“(…) tanto na memória e/ou imaginação de muitas outras pessoas, Crass está praticamente cravado na pedra, uma pedra que porventura irá rolar para o topo de uma colina da qual, com ou sem ajuda, irá eventualmente rolar para baixo novamente. Quando a pedra está no topo da colina, algumas pessoas parecem gostar de poli-la, deixando-a tão brilhante que é possível ver seus próprios rostos nela. Elas querem se ver nela, como se de alguma forma pudessem fazer parte dela, ou a pedra uma parte delas. Elas não querem ver as sujeiras, as partes ásperas, então passam a polir mais e mais até que, em suas frustrações, empurram a pedra, enviando-a novamente colina abaixo. Quando a pedra está no pé da colina, algumas pessoas gostam de mijar nela, como se isso fosse de alguma forma negar seu poder ou pelo menos diminuí-lo. Mas Crass foi ali, numa outra época, e não agora, então como pode este poder ser negado? Não faz diferença nenhuma se a pedra está no topo da colina sendo polida, ou se está no pé da colina sendo mijada. Crass foi um acontecimento; aconteceu e deixou de acontecer. O que outras pessoas fazem dele é da conta delas, o que, na verdade, não tem ligação a lguma com Crass. (…) Polir ou mijar, mudança não é estrutural, mas atitudinal; mude você mesmo, mude o mundo, e se as memórias do Crass te ajudarem nisso, ótimo. Se não ajudar, ótimo também.”
Penny Rimbaud, janeiro de 2017
Introdução de “Eles Nos Devem Uma Vida – Crass: Escritos,
Diálogos e Gritos”
Foram dias bastante intensos, tanto no sentido objetivo da
organização em si, quanto com relação a tudo que vivemos, pensamos e
experienciamos durante a rápida passagem de Penny Rimbaud pelo Brasil. Esse
relato tenta dar conta de um pouco disso tudo.
Penny, um dos formadores da banda inglesa Crass nos anos 70,
então baterista e autor de muitos de seus escritos, letras e panfletos, esteve
durante grande parte de sua vida envolvido em projetos e iniciativas
contraculturais, artísticas e libertárias, e ainda hoje, aos 74 anos, segue
escrevendo, criando, e conspirando novos projetos – que em sua maioria brotam
da casa-comunidade Dial House, onde vive desde o final dos anos 60, em meio a
um enorme jardim onde plantam parte do que comem e fazem germinar novas idéias
e propostas de vida. Foi ali nesse terreno em Essex, Inglaterra, que, aind a no
final dos anos 60, decidiu tirar todas as trancas e fechaduras da casa, para
criar uma casa aberta a todo tipo de iniciativa subversiva e contracultural… E
as pessoas começaram a chegar. Dali muita coisa surgiu, antes, durante e depois
do Crass, talvez um dos projetos mais conhecidos nesta história.
Um belo dia, umx de nós foi até a Dial House sem aviso, sem
contato prévio, somente com o endereço e a vontade de conhecer de perto essa
experiência. E foi recebidx com uma xícara de chá, muita conversa, comida e uma
cama para passar a noite – como se aquela pessoa estranha que chegava ali,
fosse uma velha amiga de anos. De toda essa receptividade, duas visitas à casa
e dois anos de conversa coletiva, nasceu essa pequena turnê pelo Brasil e o
livro “Eles nos devem uma vida – Crass: Escritos, diálogos e gritos”, que acaba
de sair do forno.
Foram dez dias, com três conversas com Penny durante o No
Gods No Masters Fest na Semente Negra, em Itanhaém/SP, uma em São Paulo/SP no
SESC Consolação, uma em Divinópolis/MG no Movimento Unificado Negro de
Divinópolis organizado pelo Coletivo Pulso, e uma em Belo Horizonte/MG no Cine
Santa Tereza, organizado pelo Coletivo Metalpunk Overkill junto a uma linda
feira de materiais anarquistas, livros, discos, zines, rango vegano e produtos
artesanais de iniciativas autônomas. Durante as atividades também rolou
exposição fotográfica com imagens atuais da Dial House, colagens de Gee
Vaucher, exibição simultânea de uma vídeo-arte de Penny, e lançamento do livro.
Foram dez dias de muita conversa e convivência, algumas idas a praia, ao mar,
ao rio, ao histórico Centr o de Cultura Social em SP, a uma recente casa
okupada em BH, ao espaço do Coletivo Pulso em Divinópolis, à comunidade
indígena Awa Porungawa Dju – em um bonito encontro com o Pajé Guaíra, que lhe
presenteou com um nome em tupi-guarani. Foram dez dias fazendo pão, cozinhando,
compartilhando risadas, experiências, sabedorias, diferentes realidades, e,
sobretudo, muito amor. Só o que pudemos ver é uma pessoa muito simples, muito
amorosa, com um coração enorme e muita vontade de compartilhar e participar de
tudo, da maneira mais horizontal possível, em todos os momentos – e isso se
mostrou não apenas nas c onversas, mas também no ato de lavar a louça, fazer
comida coletivamente, afiar as facas da casa, trocar conhecimentos, ajudar a
arrumar, organizar, carregar e o que mais fosse preciso, participar na
resolução de problemas, ensinar tai chi chu an, fazer chá… Esse encontro nos
gerou muitas reflexões e inquietações, assim como tantas outras pessoas que
acompanharam as atividades vieram relatar.
Em algumas de suas falas, Penny falou sobre Crass, Dial
House, movimento hippie, punk, anarcopunk, anarquismo de forma mais direta e
baseada em suas memórias e críticas. Em outras, tentou introduzir um pouco de
suas tantas reflexões filosóficas sobre o que seria esse “si mesmx”, presente
na frase “não existe autoridade além de você mesmx”. Falou de amor, paz,
zen-budismo, filosofia, e por vezes tentou desconstruir o mito gerado em cima
do Crass e sua história, tentando trazer outros pontos em questão, pautados em
tudo que se seguiu em sua vida depois da banda. Suas visões e dúvidas sobre
nossa realidade, o racismo no Brasil, questões indígenas e outros pontos surgiram
no decorrer desses dias. Para além das respostas e reações à agenda imposta
pelo sistema e da reafirmação do que é ruim, propôs a importância da criação de
novas formas de vida e de tudo o que buscamos e acreditamos. No sentido inverso
da imposição de dogmas e intransigências em nossos espaços de atuação, propôs o
respeito e o diálogo. Em todos os momentos, paz e amor estiveram presentes nas
falas desse velho hippie-punk-zen-inominável.
Crass e toda a história que envolve esta banda-coletivo
inglesa, que tanto inspirou outras movimentações e iniciativas
anarquistas/punks/libertárias mundo afora, nos inspirou igualmente em muito do
que construímos. Enquanto ecoava na Inglaterra dos anos 70 a falta de
perspectiva e a inexistência de um futuro, aquele pequeno grupo de pessoas
propôs e vislumbrou esse futuro, baseado em um senso genuíno de comunidade,
autonomia e liberdade, que poderia ser criado coletivamente se estivéssemos
preparadxs para construí-lo. Anarquismo, faça-você-m esma, pacifismo, direitos animais
e feminismo foram algumas das ideias que fervilharam nesse contexto, a partir
de uma crítica ácida e visceral contra todo o caráter midiático, vendável e
banal que o punk ia tomando naquele momento.
Mas não há porque “polir a pedra”: assim como qualquer outra
experiência neste sentido, sempre existirão divergências, discordâncias e
outras maneiras de fazer as coisas que nos agradam mais ou se adaptam melhor a
nossa realidade. Como diz a citação acima, “Crass foi um acontecimento.
Aconteceu, e deixou de acontecer”. Pertence a um tempo, a um contexto, a um
local geográfico específico, com suas questões sociais, políticas e econômicas.
Esperar que este acontecimento preenc ha nossas próprias necessidades e atenda
por completo a nossos contextos não faria sentido algum. “Mijar na pedra” por
não ver nela o espelho que gostaríamos, também não faz sentido. O Penny que
aqui esteve, com seus 74 anos, seguiu em frente desd e aqueles dias de Crass,
seguiu adiante com ideais que lhe foram importantes, abandonou outros, e assim
segue em meio a toda a sua meditação e ação cotidiana. Muita história,
vivência, reflexão e inspiração, com muito amor e um pouco de guerra. Muito
ficou aqui, e muito foi para lá – trocando experiências e realidades, na
construção de outras maneiras de viver e conviver com o mundo que nos cerca,
mudando tudo ao redor. Se essas experiências ajudaram nisso, ótimo. Se não
ajudaram, ótimo também.
Não existe autoridade além de nós mesmas, então… tomemos as
rédeas de nossas próprias vidas!
Fonte, mais fotos: http://nogods-nomasters.com/nogodsnomasters/penny-rimbaud/Conteúdos relacionados:
https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2017/03/14/reino-unido-anarquia-e-paz-com-penny-rimbaud-do-crass/
https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2016/12/21/franca-lancamento-ecopunk-os-punks-da-causa-animal-a-ecologia-radical-de-fabien-hein-e-dom-blake/
agência de notícias anarquistas-ana
Água de cristalForma nuvens coloridas
No meu céu de sol.
Claudia Chermikoski
Por No gods No masters & Imprensa Marginal
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