialmente publicados pelo governo mineiro. Há um descompasso de fontes que precisa ser equacionado e que compromete os fortes investimentos realizados pelo governo de Minas, nos últimos anos, na organização do seu sistema de justiça e defesa social.”
Fonte: http://passapalavra.info/
quinta-feira, 1 de março de 2012
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário