São Paulo, metrópole de todos?
Ladislau Dowbor enxerga possível laboratório de nova governança, que supere limites da velha política e estabeleça planejamento radicalmente participativo
Para que São Paulo funcione melhor, é preciso melhorar a gestão da cidade. A escala é grande, e os problemas são muitos, mas ao fim e ao cabo trata-se de administrar o melhor possível recursos que são limitados, e isto aprendemos a fazer inclusive na nossa própria casa. Há casas, prédios, empresas ou cidades que são bem administrados, outros não. Na realidade, não é a escassez de recursos o problema principal, e sim o processo decisório que preside sua utilização.
Poderíamos aqui fazer um elenco das teorias que existem sobre a administração pública local, os grupos de pressão, a economia regional e urbana. Mas nos pareceu mais simples partir de exemplos concretos, dos problemas práticos do cotidiano da cidade, e tecer em volta deles as mudanças necessárias de governança. Estes problemas ja foram apresentados de maneira mais extensa em outros estudos, mas aqui serão rapidamente tocados com o foco nas medidas de gestão e de governança que implicam.
Informação compartilhada
Imagine que você queira vender sua casa. Normalmente, terá de enfrentar uma dúzia de corretores e, a não ser por algum golpe de sorte, levará um ano, além de transformar a sua casa numa árvore de natal de placas de imobiliárias. A solução é simples: em muitas cidades, os corretores de imóveis que recebem a sua proposta de venda têm 24 horas para oferecer a casa na internet, com foto e detalhes como preço (que o eventual comprador, hoje, trava uma batalha para obter), sob a pena de perderem a licença de corretagem. No caso do comprador interessado num imóvel, é o mesmo sistema: o corretor que recebeu o pedido coloca na internet. O resultado é que todas as propostas de compra e venda da cidade estão permanentemente em contato, em vez de um corretor guardar preciosamente a sua meia dúzia de fichas de compra, e outro a sua meia dúzia de fichas de venda, um evitando cuidadosamente que outro saiba o que tem em mãos. A média de prazo de venda de um imóvel na cidade de Toronto (Canadá), para dar um exemplo, é da ordem de dez dias. A comissão é dividida entre quem encontrou um proprietário e quem encontrou um potencial comprador1.
É uma medida simples, mas de impactos significativos. O sistema fragmentado atual significa capital imobilizado, tempo perdido para todos, pessoas estressadas, e falta de flexibilidade de adaptação do local de moradia e do local de trabalho ou estudo. Enrijece o fluxo de transações imobiliárias, além de gerar um poder oligopolizado, nas mãos de alguns “donos” do processo, fator de especulação imobiliária que prejudica a todos. As maiores inclusive bancam campanhas de vereadores e prefeitos, e transformam o seu controle de diversos bairros em poder e deformação do processo decisório público. Já houve tentativas pontuais no sentido de se criar um sistema integrado online em São Paulo, mas enquanto não houver uma regulamentação que envolva a todos os atores, continuaremos no sistema irracional atual. A regulamentação exige aqui simplesmente uma decisão do prefeito, ou da Câmara.
O interessante, é que com a maior fluidez de transações, onde foi adotado, o sistema permitiu elevar a renda dos próprios corretores, pois o volume de transações aumenta fortemente. Mas a resistência das imobiliárias é grande, pois não querem dividir a corretagem, e têm receio de outros aproveitarem as suas fichas sem contrapartida. É o tradicional problema do “senta” gritado pelos espectadores de um jogo de futebol, em que ninguém senta, pois quem sentar sozinho fica sem ver o jogo.
Trata-se aqui de um exemplo simples de perda de produtividade sistêmica na cidade, por falta de organização, por atraso dos processos de gestão relativamente às novas tecnologias, e por privilegiar ganhos fragmentados individuais relativamente aos ganhos mais amplos para todos. Sem falar, naturalmente, que na São Paulo realmente existente, os interesses de algumas imobiliárias articuladas com políticos tradicionais podem pesar mais do que o interesse público. No caso, já existem as tecnologias, conhece-se inúmeros exemplos de experiências bem sucedidas, e não se trata de gastar rios de dinheiro: é racionalização gerencial. A simples disponibilização na internet das informações leva a que as imobiliárias, em vez de brincarem de esconde-esconde entre si e cobrarem pedágios elevados, sejam facilitadores e não atravessadores. A disponibilização das informações, gerando transparência dos processos, pode ser um poderoso racionalizador da gestão. E o impacto, numa cidade dinâmica e de grandes distâncias como São Paulo, será evidentemente grande, inclusive porque a rigidez do sistema atual leva a que inúmeros proprietários de imóveis os deixem vazios, quando muita gente carece de moradia adequada ou bem localizada segundo o seu local de emprego.
O exemplo nos leva diretamente ao problema da governança da cidade, do processo decisório sobre a alocação dos nossos recursos. Enquanto as decisões forem centralizadas, pouco transparentes, tomadas entre grupos acostumados ao compadrio e não à gestão dos interesses públicos, dificilmente serão tomadas medidas que favorecem a cidade, mesmo quando são óbvias e baratas. Para que os interesses da cidade apareçam nos processos decisórios, é indispensável resgatar a cidadania. Ou seja, sistemas descentralizados e participativos, e a transparência que assegure a informação cidadã.
Planejamento participativo
Outro exemplo interessante é o da canalização de córregos. Na ausência de uma política integrada de gestão da água na cidade, optou-se tradicionalmente pelo varejo: um bairro que sofre regulares enchentes procura o vereador, que negocia os interesses envolvidos, pressiona o prefeito, identifica os interesses de uma empreiteira, e o resultado é um córrego canalizado. Os residentes do bairro ficam satisfeitos, o vereador ganha votos, a empreiteira ganha dinheiro, o prefeito inaugura obras. O problema, naturalmente, é que a água tem a mania de correr para baixo. Por isso, possivelmente, falamos de “córregos”. Como no córrego canalizado a água corre mais rápido, o bairro a jusante passa a sofrer enchentes maiores. Os residentes do bairro seguinte vão então procurar o mesmo ou outro vereador, e o sistema continua, até que a água termine chegando tão rápido às partes baixas da cidade, que as enchentes se tornam catastróficas. Neste caso começam a ser construídos piscinões, para reter a água, o que gera bons contratos e novos núcleos de contaminação. E como os piscinões não são suficientes para conter o volume de água, contrata-se as mesmas empreiteiras para aprofundar a calha do rio. Mais contratos.
Trata-se aqui de políticas clientelistas, de venda a prestações de soluções que resolvem o problema de uns às custos de outros. E quando o sistema quebra de vez, e a inundação é generalizada, fecham-se as comportas de forma a que sejam atingidos os pobres, que não têm voz, e não os que formam a chamada “sociedade”.
Não se trata, aqui, de falta de conhecimento do que fazer. Em vez de canalizar os córregos, usam-se sistemas de “caixões” que retêm a água, num tipo de escadaria que trava o fluxo. Melhor ainda, em vez de cobrir e asfaltar os vales, mantem-se a distância de urbanização junto aos córregos, para assegurar a penetração da água nos lençóis freáticos, e utilizar a característica de esponja que têm as várzeas. Isto permite que os bairros, em vez de enchentes, tenham riachos com encostas arborizadas, fonte de lazer e de beleza. Inúmeras cidades do mundo estão mudando radicalmente sua relação com as águas de superfície. Em vez de mais concreto, passaram a utilizar mais planejamento. Entenderam que a água é uma força da natureza, que ao ser bem aproveitada e respeitada torna-se um impressionante fator de qualidade de vida na cidade. Transformar os riachos em esgotos canalizados, os vales em asfalto para carros, e a relação com a água numa luta contra a natureza, pode gerar bons contratos, além de belas inaugurações, mas não resolve nada. E evidentemente, com mais avenidas nos vales, em vez de mais metrô e transporte coletivo, o resultado é catastrófico tanto em termos de enchentes de água como de carros e mobilidade urbana.
Aqui também, evidentemente, temos um problema de governança, onde a visão sistêmica e de planejamento integrado deve ser resgatada. As pequenas vantagens de empreiteiras e prefeito de plantão, respondendo de maneira oportunista a interesses pontuais, não permitem soluções adequadas. Na soma dos interesses particulares de bairros afetados pelas enchentes, e dos interesses individuais de transporte, o resultado é um sistema onde não anda nem a água nem o carro. Nas reuniões que tivemos com técnicos da área de gestão da água, é impressionante como as soluções são conhecidas. Priorização radical do saneamento básico e tratamento de esgotos, arborização de encostas, resgate das várzeas, reabertura de pontos de estrangulamento dos fluxos de água, recuperação das margens invadidas por habitações de risco, avançando inclusive para a evidente possibilidade de um anel hidroviário em torno da cidade – aproveitando o Tietê, o Pinheiros e as represas – são medidas não só conhecidas como já sistematizadas em estudos e projetos concretos. E todos os dados estatísticos, tanto em termos de pluviometria como de desastres ocorridos e prováveis, estão disponíveis. Não é falta de conhecimentos, e sim de como são aproveitados.
Voltamos assim ao processo decisório, à democratização das opções sobre como se utilizam os recursos da cidade. A água não dá muita importância às delimitações de distritos e de subprefeituras, funciona por bacias hidrográficas. E se trata de um bem multifuncional, fator de produção econômica na agricultura, na indústria e no turismo, fator de bem-estar urbano através da beleza e dos espaços de lazer, vetor de transporte fluvial importante a ser resgatado, vetor de doenças e inundações quando tratado de maneira irracional. Este tipo de multifuncionalidade exige visão sistêmica, o que por sua vez exige a recuperação da capacidade de planejamento de longo prazo, no nível das diversas bacias hidrográficas, e envolvendo os diversos níveis de complexidade, desde o córrego do bairro até o planejamento da relação da cidade e da região metropolitana com todo o sistema de aproveitamento, uso, tratamento, reciclagem e incorporação da água nas dinâmicas urbanas.
Isto envolve a elaboração de um plano geral de águas, na mesma modalidade em que os fluxos de pessoas e mercadorias exigem um plano geral de mobilidade urbana e metropolitana. Mas envolve também a participação de cada bairro, de cada distrito e subprefeitura, no sentido de resgatar a segurança frente às enchentes, a transformação dos esgotos a céu aberto em riachos limpos e arborizados. Ou seja, cada subprefeitura, e cada distrito, devem dotar-se de espaços participativos que assegurem que o uso dos recursos públicos seja destinado a melhorar a qualidade de vida local – dentro de uma visão geral do plano de águas. Isto exige a dinamização de instâncias locais de decisão, mas também uma cidadania informada sobre os potenciais locais, e sobre os projetos em curso. Hoje, o cidadão descobre que há um projeto no seu bairro pela placa que é colocada no local, informando sobre algo que já foi decidido.
Em termos de processo decisório, isto implica na necessidade de se desenvolver a capacidade de planejamento participativo. O conceito de planejamento participativo vai além da alternativa simplificada e ideologicamente contaminada entre planejamento estatal autoritário e o vale-tudo do mercado: envolve a articulação dos processos públicos e dos interesses empresariais com as vontades expressas pelas comunidades, o conjunto baseado em estudos técnicos competentes que assegurem a visão de conjunto e os resultados positivos no longo prazo.
Acesso banda larga: conectividade
Uma terceira ilustração da necessária modernização da governança urbana nos é trazido pela questão da banda larga. Há uma corrida mundial de municípios que estão se dotando de WiFi, Wi-max e outras tecnologias que aproveitam um gigantesco capital desperdiçado nos centros urbanos, que são as ondas eletromagnéticas. A era digital no planeta está provocando uma profunda transformação civilizatória, revolucionando sistemas de gestão, transformando empregos, mudando radicalmente o conceito de espaço geográfico, alterando a própria sociabilidade e conexões entre as pessoas, grupos e empresas.
Em termos técnicos e financeiros, já não há muitos mistérios. A densidade populacional urbana torna muito rentável generalizar o acesso à internet em banda larga sem fio, permitindo a que qualquer pessoa possa se conectar com a totalidade das informações disponíveis online no planeta a partir de qualquer lugar, em qualquer momento, virtualmente sem custos. Hoje o acesso em São Paulo é monopolizado pelas empresas de telefonia, e como são poucas e articuladas, o resultado são custos muito elevados de acesso. Mas o acesso pode ser público, com softwares abertos, a custos reduzidíssimos. Qualquer pessoa conversa hoje pelo skype com Paris ou com Nova Iorque quase sem custos, porque está usando a internet, quando paga muito caro uma ligação entre, por exemplo, São Paulo e Campinas. Trata-se aqui de uma péssima gestão de um recurso público, as ondas eletromagnéticas, apropriadas por empresas privadas.
A solução óbvia é de se assegurar acesso aberto sem custos, ou a custo simbólico. A conta é simples: para a mobilidade das pessoas e das mercadorias, utilizamos ruas e avenidas, cujo custo de produção e manutenção é elevado. No entanto, ninguém cobra pedágio (ainda!) para andarmos na rua. Podemos circular livremente, e gratuitamente. Isto não impede que a rua seja produtiva em termos econômicos: permite a instalação de comércios, de residências e diversas atividades econômicas, que irão render dinheiro e gerar empregos. Da mesma forma, o ganho comercial com a circulação de conhecimento – onde as ruas e avenidas se chamam “banda larga” – não deve ser feito sobre a própria circulação, e sim sobre as atividades econômicas que permite. O que estamos fazendo agora é o equivalente a cobrar pedágio a cada esquina, impedindo o livre trânsito, o que trava aplicações mais produtivas para a cidade.
Na cidade de Piraí, no Estado do Rio, o programa Piraí Digital generalizou o acesso à banda larga (apesar das várias restrições legais geradas pela apropriação privada das ondas no Brasil, no regime das chamadas concessões), o que torna as escolas muito mais produtivas. Toda a rede pública dotou as crianças de laptops que trabalham sem fio. Com isso, a educação passou a trabalhar por projetos e com pesquisa dos conhecimentos disponíveis no planeta, em vez de se limitar às fatias de cinquenta minutos e conhecimentos compartimentados nas chamadas disciplinas e nos manuais escolares. E a criança pode continuar o trabalho em casa, pois a relação é com o conhecimento, e não com a instalação física que chamamos de “sala de aula”. É uma revolução educacional em marcha.
Com a abertura do acesso, multiplicam-se as oportunidades. As pessoas que têm um problema a resolver, trocam os “bits” de informações por internet. Em vez de tirarem o carro da garagem ou pegarem o ônibus, e perderem um meio dia de trabalho, quem viaja são os “bits”, com óbvias economias. O trânsito agradece, menos motoboys irão morrer nas ruas. O comércio passa a fazer uma gestão de estoques mais racional.
O resultados sobre o emprego aparecem com força tanto em Piraí, onde pequenos produtores de tilápia vendem diretamente subprodutos da pesca para o Japão – a internet não tem por que se limitar a fronteiras, as ondas viajam na velocidade da luz – como na favela de Antares, no Rio de Janeiro, onde o acesso à banda larga está generalizando atividades de prestação de serviços informáticos online, de design, de circulação de mensagens, de produção cultural disseminada na rede de pontos de cultura e semelhantes. “Com informação”, ouvimos de uma dos gestores do projeto, “nós somos iguais”. O emprego não significa necessariamente, nesta era, um local geográfico e instalações físicas, onde somos “empregados”. Há inúmeras atividades autônomas ou em rede que se expandem.
Para mencionar outro impacto importante, a conectividade generalizada na cidade permite que o conjunto de serviços públicos seja radicalmente descentralizado. Muito além da boa ideia que são os “poupa-tempo”, pode-se assegurar um poupa tempo generalizado, pois os mais diversos serviços municipais podem ser prestados diretamente através do computador das pessoas, sem sair de casa (como os bancos já fazem com as nossas contas). Outros podem ser instalados em todos os distritos da cidade sem se virar caos, pois estão em rede, o que permite descentralização do serviço associado à articulação, coordenação e controle sistêmicos.
Para uma cidade como São Paulo, com a sua dimensão e distâncias, trata-se de transformações de grande importância, inclusive porque constituem um fator de igualdade de oportunidades, reduzindo os dramas das periferias da metrópole. O conhecimento tem esta particularidade de ser um bem “não-rival”, o seu consumo não reduz o estoque. Usar conhecimento não gasta. Pelo contrário, na era da economia do conhecimento, quanto mais este circula, mais riqueza se gera.
O aporte racionalizador da gestão urbana resulta aqui do fato de a banda larga e a conectividade sem pedágios permitirem uma descentralização muito significativa do conjunto da administração pública. Em grande parte, as pessoas passam a administrar, elas mesmas, seus problemas. As rádios comunitárias e redes locais permitem que as comunidades se articulem, que sejam convocadas reuniões sem precisar de carro de som nem de correspondência, que se façam consultas online, que se denunciem de maneira democrática problemas ocorridos. É de certa forma um fator de “reapropriação” da cidade pelos seus usuários.
Em termos propriamente de governança, é essencial assegurar o acesso público à banda larga, tal como o fazemos com água, eletricidade e outros bens básicos. Atualmente apropriado por grupos privados, o sistema de acesso ao conhecimento e à conectividade deve ser assegurado no mesmo sistema publico e universal, o que não impede que grupos privados assegurem serviços especializados. Não se trata de passar do oligopólio privado ao monopólio público, mas de assegurar a função racionalizadora global que a conectividade permite. Por natureza, os sistemas privados concentram-se na demanda sofisticada com altos preços, com tendência para aprofundar a desigualdade de oportunidades na cidade. Um sistema básico público, com abertura para serviços diferenciados e especializados, ou demandas mais pontuais, pelo setor privado, portanto misto, constitui uma possível visão de governança deste setor tão importante.
A comunidade organizada: democracia participativa
Os pontos de modernização da governança urbana que vimos até agora, compartilhamento de informação, planejamento participativo, conectividade urbana, constituem instrumentos “soft”, no sentido de que não se trata de rios de dinheiro para construir mais um viaduto com muito ferro e concreto, e muita pompa para as inaugurações, além de muito dinheiro para a campanha política seguinte. Trata-se de medidas essencialmente organizacionais, de formas de funcionamento, de modernidade na gestão. E os impactos se manifestarão na área mais delicada e frágil, que é a área da governança, que chamamos de forma geral de “política”. Organizar esta “política” no sentido de assegurar a prioridade dos critérios ligados à qualidade de vida da população, passa por pensarmos menos em ideologias que nos dividem, e mais nas formas mais funcionais de responder aos problemas mais importantes. Não é dinheiro, asfalto nem concreto que nos fazem falta, e sim o bom senso na sua utilização, e a priorização dos resultados.
É importante lembrar que a governança e regulação dos vários setores de atividade precisa levar em conta os interesses presentes, as chamadas partes interessadas (stakeholders). Envolve portanto a geração de sistemas de pactuação, nos diversos níveis onde se situam os problemas: no bairro ou distrito, na subprefeitura, na cidade, na metrópole, articulando-se ainda com níveis estadual e federal. O que mais faz falta, na cultura política herdada na cidade, é o nível básico, o bairro, o distrito e a subprefeitura, que é onde as pessoas podem mais diretamente participar. Se houver forte organização cidadã na base, é o conjunto da pirâmide de decisões que passará a fazer sentido, pois as instâncias superiores terão de levar em consideração os interesses das comunidades, a prosaica qualidade de vida.
Os processos precisam ser democráticos. Diferentemente de uma empresa privada, no caso da cidade os usuários é que são os donos. Ou seja, a própria participação nas escolhas e nas opções do que será feito no bairro de cada um faz parte da vivência democrática.
O bairro constitui uma boa ilustração. A organização do nosso entorno imediato faz parte essencial da nossa qualidade de vida. Legalmente, o bairro ainda não é uma figura jurídica, o que nos obriga a trabalhar com a unidade de distrito. Os 96 distritos da cidade, com uma média de 100 mil habitantes, constituem, cada um, uma cidade de bom porte em qualquer parte do mundo. E temos um prefeito apenas, para todos os 96 distritos e 31 subprefeituras. É muito pouca democracia. Em termos práticos, a governança precisa ser aproximada do cidadão, para que haja processos participativos.
Não há nada aqui de misterioso. Em Grenoble constroem-se conjuntos habitacionais desenhados com participação dos futuros moradores, que asseguram que no conjunto haja uma farmácia, espaço para consultórios médicos, a inevitável padaria, a tinturaria, os espaços culturais. Ou seja, o desenho do espaço é pensado do ponto de vista do cotidiano do cidadão, que tem de dispor de uma série de amenidades nas distâncias “de a pé”, e não apenas do ponto de vista da empreiteira que quer maximizar o lucro por metro quadrado. Em Montreal, está codificado que uma alteração da praça exige consulta direta, em cada domicílio, aos residentes da praça, organização de reuniões de consulta para os que vivem nas ruas contíguas, e notificação e informação prévia aos residentes na região. Pode demorar um pouco, mas assegura que a praça não vire supermercado nem estacionamento, que se preservem os espaços comuns. Em Toronto, todas as infraestruturas esportivas escolares estão abertas à comunidade, sem precisar de carteirinha nem ser “sócio”: o aproveitamento das piscinas, campinhos de jogos e outros se torna não só mais útil, como economicamente mais viável.
Nosso cotidiano residencial não é apenas nossa casa. É importante para as crianças poderem conviver com outras crianças da rua e do bairro, que a escola possa ser acessada a pé, que o lazer da rua ou do parque sejam recuperados, que haja espaço de convívio e socialização para os jovens, espaços de recreação para os idosos que constituem uma riqueza potencial de aportes. O domicílio visto como fortaleza cercada de grades, e tão mais isolado quanto mais se eleva a renda, é uma dimensão patológica em termos de prazer cotidiano de vida, do conforto de poder ir de chinelo até a padaria da esquina. Um bairro não é um aglomerado de residências, cruzado por ruas e fios elétricos. É uma cultura. E não haverá esta cultura se os residentes do bairro não puderem influir sobre as decisões que os concernem. As organizações da sociedade civil estão se multiplicando não só para preencher os vazios onde o Estado falha, mas porque participar da construção das nossas condições de vida faz parte da vida. Agregar democracia participativa aos mecanismos representativos tradicionais não é visão “ideológica”, é respeito às pessoas, articulando os processos decisórios sobre um espaço que é de todos. Um movimento como a Rede Nossa São Paulo constitui um embrião destas articulações. Cidades Sustentáveis é um movimento crescente. O bom senso está chegando.
Os conselhos de desenvolvimento
Qual será o futuro econômico da cidade? Sabemos que as atividades industriais, além de empregar cada vez menos à medida que os processos são automatizados, migraram para cidades do interior. As atividades de intermediação financeira são cada vez mais geridas online pelos próprios usuários, reduzindo-se a quantidade de empregos no setor nos últimos anos. Com a conectividade generalizada que as novas tecnologias permitem, e a expansão das redes de transportes, o desenvolvimento está se interiorizando. A função de centro de uma ampla bacia econômica regional, que a metrópole desempenhava até há pouco tempo, já não tem o mesmo peso. Inclusive, o atravancamento geral em termos de mobilidade urbana, resultado de décadas de opções absurdas em termos de composição intermodal de transportes na cidade, leva à gradual erosão do seu papel intermediador de atividades econômicas regionais. Resta, sem dúvida, a função de cidade-mundo, de âncora de um conjunto de atividades internacionais que se desenvolvem nos espaços globalizados, representações comerciais, feiras, eventos.
De forma geral, a forte expansão de atividades previstas está relacionada às atividades tipicamente densas em mão de obra e em relacionamento pessoal direto, como são as políticas sociais. Educação, saúde, cultura, esporte, segurança, habitação, lazer, turismo – estas são as atividades que claramente despontam como dominantes no horizonte das metrópoles em mudança. A presença econômica de São Paulo dependerá cada vez mais da sua capacidade de ocupar um lugar de destaque na economia do conhecimento que se expande. Isto envolve investimentos maciços em educação, em pesquisa, em infraestruturas e sistemas de comunicação, na geração do ambiente criativo indispensável para que a cidade não fique parada no passado.
Há opções estratégicas a serem desenhadas, visões de futuro a serem construídas. Isto também exige soluções de governança. Uma experiência que está se desenvolvendo rapidamente em diversas partes do mundo consiste na criação do equivalente do que no Brasil se chamou de Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, formado inicialmente no nível federal, e hoje em funcionamento em diversos Estados e municípios. É um espaço de governança que exige participação empresarial, das autoridades públicas, de organizações da sociedade civil, de representações sindicais, de centros de pesquisa de diversas áreas. Alguém tem de pensar o futuro de maneira sistemática e organizada. Não é nos embates políticos da Câmara de Vereadores que surgirá este espaço. São os próprios atores mais representativos das mais diversas áreas de atividade que têm de contribuir para a construção das visões, e a negociação dos pactos correspondentes. E os vereadores, como órgão legislativo, saberão elaborar, debater e aprovar as leis correspondentes.
Xangai criou, em 1990, um núcleo de reflexão sobre o futuro da cidade, desenhando em particular o seu papel de articulador entre a imensa bacia econômica do interior e as conexões internacionais. Viu-se, ela também, como membro da rede de cidades-mundo que se desenhava. A Suécia, com uma população inferior à de São Paulo, tinha fixado bem antes disto sua vocação de priorizar a química fina e da mecânica de precisão. A África do Sul, responsável por 40% da produção econômica da África Sub-Sahariana, criou o National Economic Development and Labour Council (NEDLAC), para construir as suas visões. O Rio de Janeiro – que perdeu a sua função de capital para Brasilia, os seus empregos industriais para o vale do Paraíba e a região de Campos, e boa parte dos seus empregos portuários como resultado do esvaziamento econômico – não negociou a tempo o seu imenso potencial de turismo de negócios, de eventos e de cultura, não pensou a sua transição para o futuro. Hoje, tem uma massa demográfica de 8 milhões de pessoas sem as bases econômicas correspondentes – e um imenso tempo perdido, além da deterioração social a recuperar. Isto também faz parte da governança. O futuro tem de ser pensado agora.
Vimos aqui alguns instrumentos de gestão: compartilhamento da informação, planejamento participativo, conectividade embasada nas novas tecnologias, organização comunitária, conselhos de desenvolvimento. Uma vez mais, trata-se aqui de software, de inteligência organizacional, de uso racional de recursos. Não representam os mesmos custos que os absurdos minhocões, piscinões e semelhantes, onde a inteligência foi soterrada pelo concreto. Exigem bom senso, e sobretudo articulação política visando o objetivo maior: a qualidade de vida da população.
*Ladislau Dowbor é professor de economia e administração na pós-graduação da PUC-SP, e consultor de várias agências das Nações Unidas. Os seus textos estão disponíveis na íntegra (creative commons) no blog http://dowbor.org , em particular O que é poder local, A Reprodução Social, e Democracia Econômica.
1São Paulo tem, é claro, sites de venda imobiliária. A diferença é que cidades como Toronto já foram capazes de criar sistemas nos quais ficam disponíveis todos os imóveis entregues a negociação via corretagem. Isso torna muito mais fácil encontrar o que se procura e vender mais rapidamente o que se quer passar adiante.
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