Se, por uma questão legal, o direito de propriedade só é legítimo quando esta cumpre com sua função social, os verdadeiros defensores da lei são os “invasores”, e seu transgressor, o próprio Estado. Por NEPAC-Unicamp [*]

São José dos Campos, 22 de janeiro deste ano de 2012. Assistimos ao que vem sendo considerada por alguns como a maior reintegração de posse da história do estado de São Paulo. O evento em questão ocorreu no terreno conhecido como Pinheirinho [1], que começou a ser ocupado por famílias de baixa renda no ano de 2003. Em uma megaoperação, que contou com um efetivo de 2 mil homens segundo informações do próprio comando da Polícia Militar, mais de 6 mil pessoas foram brutalmente desalojadas de suas residências e conduzidas para um “acampamento” montado pela Prefeitura Municipal. A operação terminou com um saldo de vários moradores feridos, cerca de 30 presos, sete pessoas desaparecidas e há denúncias (não confirmadas oficialmente) de que houve mortos na ação policial [2]. A julgar pela truculência da tropa de choque, que pôde ser testemunhada por milhares de pessoas através de vídeos divulgados na internet [3], não seria nenhuma surpresa se, de fato, vier a ser confirmada a existência de vítimas fatais na desocupação do Pinheirinho.


Essa ampla mobilização e articulação social resultou na conformação de um projeto político consolidado na ideia de “Reforma Urbana”, cuja proposta central consiste na desconcentração da estrutura fundiária e na democratização da gestão da cidade. Uma grande vitória desse movimento foi a inclusão do já mencionado Capítulo sobre a Política Urbana na Constituição “Cidadã” de 1988, que consagrou o princípio da função social da cidade e da propriedade. Este princípio jurídico assegura que os interesses econômicos do proprietário (de valorização do terreno) não podem se sobrepor ao direito humano de moradia. Na prática, esse dispositivo torna a especulação imobiliária ilegal, pois subordina o interesse individual do proprietário ao interesse da coletividade, o que veio a ser definitivamente regulamentado no ano de 2001 com a aprovação do Estatuto da Cidade. Isso significa que, a rigor, as decisões judiciais que autorizaram as reintegrações de posse do Pinheirinho e de vários prédios ocupados no centro de São Paulo recentemente foram tomadas com base em uma concepção jurídica incoerente com a legislação atual. E sabemos, claro, que isso não acontece por acaso.

Para evitar leituras simplistas e conclusões precipitadas, recordemos que a atuação do Estado não ocorre apenas nesta perspectiva. Em seu interior, existem conflitos que evidenciam os diferentes projetos políticos e ideológicos existentes na sociedade. Em artigo recente sobre o massacre do Pinheirinho, o qual qualificou como “uma das maiores agressões aos Direitos Humanos da história recente em nosso país”, outro distinto jurista brasileiro, Jorge Luiz Souto Maior, traz exemplos de decisões judiciais que evitaram despejos e reintegrações de posse com base no princípio jurídico da função social da propriedade em detrimento do direito individual do proprietário [5]. Inúmeros casos de decisões similares a estas podem ser encontradas na coletânea “Questões agrárias: julgados comentados e pareceres” [6], organizada por diversos juristas que também interpretam a lei na perspectiva do Estado de Direito Social, cuja obrigação consiste exatamente em garantir a aplicação concreta dos direitos sociais constitucionalmente estabelecidos, como é o caso do direito à moradia no Brasil.
Em tempo: não se trata de reduzir tudo a uma questão jurídica. Afinal, sabemos que este debate gira fundamentalmente em torno do terreno político-ideológico. Mas o argumento esboçado neste texto tem por objetivo ressaltar que a luta pela cidadania e pelo avanço da democracia em nossa sociedade passa inclusive pela dimensão jurídico-legal. Ademais, olhar a questão a partir desta perspectiva significa valorizar as conquistas históricas do Movimento pela Reforma Urbana no Brasil, e compreender, sobretudo, quais são os instrumentos disponíveis no presente contexto histórico que permitem conduzir as lutas sociais no plano imediato. Se rigorosamente implementada, nossa legislação urbana tocaria de forma profunda no coração do circuito de acumulação patrimonialista – um dos mais rentáveis e politicamente consolidados no Brasil –, o que afetaria diretamente os interesses econômico-financeiros de grupos poderosos que detêm sólidas relações com o sistema político institucional do país.

Notas
[*] O Núcleo de Pesquisa em Participação, Movimentos Sociais e Ação Coletiva (NEPAC) foi criado em 2008 e é coordenado pela Prof.ª Dr.ª Luciana Tatagiba, do Departamento de Ciência Política da UNICAMP. Maiores informações sobre o Núcleo podem ser acessadas no Diretório de Grupos de pesquisa do CNPQ.
[1] O pesquisador Inácio Dias de Andrade pesquisou sobre o Pinheirinho e escreveu o seguinte artigo após a desocupação, cuja leitura recomendamos.
[2] http://g1.globo.com/videos/sao-paulo/v/desocupacao-no-bairro-pinheirinho-termina-com-30-presos-em-sao-jose-dos-campos/1780705/
[3] http://www.youtube.com/watch?v=NBjjtc9BXXY; http://www.youtube.com/watch?v=wpmeaNLfgbY
[4] Miguel Lanzellotti Baldez, “A luta pela terra urbana”. In: RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz e CARDOSO, Adauto Lucio (Orgs.) Reforma urbana e gestão democrática. Rio de Janeiro: Revan, 2003.
[5] Jorge Luiz Souto Maior, “Direito de propriedade deve atender à função social”.
[6] Questões agrárias: julgados comentados e pareceres. São Paulo: Método, 2002.
Fonte: http://passapalavra.info/
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