terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Anarquismo e Liberdade!

Fonte: http://www.novae.inf.br/

Quando a religião do dinheiro devora o futuro - Por Giorgio Agamben.*

Quando a religião do dinheiro devora o futuro
Para entender o que significa a palavra “futuro”, é preciso, antes, entender o que significa uma outra palavra, que não estamos mais acostumados a usar, senão na esfera religiosa: a palavra “fé”. Sem fé ou confiança, não é possível futuro. Só há futuro se pudermos esperar ou crer em alguma coisa.
Sim, mas o que é fé? David Flüsser, um grande estudioso da ciência das religiões – também existe uma disciplina com esse estranho nome – estava justamente trabalhando sobre a palavra pistis, que é o termo grego que Jesus e os apóstolos usavam para “fé”. Um dia, ele se encontrava por acaso em uma praça de Atenas e, em um certo momento, levantando os olhos, viu escrito em caracteres capitais, à sua frente: Trapeza tes pisteos. Estupefato com a coincidência, olhou melhor e, depois de alguns segundos, se deu conta de que se encontrava simplesmente diante de um banco: trapeza tes pisteos significa, em grego, “banco de crédito”.
Eis qual era o sentido da palavra pistis, que ele estava tentando entender há meses: pistis, “fé”, é simplesmente o crédito do qual gozamos junto de Deus e do qual a palavra de Deus goza junto de nós, a partir do momento em que acreditamos nela.
Por isso, Paulo pode dizer em uma famosa definição que “a fé é substância de coisas esperadas” [ou, segundo a versão da Bíblia Pastoral, "um modo de já possuir aquilo que se espera"]: ela é o que dá realidade àquilo que não existe ainda, mas em que acreditamos e confiamos, em que colocamos em jogo o nosso crédito e a nossa palavra. Algo como um futuro existe na medida em que a nossa fé consegue dar substância, isto é, realidade às nossas esperanças.
Mas a nossa época, como se sabe, é de escassa fé ou, como dizia Nicola Chiaromonte, de má-fé, isto é, de uma fé mantida à força e sem convicção. Portanto, uma época sem futuro e sem esperanças – ou de futuros vazios e de falsas esperanças. Mas, nesta época muito velha para crer realmente em alguma coisa e esperta demais para estar verdadeiramente desesperada, o que será do nosso crédito, o que será do nosso futuro?
Porque, olhando bem, ainda há uma esfera que gira totalmente ao redor do eixo do crédito, uma esfera em que acabou toda a nossa pistis, toda a nossa fé. Essa esfera é o dinheiro, e o banco – a trapeza tes pisteos – é o seu templo. O dinheiro nada mais é do que um crédito, e sobre muitas notas de crédito (sobre a libra esterlina, sobre o dólar, mesmo que não – sabe-se lá por que; talvez deveríamos começar a suspeitar disso – sobre o euro) ainda está escrito que o banco central promete garantir esse crédito de algum modo.
A chamada “crise” que estamos atravessando – mas aquilo que se chama de “crise”, isso já está claro, nada mais é do que o modo normal em que funciona o capitalismo do nosso tempo – começou com uma série insensata de operações sobre o crédito, sobre créditos que eram descontados e revendidos dezenas de vezes antes que pudessem ser realizados. Isso significa, em outras palavras, que o capitalismo financeiro – e os bancos que são o seu órgão principal – funciona jogando sobre o crédito – ou seja, sobre a fé – dos homens.
Mas isso também significa que a hipótese de Walter Benjamin, segundo a qual o capitalismo é, na verdade, uma religião e a mais feroz e implacável que jamais existiu, porque não conhece redenção nem trégua, deve ser tomado ao pé da letra. O Banco – com os seus funcionários pardos e especialistas – tomou o lugar da Igreja e dos seus padres e, governando o crédito, manipula e gerencia a fé – a escassa e incerta confiança – que o nosso tempo ainda tem em si mesmo. E o faz do modo mais irresponsável e sem escrúpulos, tentando lucrar dinheiro com a confiança e as esperanças dos seres humanos, estabelecendo o crédito de que cada um pode gozar e o preço que deve pagar por isso (até mesmo o crédito dos Estados, que docilmente abdicaram à sua soberania).
Desse modo, governando o crédito, ele governa não só o mundo, mas também o futuro dos seres humanos, um futuro que a crise torna cada vez mais curto e a prazo. E se hoje a política não parece mais possível, isso se deve ao fato de que o poder financeiro sequestrou de fato toda a fé e todo o futuro, todo o tempo e todas as expectativas.
Enquanto essa situação durar, enquanto a nossa sociedade que se acredita laica permanecer subserviente à mais obscura e irracional das religiões, será bom que cada um retome o seu crédito e o seu futuro das mãos desses tétricos pseudosacerdotes, banqueiros, professores e funcionários das várias agências de rating. E talvez a primeira coisa a fazer é parar de olhar apenas para o futuro, como eles exortam a fazer, para, ao contrário, voltar o olhar para o passado.
Apenas compreendendo o que aconteceu e, sobretudo, tentando entender como pôde acontecer, será possível, talvez, reencontrar a própria liberdade. A arqueologia – não a futurologia – é a única via de acesso ao presente.
* Artigo publicado originalmente no jornal La Repubblica, em 16.02.2012. A tradução para o português é de Moisés Sbardelotto para o IHU-Unisinos.
Giorgio Agamben nasceu em Roma em 1942. Considerado um dos principais intelectuais de sua geração, dDeu cursos em várias universidades europeias e norte-americanas, recusando-se a prosseguir lecionando na New York University em protesto à política de segurança dos Estados Unidos.

Massacre no Chile: Pescadores de ostras matam focas-leopardo a tiros - Por Patricia Tai

Massacre no Chile: Pescadores de ostras matam focas-leopardo a tiros
Foto: El Pinguino
Continuam a surgir mais detalhes sobre o massacre que ocorreu há alguns dias na Bahia Parry, localizada no Parque Nacional Alberto de Agostini, no Chile, no qual foram mortas pelo menos três focas-leopardo de um grupo de doze que habitavam a área.
Segundo o jornal El Pinguino, a denúncia partiu do relato de um grupo de pescadores, e foi levada por Mario Merino, que trabalha como guia turístico na área, e entregou a história e as fotos ao Governo Marítimo de Porvenir e, mais tarde, ao Ministério Público.
De acordo com a história contada pelos pescadores, da embarcação María Isabel partiram disparos a dois animais que nadavam nas águas e a um outro que descansava na areia. Esta embarcação estava no local junto a outros 50 barcos para extrair ostras. A situação chamou a atenção, pois no Chile é proibido portar armas de fogo em embarcações.
Embora a situação tenha sido defendida por funcionários do Instituto de Fomento Pesqueiro, alegando que se tratava de defesa contra um ataque dos animais, ficou uma dúvida – que deverá ser resolvida nos tribunais – se a área, que tem sido procurada por pescadores por ser uma das poucas áreas não afetadas pela maré vermelha, pode ser efetivamente aberta para remoção de ostras, já que faz parte de um Parque Nacional e é declarada Reserva da Biosfera pela UNESCO, o que significa a garantia de toda a biodiversidade na área, incluindo as águas adjacentes à área terrestre.
O caso segue para os tribunais.

O Uruguai e um retrocesso vergonhoso – por Eric Nepomuceno

O Uruguai e um retrocesso vergonhoso
Suprema Corte de Justiça do Uruguai declarou inconstitucionais dois artigos de uma lei de 2011 que terminava com a impunidade assegurada aos que praticaram terrorismo de Estado durante a ditadura (1973-1985). Os protestos foram imediatos, inclusive nas ruas. “A Suprema Corte foi indigna”, disse Eduardo Galeano (foto), que participou de uma manifestação.
Buenos Aires – No meio da tarde da sexta feira, 22 de março, a Suprema Corte de Justiça do Uruguai conseguiu uma façanha surpreendente e nem um pouco louvável. Por quatro votos a um, declarou inconstitucionais dois artigos de uma lei aprovada pelo Congresso em 2011 e que terminava com a impunidade assegurada aos que praticaram terrorismo de Estado durante a ditadura que durou de 1973 a 1985.

Essa lei, agora declarada inconstitucional, impedia a prescrição dos delitos cometidos por funcionários civis e militares da ditadura, por serem considerados crimes de lesa humanidade.

O falaz argumento dos senhores juízes da Suprema Corte uruguaia seria risível se não fosse indigno. Disseram eles que uma lei penal não pode ser aplicada de forma retroativa. Ou seja, vale uma lei retroativa, de 1986, tempos do então presidente Julio Sanguinetti, anistiando crimes cometidos durante a ditadura, mas não vale a outra lei que não fazia outra coisa além de acatar decisões de cortes internacionais indicando que crimes de lesa humanidade são imprescritíveis.

Trata-se de um retrocesso tão dolorido como absurdo. Em termos práticos, significa que todos os processos em andamento serão arquivados. Para isso, basta que os advogados dos réus recorram à sentença, já que eles teriam sido processados com base em uma lei inconstitucional. Além disso, abre-se a possibilidade de que os militares que já estão presos recorram da sentença que os condenou e voltem, pimpões, à liberdade.

Pelo menos dois desses presos são figuras notórias do breve período (pouco mais de um ano) em que a impunidade esteve suspensa. O coronel Tranquilino Machado foi condenado e preso em junho de 2011, como responsável direto pela morte de um estudante de veterinária em julho de 1973, logo depois do golpe militar de 27 de junho. O policial civil Ricardo Zabala foi mandado para a cadeia em março de 2012, como cúmplice do assassinato do professor e jornalista Julio Castro, figura emblemática da esquerda uruguaia.

Esses dois assassinos podem agora pedir para serem soltos, contando com o firme apoio nascido da decisão da Suprema Corte. Poderão dizer que foram condenados por uma lei inconstitucional.

Os protestos foram imediatos. Ainda na sexta-feira, a senadora pela Frente Ampla Lucia Topolanski, figura histórica da esquerda uruguaia, disse que pretende abrir um julgamento político contra os juízes da Suprema Corte. Ou seja, ela quer pedir o impeachment dos magistrados.

Lucia Topolanski, que amargou anos de prisão e torturas, além de senadora é a primeira-dama do Uruguai. Seu marido se chama Jose Mujica e é o presidente do país.

Na segunda-feira seguinte à decisão, houve uma manifestação silenciosa na Plaza Cagancha, no centro de Montevidéu, diante do prédio da Suprema Corte.

Não houve gritos, palavras de ordem, discursos. Ao longo de uma hora, tempo que durou a manifestação, houve apenas um silêncio estrondoso, intercalado por declarações de alguns manifestantes aos jornalistas. Depois dessa hora, as milhares de pessoas cantaram o hino uruguaio e foram embora.

Um dos manifestantes era o escritor Eduardo Galeano. Ao falar com os jornalistas, ele disse que aprendeu, há muitos anos, que a vida consiste em escolher entre indignos e indignados, e que sempre esteve com os indignados. ‘Acho que a Suprema Corte foi indigna, pratica a injustiça e, além disso, proíbe a memória e castiga a dignidade’, disse.

Houve, claro, os que defenderam esse gigantesco passo atrás dado pelos juízes da Suprema Corte. Um deles foi o ex presidente Julio Maria Sanguinetti, que governou o Uruguai em dois períodos – entre 1985 e 1990, e depois entre 1995 e 2000. Ao criticar os protestos e defender o retorno da impunidade, ele foi bastante coerente com sua história pessoal. Afinal, foi durante seus governos que se decretaram leis de anistia a torturadores, violadores, seqüestradores e assassinos, e se fez de tudo para impedir qualquer investigação que levasse aos que praticaram terrorismo de Estado.

E assim o Uruguai, que havia conseguido a duras penas avançar na luta pela busca da verdade, o resgate da memória e a aplicação da justiça, retrocede de maneira formidável. Se afasta da Argentina e até mesmo do Chile, e volta a se aproximar do Brasil, onde perambulam, livres, altaneiros e intocáveis, torturadores, seqüestradores, violadores, assassinos.

Uma das vozes que protestaram contra a decisão da Suprema Corte foi a de Macarena Gelman. Neta do poeta argentino Juan Gelman, ela é a própria imagem do horror. Seus pais, Maria Claudia e Marcelo Gelman, foram presos na Argentina. Marcelo foi morto pouco depois. Maria Claudia, grávida, foi levada para o Uruguai. Macarena nasceu num hospital militar. Tinha menos de dois meses de vida quando foi dada de presente a um chefe de polícia. Da mãe, nunca mais se teve notícia.

Gelman, um dos mais respeitados poetas do idioma espanhol do nosso tempo, levou décadas de desespero buscando a neta.

Um dos que prometeram ajuda e depois fez de tudo para impedir que essa busca avançasse foi justamente Sanguinetti. Macarena só soube sua verdadeira identidade aos 21 anos.

Ao conhecer a decisão da Suprema Corte, que de fato assegura impunidade aos assassinos de sua mãe, ela disse que o Uruguai merece outro tipo de Justiça.
No ano passado, e cumprindo uma sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, o Estado uruguaio reconheceu sua responsabilidade no caso de Macarena Gelman, e se comprometeu formalmente a suprimir todos os obstáculos para esclarecer o caso.

Com sua decisão, a Suprema Corte de Justiça – que, como disse Galeano e vale a pena repetir, foi indigna e pratica a injustiça ao assegurar a impunidade – garante que esses obstáculos permanecerão, como uma nódoa pegajosa, sobre o país de José Artigas. 

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

6ª edição do evento Grito Rock São Caetano 2013!!!


Queridos amigos!


A 6ª edição do evento Grito Rock São Caetano 2013 começa na quinta-feira (28/02) com a exibição do curta ‘’Gritos do Subúrbio”,

pelo cineclube Jairo Ferreira. Na seqüência tenho o privilégio de mediar o debate “A Geração Punk do ABC” com os convidados e amigos

Ariel (Invasores de Cérebros), Nenê Altro (Dance Of Days e zine Rock do ABC), Daniel Miranda (88 NÃO!!), Luis Português (ex. Garotos

Podres e selo Rotten Records) e Barata Silva (DZK e selo Inseto Records). O bate-papo promete!
A noite encerra com a atração internacional PETIT MORT, power trio argentino. Não percam!Abertura do 6º Grito Rock São Caetano28 de fevereiro de 2013 (quinta-feira)

20:00 horas - exibição do curta Gritos do Subúrbio

20:30 horas - debate A Geração Punk do ABC

21:30 horas - Apresentação Petit Mort (Argentina)

Cidadão do Mundo - Rua Rio Grande do Sul, 73 (próximo a estação

ferroviária e rodoviária de São Caetano do Sul).


Não chore ainda pela Primavera Árabe – por Immanuel Wallerstein

Não chore ainda pela Primavera Árabe
Tunis, 6 de fevereiro: multidões tomam as ruas em protestos contra o assassinato de Chokri Belaid, líder político laico e à esquerda
Immanuel Wallerstein analisa os novos cenários no Egito e Tunísia. Sua opinião: é cedo para dizer que revoluções foram derrotadas
Na Tunísia, em dezembro de 2010, um único indivíduo acendeu a chama da revolução popular contra um ditador corrupto. A revolta foi prontamente seguida por uma explosão similar no Egito, contra um tirano parecido. O mundo árabe estava atônito e a opinião pública mundial tornou-se imediatamente muito simpática a essas expressões-“modelo” das lutas ao redor do planeta por autonomia, dignidade e um mundo melhor.
Três anos depois, ambos países estão atolados em lutas políticas acirradas. A violência interna cresce rapidamente; há grande incerteza sobre onde tudo irá parar, e em benefício de quem. Existem particularidades em cada país, aspectos que repercutem em outras revoltas pelo mundo árabe e árabe-islâmico, e outros que podem ser comparados ao que está acontecendo na Europa – e, até certo ponto, em todo o mundo.
O que aconteceu? Devemos começar com o levante popular inicial. Como ocorre muitas vezes, ele foi iniciado por jovens corajosos, que protestavam contra atos arbitrário dos poderosos — localmente, nacionalmente, internacionalmente. Nesse sentido, eram antiimperialistas, anti-exploração e profundamente igualitários. É possível estabelecer uma clara comparação com os tipos de manifestações que se espalharam pelo mundo entre 1966 e 1970, e que se tornaram conhecidas como a “revolução mundial de 1968”. Como naquela época, os protestos tocaram algo profundo em seu país país e atraíram vasto apoio popular, espraiando-se muito além do pequeno grupo que os iniciou.
O que aconteceu em seguida? Uma revolução antiautoritária generalizada é uma coisa muito perigosa para os que detêm autoridade. Quando as medidas de repressão iniciais pareceram não funcionar, muitos grupos procuraram domesticar as revoluções unindo-se a elas, ou fingindo se unir. Tanto na Tunísia quanto no Egito, o exército entrou em cena, recusando-se a atirar nos manifestantes, mas também procurando controlar a situação após a deposição dos dois ditadores.
Em ambos países, existira um forte movimento islâmico, a Fraternidade Muçulmana. Ela fora banida da Tunísia e cuidadosamente controlada e restringida no Egito. As revoluções permitiram-lhe emergir de duas maneiras. Ela ofereceu assistência social para os pobres que haviam sofrido com a negligência do Estado. E decidiu formar partidos políticos para conquistar a maioria nos Parlamentos e controlar a redação das novas Constituições. Na primeira eleição de cada país, a Fraternidade Muçulmana emergiu como o partido político mais forte.
No momento seguinte, havia basicamente quatro grupos disputando a arena política. Além do partido da Fraternidade Muçulmana (Ennahda na Tunísia e Partido da Liberdade e Justiça, no Egito), destacavam-se as forças seculares mais ou menos à esquerda; as forças salafistas, na extrema direita, lutando pela adoção de uma versão muito mais rigorosa da sharia[a lei islâmica] que a desejada pelos partidos da Fraternidade; e os apoiadores ainda fortes, mas quase ocultos, dos antigos regimes.
Tanto a Fraternidade Muçulmana quanto as forças seculares estão muito divididas internamente, em especial sobre as estratégias que desejam seguir. Os muçulmanos moderados vivem os mesmos dilemas enfrentados, nos últimos anos, pelos partidos de centro-direita europeus. Seus países enfrentam problemas econômicos severos e persistentes. Isso dá origem a (e ou fortalece) partidos da extrema-direita — o que ameaça a capacidade dos partidos centro-direita mainstream vencerem futuras eleições. Nessa situação, surge, em toda parte, gente que tenta atrair os eleitores da extrema direita adotando uma “linha dura” em relação à esquerda ou às forças seculares. E há os chamados “moderados”, para os quais o partido deve mover-se ao centro para reconquistar seus votos.
As forças de esquerda, ou secularistas, reúnem por sua vez uma ampla gama de grupos: setores de esquerda verdadeira (porém múltiplos) e democratas de classe média, que procuram encorajar laços econômicos mais fortes com grandes forças de mercado na Europa e América do Norte. Em questões econômicas, esses grupos de classe média estão muito próximos, na verdade, daquilo que as forças islâmicas moderadas propõem.
Enquanto isso, as foças ainda leais aos antigos regimes mantêm controle sobre uma instituição chave: a polícia. É a polícia quem atira nas manifestações das forças seculares. Quando estas protestaram contra assassinato de Chokri Belaid, um líder secularista chave, o primeiro-ministro da Tunísia, Hamadi Jebali, um islamista moderado, respondeu que estava igualmente chocado com o assassinato. Diante disso, os grupos seculares replicam que os partidos islâmicos, e especialmente seus chamados linha-dura, são, de qualquer forma, responsáveis — por terem suscitado o ambiente necessário para que assassinato ocorresse.
Mais: Tunísia e Egito não são países isolados. Seus vizinhos no mundo árabe e além estão também agitados. A intromissão geopolítica de forças de fora é muito grande. Ambos países são relativamente pobres e precisam de ajuda financeira estrangeira para lidar com o crescente e persistente desemprego, que se torna ainda mais severo devido à perda do turismo – antes, uma fonte central de receita.
Para onde isso tudo está se encaminhando? Existem apenas dois caminhos possíveis. Um é o fim da revolução, pelo menos por enquanto. Os dois países poderiam ter governos de direita fortemente enraizados, apoiados (e talvez até controlados) pelos militares, com Constituições socialmente conservadoras e políticas externas cautelosas. Outro, é o começo de uma revolução, no qual o espírito inicial de 1968 recupera suas forças e tanto a Tunísia quanto o Egito tornam-se novamente casos emblemáticos de transformação social — para si próprios, para o resto do mundo árabe e para todo o planeta.
No momento, parece que as forças que pressionam pelo fim da revolução estão vencendo. Mas nesse mundo caótico, é cedo demais para fechar as cortinas e pensar que já não há espaço para um força revolucionária renovada nos dois países.
Tradução: Gabriela Leite
*Immanuel Wallerstein é um dos intelectuais de maior projeção internacional na atualidade. Seus estudos e análises abrangem temas sociólogicos, históricos, políticos, econômicos e das relações internacionais. É professor na Universidade de Yale e autor de dezenas de livros. 

Liberdade de expressão made in U.S.A - por Latuff

Fonte: http://latuffcartoons.wordpress.com/

sábado, 23 de fevereiro de 2013

Bento XVI e o "Vatileaks" - por Latuff

Fonte: http://latuffcartoons.wordpress.com/

Não te dou o direito, quando me negas o direito - Por Eduardo Sousa

Não te dou o direito, quando me negas o direito
Se puderem ficar no armário a sociedade heteronormativa agradece, se não, pelo menos se comportemPor Eduardo Sousa
A luta contra a homofobia e pelo respeito à diversidade sexual e em defesa dos direitos humanos negados aos homoafetivos não é uma luta particular dos gays, muito menos uma luta opcional.
A causa LGBTT [Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros] é embasada na violação dos direitos humanos e civis dos gays e lésbicas, é fundamentada no posicionamento político contra a dominação de gênero e a opressão de classe. A mesma está diretamente ligada à luta de classe. Afinal, a classe trabalhadora não é composta apenas de heteros.
Passa diretamente pela luta de emancipação humana e pela sociabilidade humana onde todos e todas possam desenvolver de forma livre suas potencialidades humanas. Marx defendia a emancipação humana e dizia que a sociedade que queremos é uma sociedade em que o gênero humano pudesse evoluir nas suas capacidades de maneira plena e livre.
Sem falar que a família monogâmica e o patriarcado são pilares de sustentação da exploração capitalista.
A bandeira LGBTT faz parte da totalidade das lutas da classe trabalhadora e do projeto de emancipação humana, pela construção de um mundo melhor, justo, igualitário, fraterno e totalmente livre das opressões.
Então, não é a causa gay, o movimento gay ou a bandeira gay que está em jogo, mas a luta pela liberdade, pelos direitos negados historicamente pela sociedade patriarcal, machista, conservadora e heteronormativa.
É a causa de todos e todas, ou pelo menos deveria ser, dos militantes socialistas ou dos que lutam pela transformação da sociedade. Pois não há e nem é uma sociedade socialista se ela tiver enrustida de preconceitos, machismo, racismo e homofobia.
O argumento utilizado por alguns da “esquerda” é que temos primeiro que lutar pela emancipação política e econômica da classe e depois, num processo revolucionário, ir extirpando os valores dominantes herdados pelos modelos de sociedades anteriores. Argumentam também que o movimento LGBTT é multiclassista, o que se configura como um grande equívoco, pois a militância LGBTT de um modo geral é da classe trabalhadora pobre e classe média. Os gays ricos não precisam militar, pois os mesmos compram seu “respeito”.
Historicamente a esquerda sempre fez alianças com a direita ou setores estratégicos sobre o argumento da correlação de forças ou acúmulo de forças. Essa indiferença de alguns dirigentes políticos em relação ao movimento LGBTT não seria indício de valores burgueses conservadores e “moralistas”, herdados historicamente no processo de construção social, cultural e religioso da sociedade e, consequentemente, dos indivíduos? Pois são as lutas contra as opressões e superação dos preconceitos que devem caminhar juntas com a luta política e econômica. Aliás, estão totalmente interligadas, os valores antirracistas, antimachistas e anti-homofóbicos devem germinar nas consciências dos trabalhadores e trabalhadoras como parte integrante do processo de libertação humana e, principalmente, da construção de novos homens e mulheres, que serão construtores desse novo mundo.
Nesse sentido se faz necessário dar visibilidade à luta LGBTT, assim como damos à luta contra o agronegócio, agrotóxicos, latifúndio, pela reforma agrária, pela emancipação politica das mulheres, dos índios, negros, operários, camponeses e tantas outras bandeiras e sociabilidades que defendemos.
O fato de não termos no Brasil um movimento LGBTT de esquerda forte não nos dá o direito de não apoiarmos a causa ou não darmos visibilidade ao debate. Aliás, essa é uma forma cruel e homofóbica, não abrimos nossos espaços para nos apropriamos do debate numa perspectiva transformadora e esclarecedora.
Não podemos esquecer os invisíveis lutadores e lutadoras que estão na trincheira da luta de classes em nossas organizações, segurando as várias bandeiras de luta anticapitalistas. Os invisíveis são homoafetivos, nossos camaradas, e constroem a luta conosco, que muita das vezes apenas se conformam com a aceitação na organização; como se as organizações estivessem fazendo um favor, quando na verdade é nosso dever como lutadores e lutadoras do povo. É o nosso dever revolucionário fazer mais do que aceitar nossos camaradas na organização ou em tarefas de direção.
Poderíamos pelo menos começar estudando, refletindo e dando visibilidade à causa dos invisíveis. Afinal, a opressão homofóbica é responsável, em cada ano, por mais de 200 assassinatos de gays no Brasil, um a cada 36 horas. Ressalte-se que são estatísticas midiáticas (o que a imprensa registra); se somassem os crimes anônimos esse número duplicaria.
Sem falar nas centenas de suicídios, no índice de gays com depressão ou estado de loucura, no alto índice de desistência na escola por bullying homofóbico. Mais de 80% de travestis vivem na extrema miséria e na prostituição. E os milhões de homoafetivos que vivem recuados, escondidos, constrangidos e amedrontados e convencidos que podem até ser gays, mas têm que seguir um padrão moral da sociedade heterossexual. E começando por ser “discretos’’, de preferência masculinizados, pois gays afeminados, travestidos chamam muita atenção. Lésbicas masculinizadas são um horror, fogem de todo padrão “feminino”. Se puderem ficar no armário a sociedade heteronormativa agradece, se não, pelo menos se comportem.
Sem falar da negação dos direitos civis, união civil, aposentadoria, partilha de bens, crédito conjunto e todos os direitos que um cidadão tem. Será que nossa homoafetividade e nossa forma de amar tirou nossa cidadania? Se sim, é inadmissível que o sistema capitalista só não tirou o dever de pagarmos nossos impostos de forma igualitária em relação aos heterossexuais. Mas alguns religiosos tiraram até o direito de sermos filhos de Deus ou de irmos ao paraíso.
Não somos culpados por sermos homofóbicos, machistas, racistas. Afinal, esses preconceitos são fruto das ideias dominantes, anteriores ao capitalismo e que só se fortalecem com ele. Porém, é nosso dever militante extirpá-los de nossas práticas, comportamentos, discursos e combatê-los com todo rigor revolucionário. E fazer o debate, estudo, reflexão, por ser o início do caminho.
E seguindo essa lógica, a sociedade capitalista que herdou os preconceitos de suas antecessoras, para nos compensar, cria bares, revistas, shoppings, cruzeiros, filmes, agência de viagem, sites, cinemas, saunas, becos e ruas, empresas e quem sabe até um cemitério para que possamos enterrar nossos mortos assassinados pelos homofóbicos.
Mas o contraditório é que até o Estado capitalista, que por natureza é excludente, tem reconhecido os direitos civis dos homoafetivos a partir da luta. Será que é fruto da pressão política e popular da luta LGBTT ou porque quer agradar seu público consumidor em nome de uma lucratividade, os quais lotam periodicamente as várias capitais do mundo, gerando inúmeras possibilidades rentáveis ao mesmo capitalismo monopolista?
E a esquerda? E os movimentos populares, sociais e revolucionários onde estão? O que estão fazendo? Salvo alguns movimentos e partidos que mesmo que de forma pontual e ainda tímida já se atêm a essa questão. E, claro, as milhares de ONGs que em sua maioria não nos ajudam a emancipar a comunidade LGBTT e suas vítimas das inúmeras opressões, mas por outro lado contribuem para amenizar as situações críticas deploráveis vividas pelos mesmos.
Por tudo isso é que não temos o direito de termos um comportamento homofóbico. Seria uma prática contraditória e incoerente com os nossos ideais revolucionários, libertários e de transformação, seria o oprimido se comportando como opressor.
Não é uma guerra sexista, ou de homos contra heteros, ou vice versa, mas sim uma guerra contra todas as formas de dominação, ou melhor, toda forma que sujeita, que inferioriza, que tira a dignidade humana. Por isso não te dou o direito quando me negas o direito, pois a tua homofobia nega o direito fundamental aos homens e mulheres à Liberdade.
A luta da Diversidade Sexual é transversal nas classes sociais, mas é preciso trazermos essa luta para a centralidade de classe e com o referencial socialista-comunista. Não devemos ficar indiferentes. Afinal, as classes trabalhadoras e o operariado, assim como o campesinato, são heterogêneos na sua orientação sexual e orientação de gênero. O movimento histórico da luta LGBTT sempre sofreu com a discriminação e o distanciamento da esquerda. Erro gravíssimo e extremamente contraditório para qualquer processo revolucionário da classe trabalhadora. É preciso corrigir esses erros e aglutinar as lutas populares e específicas não menos importantes para o nosso objetivo estratégico do que é o socialismo.
É importante que nos desnudemos dos nossos preconceitos dominantes e de nossa forma dogmática e doutrinária e às vezes esquerdista de interpretarmos a luta de classes e o processo de libertação da classe, sem falar de uma visão meramente estreita, por isso não dialética e economicista. A libertação da classe trabalhadora não passa apenas pela a emancipação econômica, e sim por todas as formas de opressão e exploração. Com o capitalismo é impossível rompermos com a homofobia. Assim com homofobia não há socialismo. Ou seria um “socialismo heteronormativo”?
Quanto a nós, lutadores e lutadoras do povo, somos convocados ao dever de sermos sujeitos transformadores e construtores das ideias libertárias de emancipação humana, de unirmos nossas forças coletivas em prol da liberdade dos homens e mulheres, heterossexuais, homoafetivos. Como também dos sem terra, pequenos(as) agricultores(as), operários(as), índios(as), negros(as), atingidos por barragens, pessoas portadoras de necessidades especiais, enfim da classe trabalhadora brasileira e mundial.
Somos convocados ao dever de levantarmos nossas bandeiras, vermelhas, brancas, verdes, lilás, pretas e coloridas para apontarmos para uma única bandeira, a da liberdade, a do socialismo, da revolução contra as opressões de classe, gênero e identidade.
Somos convocados ao dever de alicerçamos a nova sociedade livre dos preconceitos, da discriminação, do machismo, da homofobia, do racismo e do capitalismo. Pensemos no legado de Che aos seus filhos — ”acima de tudo, sejamos capazes de sentir qualquer injustiça cometida contra qualquer pessoa em qualquer parte do mundo, essa é a qualidade mais linda de um revolucionário”. E seu conselho a nós: “A revolução será feita pelos homens e mulheres, mas é preciso forjar a cada dia nosso espírito revolucionário”.
Enfim, somos convocados a construirmos “um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres”, como disse Rosa Luxemburg.
Nota sobre o autor
Eduardo Sousa é aluno do Curso de Licenciatura em Educação do Campo na FAFIDAM–UECE e militante do Setor de Gênero e Formação do MST-CE.

A Palestina vai ao Oscar. E é detida no aeroporto - Baby Siqueira Abrão

A Palestina vai ao Oscar. E é detida no aeroporto
O filme palestino ‘5 Broken Cameras’ é um dos indicados ao Oscar de melhor documentário estrangeiro. Mas seu diretor, Emad Burnat, a esposa Soraya e o filho Gibril foram detidos na terça (19) ao desembarcarem no aeroporto de Los Angeles, onde participariam da premiação. Acabaram levados para uma área fechada nas dependências do aeroporto e submetidos a interrogatório.
Emad Burnat, diretor de ‘5 Broken Cameras’ [5 câmeras quebradas], filme indicado ao Oscar de melhor documentário estrangeiro, foi detido na noite de 19 de fevereiro ao desembarcar no aeroporto de Los Angeles, Califórnia, para participar da festa do cinema de Hollywood. Ele, a esposa Soraya e o filho Gibril, de 8 anos – que também participam do filme –, foram levados para uma área fechada nas dependências do aeroporto e submetidos a interrogatório. Segundo as autoridades de imigração, Emad não tinha em seu poder o “convite apropriado para o Oscar”, seja lá o que isso for.

Emad enviou uma mensagem, pelo celular, a Michael Moore, o polêmico documentarista de ‘Tiros em Colombine’, ‘Fahrenheit 11 de setembro’ (filme que questiona a versão oficial do atentado ao World Trade Center) e um dos diretores da Academia de Hollywood. Moore denunciou a detenção a seus 1,4 milhão de seguidores no Twitter e acionou o pessoal da Academia, que por sua vez contatou advogados para cuidar do caso. “Pedi a Emad que repetisse meu nome várias vezes aos oficiais da imigração e que lhes desse meus números de telefone”, disse Moore. “Parece que eles não conseguiam entender como um palestino podia ter sido indicado ao Oscar”, completou, irônico.

Moore também deixou claro que faria o que estivesse a seu alcance para impedir a deportação que ameaçava a família Burnat. E foi bem-sucedido, porque uma hora e meia depois eles foram libertados. “Mas só poderão ficar em Los Angeles uma semana, até o Oscar”, esclareceu Moore. E, de novo com ironia, acrescentou: “Bem-vindos aos Estados Unidos!”

Para Emad, a detenção não é nenhuma novidade. “Quando se vive sob ocupação militar, sem nenhum direito, esse é um acontecimento diário”, declarou. O filme ‘5 Broken Cameras’ é o resultado de sete anos de trabalho de Emad, que comprou a primeira câmera quando Gibril nasceu e passou a registrar tudo o que acontecia em sua vila natal, Bil’in, na Cisjordânia sob ocupação militar de Israel. Ajudado pelo israelense Guy Davidi, que esteve ao lado da resistência de Bil’in desde os primeiros dias, foi responsável pelo pós-roteiro de ‘5 Broken Cameras’ e figura como codiretor, Emad fez um documento fundamental para a compreensão, pelo público externo, do cotidiano palestino sob ocupação. O título do filme faz referência às cinco câmeras que o exército israelense inutilizou ao atingi-las com tiros. Numa dessas ocasiões o equipamento salvou a vida do diretor – a câmera deteve a bala atirada na direção da cabeça de Emad.

Cineasta por acaso – e por necessidade
Emad Burnat nunca pensou em se tornar cineasta. Foi a necessidade de registrar a ocupação – para proteger os vizinhos, pois os soldados, receosos de um dia enfrentar o Tribunal Penal Internacional, evitam agir com muita violência diante das câmeras –, de mostrar ao mundo, pela internet, a realidade na Palestina, até poucos anos atrás oculta pela narrativa sionista, e de ter provas para apresentar aos tribunais de Israel, aos quais o exército conta histórias implausíveis mas levadas a sério, que levaram Emad a filmar.

Ele comprou sua primeira câmera em 2005, ano do nascimento de Gibril, para gravar seu crescimento e a vida em família. Mas era impossível limitar-se a temas domésticos numa vida sob ocupação militar. As incursões noturnas dos soldados, os ataques aos moradores durante as manifestações não violentas, as prisões, as invasões dos colonos, a construção do primeiro muro e seu desmantelamento em 2011, bem como a execução do segundo muro, tudo era muito impactante no cotidiano de Bil’in e merecia ser registrado.

Essa opinião era compartilha por Guy Davidi, professor de cinema, que em 2005 passou a ir com frequência à vila palestina e chegou a morar lá por alguns meses, para sentir como era viver sob ocupação. Guy produziu alguns curtas sobre Bil’in, onde filmou, entre 2005 e 2008, ‘Interrupted streams’ [‘Fluxos interrompidos’], sobre o confisco das fontes de água palestinas por Israel. Muitas vezes Emad e Guy filmavam juntos as manifestações, os ataques dos soldados, as detenções. Corriam os mesmos riscos. Tornaram-se amigos.

Foi ao longo desses anos que Emad começou a pensar em reunir seu material num longa-metragem sobre a resistência em Bil’in. Estimulado pela família, pelos amigos e por Guy, ele conseguiu tocar o projeto. Só não esperava o sucesso que se seguiu ao lançamento. Cineasta por intuição, Emad ganhou o respeito e a admiração de seus pares ao redor do mundo.

Referência ao Brasil e vários prêmios
Uma das cinco câmeras quebradas exibe um adesivo da bandeira brasileira, símbolo também presente na porta da casa da família Burnat, em Bil’in – um modo de demonstrar o carinho que eles sentem por nosso país. Soraya, esposa de Emad, é palestina criada no Brasil. O casal e os filhos mais velhos falam um português impecável e sem sotaque.

‘5 Broken Cameras’ é o primeiro filme palestino a concorrer a um Oscar. Além de muito elogiado pela crítica, vem tendo uma trajetória de sucesso em todo o mundo. Em 2012, foi indicado para o ‘Asian Pacific Screen Award’ e ganhou o prêmio de melhor documentário no ‘Jerusalem Film Festival’; o de melhor diretor de documentário no Sundance (também foi indicado para o Grande Prêmio do Júri desse festival), nos Estados Unidos, e o Busan Cinephile, do Busan International Film Festival, da Coreia. Em 2011 recebeu o Prêmio Especial do Júri e o Prêmio Especial do Público no International Documentary Film Festival Amsterdam (IDFA), na Holanda. A. O. Scott, crítico de ‘The New York Times’, considerou-o uma “comovente e rigorosa obra de arte”.

Ele tem razão. No documentário, com sensibilidade, Emad funde sua vida e a de sua família com a história da ocupação de Bil’in. É uma história comum à maioria dos milhões de palestinos que nasceram nos hoje dezenas de vilarejos – eram mais de 500 antes que os sionistas os tomassem à força, nos anos 1940 – que circundam as 11 cidades da Cisjordânia, compondo as regiões distritais daquela parte do Estado da Palestina.

Com texto de Guy Davidi, e narrado por Emad, o filme nos conduz pelas belas paisagens de Bil’in, mostrando a chegada dos agrimensores israelenses para a medição das terras que seriam confiscadas; as reuniões entre os moradores e o pessoal do grupo Anarquistas Contra o Muro, de Israel, que conseguiu o mapa com o traçado do muro e se uniu aos bilainenses para boicotá-lo; os primeiros enfrentamentos com o exército israelense; as prisões, a progressão dos desafios e da violência, a consolidação da resistência, o apoio internacional à luta não violenta de Bil’in.

Há cenas geniais, como a do grupo de moradores que barra o avanço dos soldados na área urbana da vila com instrumentos de percussão improvisados, numa “bateria” ruidosa e criativa. Há também cenas difíceis, em que Emad se vê obrigado a filmar a prisão dos irmãos e de um vizinho, um menino, e cenas trágicas, como o assassinato de Bassem Abu-Rahmah, o Fil, até aquele momento um dos líderes da resistência e um dos protagonistas do filme. A sequência é dolorosa, embora o público seja poupado das tomadas mais dramáticas.

O documentário leva o público a participar do cotidiano de Bil’in e a vivenciar um pouco do que significa estar submetido a uma ocupação militar. Trata-se de documento histórico, denúncia viva dos abusos cometidos pelo exército sionista. Por isso mesmo, a cena em que o pequeno Gibril, mal se sustentando em seus primeiros passos, oferece um ramo de oliveira a um dos soldados israelenses – que o aceita, com um sorriso culpado e sem jeito – surpreende e enternece. Num momento assim não há como deixar de questionar o mal que os sionistas têm feito aos seres humanos que vivem de um lado e de outro do muro. Não fossem eles, provavelmente palestinos de todas as religiões teriam continuado a conviver em harmonia na Palestina histórica. Os inimigos e a discórdia vieram de fora. Será possível neutralizá-los e resgatar a antiga harmonia, dessa vez juntando ao antigo grupo os cidadãos de Israel, como propõem palestinos e israelenses que defendem a existência de um único Estado, democrático e secular, com direitos iguais para todos?

O impacto nos jovens de Israel
É difícil responder a essa indagação sem levar em conta as alianças do sionismo e seu papel decisivo nas finanças internacionais, na indústria bélica e na tecnologia nuclear. O movimento praticamente domina os setores estratégicos sobre os quais se desenrola o teatro do mundo. É ele que cuida do caixa, do lucro, da produção e do roteiro do espetáculo. Por isso, o combate não se restringe à ação dos sionistas na Palestina. Eles se espalham cada vez mais, controlando governos, territórios e ramos de atividades nos cinco continentes.

Mas é em Israel que seu controle se estende a toda a sociedade. Lá, o sistema educacional garante apoio e submissão aos princípios sionistas nesta e nas futuras gerações. Assim, quem nasce em Israel aprende, desde a infância, que os palestinos são “árabes que vivem em território israelense” – e inimigos. A maior parte dos livros didáticos faz pouca referência à Palestina – nos mapas, por exemplo, Cisjordânia e Gaza são mostradas como território de Israel – e a sua história. A grande maioria dos jovens israelenses não sabe que seu país ocupa outro, e tem de seu exército uma visão heroica e romântica, fabricada pela propaganda sionista.

Contribui para essa ilusão um programa muito comum nos feriados e nos fins de semana em Israel: os pais costumam levar os filhos pequenos a locais onde são expostos equipamentos de guerra, que as crianças podem experimentar, e veículos nos quais elas entram e fingem controlar. Tudo sob o olhar complacente da família e diante das explicações de jovens soldadas e soldados. Para entender como essa indústria da violência funciona, assista ao vídeo produzido pelo israelense Itamar Rose: http://youtu.be/Qp67KehlVGU.

Não é de admirar, portanto, que as crianças de Israel desenvolvam a ideia de que a solução de seus problemas – ou daquilo que lhes é ensinado como “problema” – passa pela via militar. Foi para desfazer essa crença que Guy Davidi decidiu mostrar ‘5 Broken Cameras’ a um grupo de jovens em Israel e filmar suas reações. Suas expressões, durante a exibição do documentário, dizem muito sobre a revelação de como é a vida dos palestinos: indicam surpresa, choque, consternação, revolta, compaixão.

Diante dessa experiência, Davidi resolveu elaborar um projeto maior: levar ‘5 Broken Cameras’ ao público israelense em sessões que permitam reflexões e debates sobre a ocupação, a violência imposta aos palestinos de maneira direta e aos israelenses de modo indireto, o dia a dia dos cidadãos dos dois lados do muro, o próprio muro, o questionamento ao papel do exército e à ideologia dos soldados – que, como eu mesma pude comprovar nas muitas conversas que travei com eles, têm dos palestinos e dos árabes uma imagem deturpada, assimilada em uma existência inteira de educação dirigida e controlada. Conheça a surpreendente experiência de Guy Davidi com os jovens israelenses: http://youtu.be/i1wEszQYEzg.

Será que a arte pode promover compreensão e tolerância, aproximando duas populações separadas pela agenda bélica e expansionista das autoridades sionistas? Será que a mudança necessária pode começar da base de ambas as sociedades, as únicas instâncias portadoras de legitimidade para isso? É uma aposta ousada, a dos diretores de ‘5 Broken Cameras’. Aguardemos os resultados.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Graffiti na Faculdade de Belas Artes em Montevideo mostra o que representa a Igreja Universal - por Latuff

Fonte: http://twitpic.com/photos/CarlosLatuff

O mito do capitalismo “natural” – por Rafael Azzi

O mito do capitalismo “natural
Há séculos, ideia de que ser humano é “em essência” egoísta-competitivo justifica relações capitalistas. Descobertas recentes estão derrubando tal crença
O modelo capitalista de sociedade premia e estimula o comportamento individualista, utilitário e egoísta. Diversos pensadores, como o economista Alan Greespan, acreditam que tal comportamento apenas reflete a verdadeira essência da natureza humana e, portanto, não há muito a fazer a respeito. Entretanto, essa visão do ser humano foi moldada ao longo da história e, na verdade, os estudos de hoje discordam da noção de que somos  essencialmente individualistas e agressivos.
Alguns filósofos, como Thomas Hobbes, John Locke e Adam Smith, contribuíram para a consolidação da ideia de que o ser humano é, por natureza, racional, autônomo, utilitário e voltado principalmente para a satisfação egoísta de seus próprios interesses. As principais instituições políticas e econômicas que hoje moldam a sociedade foram fundadas a partir desses preceitos sobre a natureza humana.
O modelo social adotado pelos princípios capitalistas põe em cena uma perspectiva de Estado-Nação que tem como objetivo estimular as forças do livre mercado e proteger a propriedade privada. O homem é então considerado um indivíduo autônomo e racional que, ao optar por viver em sociedade, acredita que esta é a melhor forma de proteger seus próprios interesses, evitando assim um estado de selvageria natural representado pela expressão hobbesiana “guerra de todos contra todos”.
Da mesma forma que os indivíduos proclamam sua autossuficiência, os Estados são vistos na política internacional como autônomos na busca do próprio interesse. Sob tal perspectiva, as nações encontram-se em eterna batalha em busca de poder e de bens materiais. A narrativa histórica é construída a partir de uma constante dicotomia estabelecida entre Estados e indivíduos isolados, público e privado, termos ocasionalmente unidos apenas por razões de utilidade ou de lucro.
O mito do homem que sobrevive como indivíduo é difundido na literatura universal em heróis como Robinson Crusoé: o homem que consegue, sozinho, através do uso da razão, utilizar a natureza a seu favor e sobrevive sem o auxílio de outras pessoas. Porém, o que não está dito é que Crusoé é um homem adulto, que cresceu em uma sociedade complexa, na qual dependia diretamente de outras pessoas. Além disso, ele apenas aprendeu os conhecimentos necessários para a sua sobrevivência na ilha deserta através do contato com experiências de outras pessoas e outras gerações.
Essa visão filosófica, que se transformou em política, foi naturalizada por um conjunto de teorias científicas. O darwinismo social é uma interpretação estreita da teoria de Darwin aplicada à sociedade humana. Tal teoria enfatiza a ideia de que a evolução se relaciona à competição e à sobrevivência do mais forte, pondo-a em prática na sociedade humana. Dessa forma, características como individualismo, agressividade e competição seriam os agentes naturais da evolução. Argumenta-se que a competição pela sobrevivência fundamenta a evolução humana, a fim de justificar a sociedade capitalista como o modelo natural a ser adotado.
Atualmente, tal noção é considerada bastante reducionista. Já se observou, por exemplo, que não apenas a competição mas também a cooperação entre os indivíduos são fatores de extrema importância na sobrevivência de espécies sociais. Recentes estudos de sociobiologia vêm comprovando a hipótese de que o ser humano é, na verdade, um dos animais mais sociais que existe. Não é difícil comprovar esse fato: vivemos em grupos cada vez maiores, em sociedades cada vez mais complexas com indivíduos interdependentes. Temos a necessidade constante de nos sentir conectados a outras pessoas e de pertencer a um grupo, em um sentimento que remonta às ideias ancestrais de coletividade e de comunidade.
Uma descoberta biológica recente vem corroborar essa ideia. Os neurônios-espelhos fazem parte de um importante sistema cerebral que atua diretamente em nossa conexão com outros indivíduos. Esse conjunto de neurônios é mobilizado quando vemos outra pessoa fazendo algo. Pesquisadores constataram que, quando uma pessoa observa outra realizando uma ação, no cérebro do observador são estimuladas as mesmas áreas que normalmente regem a ação observada. Portanto, ao que tudo indica, nossa percepção visual inicia uma espécie de simulação ou duplicação interna dos atos de outros.
Os neurônios-espelhos são a base do aprendizado e da aquisição da linguagem humana. Mais do que isso, eles tornam fluida a fronteira entre nós e os outros; são a origem da empatia, que é a capacidade de nos colocar no lugar de outra pessoa. Pode-se dizer que, ao observar alguém sorrindo, imediatamente nos sentimos impelidos a sorrir também. Quando percebemos alguém que está em uma situação que causa dor, a reação natural é partilhar o sentimento de dor alheia.
A capacidade empática e a necessidade de fazer parte de um grupo formam as bases, por assim dizer, das religiões organizadas e do sentimento de nacionalismo. O problema é que, ao mesmo tempo em que fomentam a empatia coletiva, estas instituições limitam o sentimento empático pelos indivíduos que não fazem parte do mesmo grupo. Assim, o indivíduo que faz parte de outra ordem — seja ela uma nação, uma religião, uma etnia ou uma classe social — é considerado diferente, distante e, eventualmente, intolerável. Tais rótulos limitam a capacidade empática e impedem de ver o outro como um semelhante na partilha de sentimentos, desejos e angústias intrínsecos à natureza humana.
Um exemplo de que a empatia é natural ao ser humano é a forma como ela ocorre de maneira livre e instintiva nas crianças. Quando uma criança observa outra pessoa em situação desfavorável, como a mendicância e a falta de moradia, a primeira reação é o questionamento. Invariavelmente, as respostas que fazem uso de rótulos auxiliam a explicar a situação: “é apenas um mendigo” ou “é só um menino de rua”. Com frases assim, está-se afirmando que o outro não é alguém como nós; trata-se apenas de alguém diferente, em uma realidade distante da nossa. Portanto, ao estimular constantemente o egoísmo e o interesse individualista, a sociedade baseada no modelo atual desestimula a capacidade empática existente em cada um.
Dessa forma, pode-se afirmar que o desafio do nosso tempo é desnaturalizar o egoísmo social que foi imposto e recuperar nossa empatia natural, não apenas em relação aos grupos de pertencimento, mas sobretudo ampliada em relação a toda nossa espécie.
Imagem: Marinus van Reymerswaele, O banqueiro e sua esposa

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Os amigos do Estado Assassino! – por Latuff

Fonte: http://latuffcartoons.wordpress.com/

Toni Negri: as duas renúncias do Papa alemão.

Toni Negri: as duas renúncias do Papa alemão.
Ao colocarem uma pedra sobre o Concílio Vaticano II, Wojtyla e Ratzinger confundiram Igreja com Ocidente, e cristianismo com capitalismo
Há mais de vinte anos, saiu a encíclicia Centesimus Annus, do Papa polonês Wojtyla, por ocasião do centenário da Rerum Novarum. Era o manifesto reformista, fortemente inovador, de uma Igreja que se pretendia, dali em diante, única representante dos pobres, depois da queda do império soviético. Àquele documento, meus companheiros parisienses do Futur Antérieur e eu dedicamos um comentário que era também o reconhecimento de um desafio. Teve por título “A V Internacional de João Paulo II”.
Vinte anos depois, o Papa alemão renuncia. Declara-se não só esgotado no corpo, e incapaz de se opor aos imbroglios e à corrupção da Cúria Romana, mas também impotente no ânimo para enfrentar o mundo. Esta abdicação, porém, só pode surpreender os curiais. Todos os que estão atentos aos assuntos da Igreja romana sabem que outra renúncia, bem mais profunda, dera-se antes. Ocorrera em parte sob João Paulo II, quando, com o apoio fervoroso de Ratzinger, a abertura aos pobres e o empenho por uma Igreja renovada pela libertação dos homens da violência capitalista e da miséria terminaram.
Fora pura mistificação, a encíclica de 1991? Hoje, devemos reconhecer que, provavelmente, sim. De fato, na América Latina a Igreja católica destruiu cada foco da Teologia da Libertação. Na Europa, voltou a reivindicar o ordo-liberalismus. Na Rússia e Ásia viu-se quase incapaz de desenvolver o discurso que a nova ordem mundial permitia. E nos países árabes e Irã viu os muçulmanos – em suas diversas seitas e facções – assumir o posto do socialismo árabe (e frequentemente cristão) e do comunismo ortodoxo, na defesa dos pobres e no desenvolvimento de lutas de libertação.
A própria reaproximação com Israel não foi feita em nome do anti-fascismo e da denúncia dos crimes nazistas, mas… em nome da defesa do Ocidente. O paradoxo mais significativo é que o grande impulso missionário (desenvolvido de modo autônomo depois do Concílio Vaticano II) refluiu em favor de ONGs católicas, rigidamente especializadas e depuradas de qualquer característica genericamente “franciscana” Estas ONGs terminaram dedicadas à prática dos “direitos do homem” que a Igreja (e dois Papas: o polaco e o alemão) recusava-se a reconhecer nos países europeus ou na América do Norte, onde ainda expressavam, com ressonância anticlerical e republicana, as conquistas (residuais, ainda que eficazes) da laicidade humanista e iluminista. Ao invés de se colocar à esquerda da social-democracia, como a Centesimus Annus propunha, o papado situou-se à direita, no cenário social, e junto a uma direita política próxima aos Tea Parties (inclusive os europeus).
Agora, o Papa alemão abdica. É quase divertido ouvir a mídia do mundo que ainda se interessa pelo assunto (muito limitado, se considerarmos o espaço global). Ela pede ao novo Papa que reconheça o ministério eclesiástico das mulheres; que estabeleça uma administração colegiada burguesa da Igreja, que assegure uma posição de independência em relação à política… propostas banais. Mas tocam o essencial? Seguramente, não: é a pobreza, o que falta à Igreja. Seria enfim o momento de compreender que o Papa não é um Rei: deve ser pobre, só pode ser pobre.
Tentarão mascarar o problema promovendo um africano, ou um filipino, ao papado? Que horrível gesto racista seria, se o Vaticano e os seus ouros e os seus bancos e a sua dogmática política a favor da propriedade privada e do capitalismo permanecessem brancos e ocidentais! Pedem conceder às mulheres o sacerdócio: não é pura hipocrisia, quando não lhes passa nem pela antecâmera do cérebro que Deus possa ser declinado ao feminino? Querem gestão colegiada da Igreja: mas já Francisco ensinou que o compartilhamento só poderia se dar na caridade. Etc, etc.
A Igreja do Papa polaco e do alemão concluiu o processo de aniquilação do Concílio Vaticano II, e esta liquidação infelizmente não representou jamais uma “guerra civil” no interior da instituição, mas apenas um torneio de esgrima entre prelados – ainda que sangrenta, como no caso da neutralização do cardeal Martini – mas sempre esgrima. Ao colocarem uma pedra sobre aquele Concílio, os dois últimos Papas bloquearam um impetuoso movimento de renovação religiosa. Sobretudo, confundiram a Igreja com o Ocidente, o cristianismo com o capitalismo. Era justamente o que a Centesimus Annus prometia não voltar a fazer, uma vez acabada a histeria anti-soviética.
Não bastava, porém, proclamar a pobreza, para subordinar à cristandade as formas de vida do Ocidente capitalista. Era preciso praticar a pobreza, alimentá-la, como uma revolução. Diante das crises monetárias, de produção e sociais, os cristãos teriam desejado da Igreja uma definição nova e adequada de “caridade”, de “amor pelo próximo”, da “potência da pobreza”. Não a obtiveram. No entanto, muitos militantes cristãos refutam o declínio que o Vaticano e o Ocidente parecem percorrer juntos.
Alguns pensam agora que “a renúncia de Bento poderia finalmente tirar a Igreja do século XIX”; outros ,que haverá uma reflexão profunda e o reconhecimento da necessidade de uma reforma. Mas, ao contrário, não terão razão aqueles para os quais estamos diante da “agonia de um império doente?”. E que o gesto de Bento não é outra coisa além de um álibi oportunista, uma tentativa extrema para fugir da crise? A única coisa de que estamos certos é que qualquer reforma doutrinária será inteiramente inútil se não for precedida, acompanhada e realizada por meio de uma reforma radical das formas de presença social da Igreja, de suas mulheres e homens. Se estes desistirem de associar a esperança celeste e a terrena. Se voltarem a falar da “ressurreição dos mortos”, ocupando-se dos corpos, do alimento, das paixões dos homens que vivem. Significa romper com a função que o Ocidente capitalista confiou à Igreja – pacificar, com esperanças vazias, o espírito de quem sofre; tornar culpada a alma que se rebela.
A descontinuidade produzida pela renúncia de Bento suscitará efeitos de renovação se a ela se associar a recusa a representar a “Igreja do Ocidente”. Talvez tenha chegado o momento de realizar o que havia proposto a Centesimus Annus há vinte anos, e reconhecer aos trabalhadores a condição de explorados, no Ocidente, pelo Ocidente. Mas se o Papa polonês de então não conseguiu, é dúbio que possa fazê-lo um aluno seu, de frágil carisma. A obra está confiada, portanto, aos cristãos. E a nós todos.
Tradução: Antonio Martins

Protesto envolvendo Tatu-Bola segue repercutindo entre policiais e ativistas de Porto Alegre @jornalsul21 - por Latuff

Fonte: http://latuffcartoons.wordpress.com/

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Uma terrível normalidade: os massacres e as aberrações da História - por Michael Parenti

Uma terrível normalidade: os massacres e as aberrações da História
Nós precisamos nos esforçar de toda forma possível pelo desenrolar revolucionário, uma revolução de democracia
Ao longo de boa parte da história, o anormal tem sido a norma, Este é o paradoxo que vamos examinar. Aberrações, tão abundantes que formam uma terrível normalidade própria, caem sobre nós com uma consistência medonha.

A quantidade de massacres na história, por exemplo, é quase maior do que nós podemos nos lembrar. Houve o holocausto do Novo Mundo, que consistiu no extermínio de povos indígenas americanos nativos por todo o hemisfério ocidental, estendendo-se por quatro ou mais séculos e continuando até tempos recentes na região amazônica.

Foram séculos de escravidão cruel nas Américas e em outros lugares, seguidas por um século inteiro de linchamentos a da segregação de Jim Crow nos Estados Unidos, e pelos numerosos assassinatos e prisões da juventude negra pela polícia atualmente.
Wikicommons
Linchamento público de Henry Smith, negro norte-americano morto por espancamento em 1893 em Paris, Texas

Não nos esqueçamos do extermínio de 200 mil filipinos pelo exército dos Estados Unidos no começo do século 20, o massacre genocida de 1.5 milhão de armênios pelos turcos em 1915, e a matança em massa dos africanos pelos colonialistas ocidentais, incluindo as 63 mil vítimas do genocídio de hererós e namaquas, no sudoeste africano alemão, em 1904, e a brutalização e escravização de milhões de belgas do Congo desde o final dos anos 1880 até a sua emancipação em 1960 – seguida pelos anos de exploração do livre-comércio neocolonial e pela repressão no que era o Zaire de Mobutu.

Os colonizadores franceses mataram 150 mil argelinos. Mais tarde, muitos milhões faleceram em Angola e Moçambique ao lado de outros 5 milhões na impiedosa região hoje conhecida como a República Democrática do Congo.

O século vinte nos deu – além de outros horrores – mais de 16 milhões de vidas perdidas e de 20 milhões de feridos ou mutilados na Primeira Guerra Mundial, seguidos pelos estimados 62 a 78 milhões de mortos na Segunda Guerra Mundial, incluindo 24 milhões de militares e civis soviéticos, 5.8 milhões de judeus europeus, e somados como um todo, muitos milhões de sérvios, poloneses, ciganos, homossexuais e uma porção de outras nacionalidades.

Nas décadas depois da Segunda Guerra Mundial, muitos, se não a maioria, dos massacres e guerras foram abertamente ou secretamente patrocinados pelo estado de segurança nacional dos Estados Unidos. Isso inclui os mais ou menos dois milhões deixados mortos ou desaparecidos no Vietnã, ao lado dos 250 mil cambojanos, 100 mil laosianos e 58 mil americanos.

Em boa parte da África, Ásia Central, e no Oriente Médio, hoje, existem guerras “menores”, cheias de atrocidades de todos os tipos. A América Central, a Colômbia, a Ruanda e outros lugares numerosos demais para listar sofreram massacres e extermínios em massa de centenas de milhares, uma constância de horrores violentos. No México, uma “guerra contra as drogas”, tirou a vida de 70 mil pessoas e deixou 8 mil desaparecidas.

Houve a chacina de mais de meio milhão de indonésios socialistas ou nacionalistas democráticos pelo exército indonésio patrocinado pelos Estados Unidos em 1965, que terminou seguida pelo extermínio de 100 mil timorenses do leste pelo mesmo exército apoiado pelos Estados Unidos.

Considere os 78 dias de destruição aérea da Iugoslávia pela OTAN, completada com [armas de] urânio empobrecido, e o bombardeio e invasão do Panamá, Granada, Somália, Líbia, Iêmen, Paquistão Ocidental, Afeganistão, e agora a guerra devastadora do atrito intermediado contra a Síria. Enquanto eu escrevo (no começo de 2013) sanções patrocinadas pelos Estados Unidos contra o Irã estão plantando severas dificuldades para a população civil daquele país.

Tudo o que foi citado acima faz parte de uma muito incompleta lista da injustiça feia e violenta no mundo. Um inventário completo encheria volumes. Como nós registramos os outros incontáveis abusos que marcam vidas, os muitos milhões que sobreviveram a guerras e massacres, mas seguem para sempre com corpos e espíritos quebrados, condenamos a uma vida de sofrimento e privações sem dó, refugiados que não têm comida ou remédios ou água e serviços sanitários em países como Síria, Haiti, o sul do Sudão, Etiópia, Somália e Mali?
Pense nas milhões de mulheres e crianças ao redor do mundo e ao longo dos séculos que foram traficadas de maneiras impronunciáveis, e os milhões em cima de milhões presos em uma armadilha de exploração, sejam eles escravos, servos, ou trabalhadores mal pagos. O número de empobrecidos está agora crescendo em uma taxa que supera a população mundial. Some a isso os incontáveis atos de repressão, encarceramento, tortura e outros abusos criminosos que se abateram sobre o espírito humano em todo o mundo e todos os dias.

Não deixemos passar batidas a onipresente corrupção corporativa e as massivas fraudes financeiras, a pilhagem dos recursos naturais e o envenenamento industrial de regiões inteiras, o deslocamento forçado de populações inteiras, as catástrofes intermináveis de Chernobyl e Fukushima e outros desastres iminentes esperando o envelhecimento de muitos reatores nucleares.

As mais horrorosas aberrações do mundo são tão comuns e implacáveis que elas deixam de ser extremas e nós nos tornamos acostumados ao horror de tudo. “Quem hoje se lembra dos armênios?”, é uma pergunta que Hitler teria feito enquanto planejava sua “solução final” para os judeus. Quem hoje se lembra dos iraquianos e da morte e destruição que eles sofreram em larga escala pela invasão norte-americana de suas terras? William Blum nos faz lembrar que mais da metade da população do Iraque está ou morta, ou ferida, traumatizada, presa, deslocada ou exilada, enquanto seu meio-ambiente é saturado com urânio empobrecido (do armamento estadunidense) provocando horrorosos defeitos de nascimento nos bebês.
Padrões
O que será feito disso tudo? Primeiro, nós não podemos atribuir essas aberrações ao acaso, a confusões inocentes e a consequências não intencionais. Nem deveríamos acreditar nas justificativas comuns sobre espalhar a democracia, lutar contra o terrorismo, promover resgates humanitários, proteger os interesses nacionais dos Estados Unidos e outras palavras de ordem gritadas pelas elites dominantes e seus porta-vozes.

Os padrões repetitivos de atrocidade e violência são tão persistentes que nos convidam a suspeitar que eles geralmente sirvam a interesses reais; eles são estruturais e não incidentais. Toda essa destruição e chacina deu altíssimos lucros aos plutocratas que buscam a expansão econômica, a aquisição de recursos, o domínio de territórios e a acumulação financeira.

Os interesses dominantes estão bem servidos por sua superioridade em armas de fogo e força de ataque. A violência é do que nós estamos falando aqui, não apenas a do tipo selvagem e arbitrária, mas a persistente e bem organizada. Como um recurso político, a violência é o instrumento da autoridade suprema. A violência permite a conquista de terras inteiras e das riquezas que elas contêm, enquanto se aproveita de trabalhadores deslocados e outros escravos.

Os governantes da plutocracia acham necessário maltratar ou exterminar multidões inquietas para fazer com que elas morram de fome enquanto os frutos de suas terras e o suor de seu trabalho enriquecem os círculos sociais privilegiados.

Assim, nós tivemos uma lei imperial regida pelo lucro que ajudou a causar a grande fome no norte da China, entre 1876-1879, resultando na morte de por volta de 13 milhões de pessoas. Mais ou menos ao mesmo tempo, a fome de Madras, na Índia, levou as vidas de nada menos que 12 milhões enquanto as forças coloniais enriqueceram ainda mais. E noventa anos antes, a Grande Fome na Irlanda levou a um milhão de mortes, com outro desesperado milhão emigrando de sua terra natal. Nada acidental aí: enquanto os irlandeses morriam de fome, seus patronos ingleses exportavam carregamentos de grãos e gado para a Inglaterra e outros países, ganhando para si lucros consideráveis.

Essas ocorrências devem ser vistas como algo mais que apenas anomalias históricas flutuando sem rumo no tempo e no espaço, causadas apenas por impulsos arrogantes ou casualidades. Não é suficiente condenar os eventos monstruosos e os tempos ruins, nós precisamos tentar entendê-los. Eles devem ser contextualizados no quadro mais amplo das relações sociais históricas.
Crises econômicas
O sistema socioeconômico dominante atual é o capitalismo de livre-comércio (em todas as suas variações). Junto com seu terrorismo imperialista implacável, o capitalismo de livre-comércio proporciona “anomalias normais” dentro de sua própria dinâmica, criando escassez e um excesso mal distribuído, cheio de duplicações, desperdício, superprodução, destruição ambiental assustadora, e variedades de crises financeiras, trazendo inchadas recompensas para um grupo seleto e dificuldades contínuas para multidões.

Wikicommons
[Grafitti em Milão, na Itália, manda aviso ao ex-premiê Silvio Berlusconi: "Pague você a crise!]

As crises econômicas não são excepcionais; elas são o modus-operandi do sistema capitalista. Outra vez, o irracional é a norma.
Considere a história do livre-comércio: depois da Guerra da Independência dos Estados Unidos, houve as rebeliões de débito do final dos anos 1780, o pânico de 1791, a recessão de 1809 (que durou muitos anos), os pânicos de 1819 e 1837, as recessões e quebras ao longo de boa parte do restante daquele século. A séria recessão de 1893 continuou por mais de uma década.

Depois do desemprego industrial de 1900 a 1915 veio a depressão agrária dos anos 1920 – escondida atrás do que ficou conhecido entre nós como a “Era do Jazz”, seguida de uma horrenda quebra da bolsa e da Grande Depressão de 1929-1942. Ao longo de todo o século 20 nós tivemos guerras, recessões, inflação, lutas laborais, alto desemprego – raramente um ano que pudesse ser considerado “normal” em qualquer sentido agradável. Um período normal estendido seria ele mesmo uma anormalidade. O livre-comércio é desenhado para ser inerentemente instável em todos os aspectos fora o acúmulo de riquezas para os poucos selecionados.

O que nós estamos testemunhando não é um acaso irracional em uma sociedade basicamente racional, mas o contrário: o “racional” (a ser esperado) é o acaso de uma sociedade fundamentalmente irracional. Isso significa não podemos escapar aos horrores? Não, eles não feitos por forças sobrenaturais. Eles são produzidos pela ganância plutocrática e pela decepção.

Então, se o anômalo é a norma e o horror é crônico, na nossa revanche nós temos que dar menos atenção ao idiossincrático e mais ao sistêmico. Guerras, massacres e recessões ajudam a aumentar a concentração do capital, o monopólio de mercado e dos recursos naturais, e destroem organizações trabalhistas e a resistência popular transformadora.

Os caprichos brutais da plutocracia não são produto de personalidades particulares, mas de interesses sistêmicos. O presidente George W. Bush foi ridicularizado por errar as palavras, mas sua construção de impérios e remoção de serviços e regulamentos governamentais revelou uma grande devoção aos interesses da classe dominante. Da mesma maneira, o presidente Barack Obama não é covarde. Ele é hipócrita, mas não confuso. Ele é (em sua própria descrição) um antigo “liberal republicano”, ou como eu diria, um fiel servidor das corporações da América.

Nossos diferentes líderes são bem informados, não iludidos. Eles vêm de diferentes regiões e diferentes famílias, e têm personalidades diferentes, mas ele buscam basicamente as mesmas políticas representando a mesma plutocracia.
Ações
Então não é suficiente denunciar atrocidades e guerras, nós também temos que entender quem as propaga quem lucra com elas. Nós temos que perguntar porque a violência e a decepção são ingredientes constantes.

Consequências não intencionais e outras esquisitices acontecem em assuntos mundanos, mas nós também temos que levar em consideração as intenções racionais orientadas pelo lucro. É mais comum que as aberrações – sejam elas guerras, quebras de mercado, fomes, assassinatos individuais ou matanças em massa – tomem forma porque aqueles no topo estão buscando expropriações lucrativas. Muitos podem sofrer e perecer, mas alguém em algum lugar esta lucrando sem limites.

Conhecer nossos inimigos e o que eles são capazes de fazer é o primeiro passo na direção de uma oposição efetiva. O mundo deixa de ser uma confusão terrível. Nós podemos resistir a esses agressores quando nós vemos quem eles são e o que eles estão fazendo conosco e com nosso sagrado meio-ambiente.

As vitórias democráticas, não importa se são pequenas ou parciais, devem ser abraçadas. Mas as pessoas não devem ficar satisfeitas com favores cintilantes oferecidos pelos líderes suaves. Nós precisamos nos esforçar de toda forma possível pelo desenrolar revolucionário, uma revolução de democracia, o tipo de onda irresistível que parece surgir do nada enquanto leva tudo que está à sua frente.

* Michael Parenti é um escritor e historiador norte-americano. Seus livros mais recentes são The Culture Struggle (2006), Contrary Notions: The Michael Parenti Reader (2007), God and His Demons (2010), Democracy for the Few (9th ed. 2011), e The Face of Imperialism (2011). Para mais informações sobre o trabalho dele, visite seu site: www.michaelparenti.org. Artigo originalmente publicado no site Global Research