Não te dou o direito, quando me negas o direito
Se puderem ficar no armário a sociedade heteronormativa agradece, se não, pelo menos se comportem. Por Eduardo Sousa
A luta contra a homofobia e pelo respeito à diversidade sexual e em defesa dos direitos humanos negados aos homoafetivos não é uma luta particular dos gays, muito menos uma luta opcional.
A causa LGBTT [Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros] é embasada na violação dos direitos humanos e civis dos gays e lésbicas, é fundamentada no posicionamento político contra a dominação de gênero e a opressão de classe. A mesma está diretamente ligada à luta de classe. Afinal, a classe trabalhadora não é composta apenas de heteros.
Passa diretamente pela luta de emancipação humana e pela sociabilidade humana onde todos e todas possam desenvolver de forma livre suas potencialidades humanas. Marx defendia a emancipação humana e dizia que a sociedade que queremos é uma sociedade em que o gênero humano pudesse evoluir nas suas capacidades de maneira plena e livre.
Sem falar que a família monogâmica e o patriarcado são pilares de sustentação da exploração capitalista.
A bandeira LGBTT faz parte da totalidade das lutas da classe trabalhadora e do projeto de emancipação humana, pela construção de um mundo melhor, justo, igualitário, fraterno e totalmente livre das opressões.
Então, não é a causa gay, o movimento gay ou a bandeira gay que está em jogo, mas a luta pela liberdade, pelos direitos negados historicamente pela sociedade patriarcal, machista, conservadora e heteronormativa.
É a causa de todos e todas, ou pelo menos deveria ser, dos militantes socialistas ou dos que lutam pela transformação da sociedade. Pois não há e nem é uma sociedade socialista se ela tiver enrustida de preconceitos, machismo, racismo e homofobia.
O argumento utilizado por alguns da “esquerda” é que temos primeiro que lutar pela emancipação política e econômica da classe e depois, num processo revolucionário, ir extirpando os valores dominantes herdados pelos modelos de sociedades anteriores. Argumentam também que o movimento LGBTT é multiclassista, o que se configura como um grande equívoco, pois a militância LGBTT de um modo geral é da classe trabalhadora pobre e classe média. Os gays ricos não precisam militar, pois os mesmos compram seu “respeito”.
Historicamente a esquerda sempre fez alianças com a direita ou setores estratégicos sobre o argumento da correlação de forças ou acúmulo de forças. Essa indiferença de alguns dirigentes políticos em relação ao movimento LGBTT não seria indício de valores burgueses conservadores e “moralistas”, herdados historicamente no processo de construção social, cultural e religioso da sociedade e, consequentemente, dos indivíduos? Pois são as lutas contra as opressões e superação dos preconceitos que devem caminhar juntas com a luta política e econômica. Aliás, estão totalmente interligadas, os valores antirracistas, antimachistas e anti-homofóbicos devem germinar nas consciências dos trabalhadores e trabalhadoras como parte integrante do processo de libertação humana e, principalmente, da construção de novos homens e mulheres, que serão construtores desse novo mundo.
Nesse sentido se faz necessário dar visibilidade à luta LGBTT, assim como damos à luta contra o agronegócio, agrotóxicos, latifúndio, pela reforma agrária, pela emancipação politica das mulheres, dos índios, negros, operários, camponeses e tantas outras bandeiras e sociabilidades que defendemos.
O fato de não termos no Brasil um movimento LGBTT de esquerda forte não nos dá o direito de não apoiarmos a causa ou não darmos visibilidade ao debate. Aliás, essa é uma forma cruel e homofóbica, não abrimos nossos espaços para nos apropriamos do debate numa perspectiva transformadora e esclarecedora.
Não podemos esquecer os invisíveis lutadores e lutadoras que estão na trincheira da luta de classes em nossas organizações, segurando as várias bandeiras de luta anticapitalistas. Os invisíveis são homoafetivos, nossos camaradas, e constroem a luta conosco, que muita das vezes apenas se conformam com a aceitação na organização; como se as organizações estivessem fazendo um favor, quando na verdade é nosso dever como lutadores e lutadoras do povo. É o nosso dever revolucionário fazer mais do que aceitar nossos camaradas na organização ou em tarefas de direção.
Poderíamos pelo menos começar estudando, refletindo e dando visibilidade à causa dos invisíveis. Afinal, a opressão homofóbica é responsável, em cada ano, por mais de 200 assassinatos de gays no Brasil, um a cada 36 horas. Ressalte-se que são estatísticas midiáticas (o que a imprensa registra); se somassem os crimes anônimos esse número duplicaria.
Sem falar nas centenas de suicídios, no índice de gays com depressão ou estado de loucura, no alto índice de desistência na escola por bullying homofóbico. Mais de 80% de travestis vivem na extrema miséria e na prostituição. E os milhões de homoafetivos que vivem recuados, escondidos, constrangidos e amedrontados e convencidos que podem até ser gays, mas têm que seguir um padrão moral da sociedade heterossexual. E começando por ser “discretos’’, de preferência masculinizados, pois gays afeminados, travestidos chamam muita atenção. Lésbicas masculinizadas são um horror, fogem de todo padrão “feminino”. Se puderem ficar no armário a sociedade heteronormativa agradece, se não, pelo menos se comportem.
Sem falar da negação dos direitos civis, união civil, aposentadoria, partilha de bens, crédito conjunto e todos os direitos que um cidadão tem. Será que nossa homoafetividade e nossa forma de amar tirou nossa cidadania? Se sim, é inadmissível que o sistema capitalista só não tirou o dever de pagarmos nossos impostos de forma igualitária em relação aos heterossexuais. Mas alguns religiosos tiraram até o direito de sermos filhos de Deus ou de irmos ao paraíso.
Não somos culpados por sermos homofóbicos, machistas, racistas. Afinal, esses preconceitos são fruto das ideias dominantes, anteriores ao capitalismo e que só se fortalecem com ele. Porém, é nosso dever militante extirpá-los de nossas práticas, comportamentos, discursos e combatê-los com todo rigor revolucionário. E fazer o debate, estudo, reflexão, por ser o início do caminho.
E seguindo essa lógica, a sociedade capitalista que herdou os preconceitos de suas antecessoras, para nos compensar, cria bares, revistas, shoppings, cruzeiros, filmes, agência de viagem, sites, cinemas, saunas, becos e ruas, empresas e quem sabe até um cemitério para que possamos enterrar nossos mortos assassinados pelos homofóbicos.
Mas o contraditório é que até o Estado capitalista, que por natureza é excludente, tem reconhecido os direitos civis dos homoafetivos a partir da luta. Será que é fruto da pressão política e popular da luta LGBTT ou porque quer agradar seu público consumidor em nome de uma lucratividade, os quais lotam periodicamente as várias capitais do mundo, gerando inúmeras possibilidades rentáveis ao mesmo capitalismo monopolista?
E a esquerda? E os movimentos populares, sociais e revolucionários onde estão? O que estão fazendo? Salvo alguns movimentos e partidos que mesmo que de forma pontual e ainda tímida já se atêm a essa questão. E, claro, as milhares de ONGs que em sua maioria não nos ajudam a emancipar a comunidade LGBTT e suas vítimas das inúmeras opressões, mas por outro lado contribuem para amenizar as situações críticas deploráveis vividas pelos mesmos.
Por tudo isso é que não temos o direito de termos um comportamento homofóbico. Seria uma prática contraditória e incoerente com os nossos ideais revolucionários, libertários e de transformação, seria o oprimido se comportando como opressor.
Não é uma guerra sexista, ou de homos contra heteros, ou vice versa, mas sim uma guerra contra todas as formas de dominação, ou melhor, toda forma que sujeita, que inferioriza, que tira a dignidade humana. Por isso não te dou o direito quando me negas o direito, pois a tua homofobia nega o direito fundamental aos homens e mulheres à Liberdade.
A luta da Diversidade Sexual é transversal nas classes sociais, mas é preciso trazermos essa luta para a centralidade de classe e com o referencial socialista-comunista. Não devemos ficar indiferentes. Afinal, as classes trabalhadoras e o operariado, assim como o campesinato, são heterogêneos na sua orientação sexual e orientação de gênero. O movimento histórico da luta LGBTT sempre sofreu com a discriminação e o distanciamento da esquerda. Erro gravíssimo e extremamente contraditório para qualquer processo revolucionário da classe trabalhadora. É preciso corrigir esses erros e aglutinar as lutas populares e específicas não menos importantes para o nosso objetivo estratégico do que é o socialismo.
É importante que nos desnudemos dos nossos preconceitos dominantes e de nossa forma dogmática e doutrinária e às vezes esquerdista de interpretarmos a luta de classes e o processo de libertação da classe, sem falar de uma visão meramente estreita, por isso não dialética e economicista. A libertação da classe trabalhadora não passa apenas pela a emancipação econômica, e sim por todas as formas de opressão e exploração. Com o capitalismo é impossível rompermos com a homofobia. Assim com homofobia não há socialismo. Ou seria um “socialismo heteronormativo”?
Quanto a nós, lutadores e lutadoras do povo, somos convocados ao dever de sermos sujeitos transformadores e construtores das ideias libertárias de emancipação humana, de unirmos nossas forças coletivas em prol da liberdade dos homens e mulheres, heterossexuais, homoafetivos. Como também dos sem terra, pequenos(as) agricultores(as), operários(as), índios(as), negros(as), atingidos por barragens, pessoas portadoras de necessidades especiais, enfim da classe trabalhadora brasileira e mundial.
Somos convocados ao dever de levantarmos nossas bandeiras, vermelhas, brancas, verdes, lilás, pretas e coloridas para apontarmos para uma única bandeira, a da liberdade, a do socialismo, da revolução contra as opressões de classe, gênero e identidade.
Somos convocados ao dever de alicerçamos a nova sociedade livre dos preconceitos, da discriminação, do machismo, da homofobia, do racismo e do capitalismo. Pensemos no legado de Che aos seus filhos — ”acima de tudo, sejamos capazes de sentir qualquer injustiça cometida contra qualquer pessoa em qualquer parte do mundo, essa é a qualidade mais linda de um revolucionário”. E seu conselho a nós: “A revolução será feita pelos homens e mulheres, mas é preciso forjar a cada dia nosso espírito revolucionário”.
Enfim, somos convocados a construirmos “um mundo onde sejamos socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres”, como disse Rosa Luxemburg.
Nota sobre o autor
Eduardo Sousa é aluno do Curso de Licenciatura em Educação do Campo na FAFIDAM–UECE e militante do Setor de Gênero e Formação do MST-CE.
Fonte: http://passapalavra.info/
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