Nesta entrevista dada à Democracy Now, Noam Chomsky reflete
sobre um encontro realizado em Helsínquia entre Putin e Trump, as alterações
climáticas e a nova lei "estado-nação judaico" de Israel
O presidente russo, Vladimir Putin, convidou o presidente
Trump para Moscovo poucos dias depois de a Casa Branca ter adiado uma reunião
planeada entre os dois líderes em Washington antes das eleições a meio do
mandato. O convite para Moscovo foi feito depois da reunião entre Trump e Putin
em Helsínquia, Finlândia, no início deste mês. Para saber mais sobre as
relações entre os EUA e a Rússia, falámos com o renomado dissidente político,
autor e linguista Noam Chomsky. É professor laureado do Departamento de Linguística
da Universidade do Arizona e professor emérito do Massachusetts Institute of
Technology, onde lecionou por mais de 50 anos. Os seus livros mais recentes
incluem “Global Discontents: Conversations on the Rising Threats to Democracy”
e “Requiem for the American Dream: the Ten Principles of Concentration of
Wealth and Power”. Juntou-se a nós de Tucson, Arizona, na semana passada.
Perguntei-lhe sobre a recente cimeira Trump-Putin em Helsínquia e falei-lhe da
cobertura dos media nos EUA:
ANDERSON COOPER: Temos assistido a uma das performances
mais vergonhosas que certamente já vi de um presidente americano numa cimeira
com um líder russo.
GEORGE STEPHANOPOULOS: Todos os que estão a assistir
poderão contar aos amigos, familiares, filhos, que viram um momento histórico.
E pode não ser pelas razões certas.
NORAH O’DONNELL: Este encontro de Helsínquia fica para
os livros de história. A recusa do presidente Trump em desafiar o homem forte
russo foi condenada de forma generalizada pelos membros do seu próprio partido
e da administração. A cimeira que poderia ter sido sobre a condenação dos EUA à
Rússia terminou com o presidente Putin a presentear o presidente Trump com uma
bola de futebol da Copa do Mundo e Trump a entregar a Putin a sua absolvição.
AMY GOODMAN: Estes foram os comentários de Norah O'Donnell,
da CBS, George Stephanopoulos, da ABC News, e Anderson Cooper, da CNN, depois
da conferência de imprensa a 16 de julho com Trump e Putin. Perguntei a Noam
Chomsky a sua opinião sobre a cimeira de Helsínquia.
NOAM CHOMSKY: Trump tem basicamente um princípio: eu
primeiro. Essa é a política dele em quase tudo, e afirmações extravagantes e
assim por diante são perfeitamente explicáveis – no pressuposto de que isso é o
que o impulsiona. Agora, é crucial, para ele, garantir que a investigação de
Mueller seja desacreditada. O que quer que surja, se o implica de alguma forma,
o funcionamento dos media e da cultura política, que será considerada de enorme
importância, muito mais significativa do que as suas políticas do ambiente que
podem destruir a civilização humana. Mas, dadas as circunstâncias altamente
distorcidas, ele precisa de garantir que a investigação de Mueller é
desacreditada. E essa foi a parte central do seu encontro com Trump. Deixando
de lado a maneira como ele se comportava - a bola de futebol, que aparentemente
tinha um dispositivo de escuta embutido e assim por diante - sim, isso foi
estranho e desagradável e assim por diante.
AMY GOODMAN: Bem, na verdade, aquele mundo - aquela bola de
futebol, aquela bola em particular tem aquele pequeno dispositivo, e é assim
que é vendida. Era uma bola de futebol da Copa do Mundo, e é isso que é - essa
é uma das coisas que as pessoas gostam, poder colocar o iPhone ao lado e obter
informações.
NOAM CHOMSKY: Sim, bem, Putin estava a tratar Trump, mais ou
menos, com desprezo, seja o que for que pensemos sobre isso. No entanto, a sua
principal preocupação era bastante óbvia, e essa foi a questão central dos
encontros Putin-Trump. E assim simplesmente não vejo grande significado na sua
atuação de uma maneira tola e infantil numa entrevista. Ok, foi assim. Agora
vamos para as questões importantes que não estão a ser discutidas. A questão de
melhorar as relações com a Rússia é de extrema importância em comparação com as
declarações ao dizer: “Bem, não sei se devo confiar nos meus próprios serviços
de inteligência”. Disse isso por razões óbvias: desacreditar a investigação sobre
Mueller e garantir que a sua base política fervorosamente leal se mantém
solidária. Essa não é uma política atraente, mas podemos entender muito
facilmente o que ele está a fazer.
AMY GOODMAN: Esses serviços de inteligência… - o ex-diretor
da CIA, John Brennan, twittou: “O desempenho de Donald Trump na conferência de
imprensa em Helsínquia ultrapassa e excede o limite de 'altos crimes e
delitos'. Não foi nada menos do que traição. Não só os comentários de Trump
foram imbecis como ele está totalmente no bolso de Putin. Patriotas
Republicanos: Onde estão??? Novamente, o tweet do ex-diretor da CIA John
Brennan. Noam?
NOAM CHOMSKY: Bem, os seus comentários foram certamente
incorretos. O que quer que se pense do comportamento de Trump, não tem nada a
ver com altos crimes e delitos ou traição. Isso não é verdade. Mas, novamente,
o mesmo ponto que tenho tentado dizer ao longo do tempo, estamos concentrados
em questões de menor importância e a deixar de lado problemas de enorme
importância e significado, seja pensar como lidar com a imigração ou se estamos
a lidar com a questão da sobrevivência da vida humana organizada na Terra.
Esses são os tópicos em que deveríamos pensar; não se Trump se comportou mal
numa conferência de imprensa.
AMY GOODMAN: Noam Chomsky, queria perguntar-lhe sobre a
NATO. O Presidente Trump questionou uma disposição fundamental da aliança
militar da NATO: a defesa mútua dos países membros da NATO. Ele fez essa
observação durante uma entrevista com o apresentador da Fox News, Tucker Carlson,
há apenas uma semana:
TUCKER CARLSON: Porque é que o meu filho deve ir para
Montenegro para defendê-lo de ataques? Porquê?
PRESIDENTE DONALD TRUMP: Eu percebo o que você diz. Eu
fiz a mesma pergunta. Sabe, Montenegro é um pequeno país com pessoas muito fortes.
TUCKER CARLSON: Sim, eu não sou contra o Montenegro.
PRESIDENTE DONALD TRUMP: Certo.
TUCKER CARLSON: Ou a Albânia.
PRESIDENTE DONALD TRUMP: Não, a propósito, eles são pessoas
muito fortes. Eles têm pessoas muito agressivas. Podem ficar agressivos e,
parabéns, você está na Terceira Guerra Mundial.
AMY GOODMAN: O Presidente Trump tem questionando toda a
ideia da NATO. Bem, pode abordar especificamente isso? Interessante ele
escolher o Montenegro, onde, bem, muitos meses atrás, quando ele estava com o
G7 e o G8, afastou o primeiro-ministro de Montenegro. O ponto importante é que
gostava de saber se pensa que a NATO deve existir.
NOAM CHOMSKY: Essa é a questão crucial; não se Trump fez um
comentário feio e humilhante sobre um pequeno país. Mas para que serve a NATO?
Desde o início, desde as suas origens, tínhamos metido nas nossas cabeças que o
objetivo da NATO era defender-nos das hordas russas. Podemos deixar de lado, no
momento, a questão de saber se isso era exato. Em todo o caso, esse foi o tema
dominante, na verdade, o tema único. Ok, desde 1991, não há mais hordas russas.
Então, a questão é: Porquê a NATO?
Bem, o que aconteceu foi muito interessante. Houve
negociações entre George Bush, pai, James Baker, secretário de estado, Mikhail
Gorbachev, Genscher e Kohl, alemães, sobre como lidar com a questão - isso foi
depois da queda do Muro de Berlim e do início do colapso da União Soviética.
Gorbachev fez uma concessão surpreendente. Surpreendente. Ele concordou em
permitir que a Alemanha, agora unificada, ingressasse na NATO - uma aliança
militar hostil. Basta olhar para a história dos anos anteriores. Somente a
Alemanha praticamente destruiu a Rússia, a um custo extraordinário, várias
vezes durante o século anterior. Mas ele concordou em permitir que a Alemanha -
uma Alemanha rearmada - se juntasse à NATO, uma aliança militar criada para
combater a Rússia. Houve um quid pro quo, ou seja, que a NATO - que é
basicamente composta pelas forças dos EUA - não se expandisse para Berlim
Oriental, para a Alemanha Oriental. Ninguém falou sobre nada para além disso.
Baker e Bush concordaram verbalmente. Não escreveram, mas essencialmente
disseram: "Sim, nós não vamos" - na verdade, a frase que foi usada
foi "nem um centímetro para o leste". Bem, o que aconteceu? A NATO
imediatamente foi para a Alemanha Oriental. Sob Clinton, outros países, antigos
satélites russos, foram integrados na NATO. Finalmente, a NATO foi tão longe,
como mencionei antes, em 2008 e novamente em 2013, que sugeriu que mesmo a
Ucrânia, bem no centro das preocupações estratégicas russas – para qualquer presidente
russo, não importa quem seja, qualquer líder russo – pudesse aderir à NATO.
Então, o que é que a NATO está a fazer? Bem, na verdade, a
sua missão foi alterada. A missão oficial da NATO foi alterada para controlar e
salvaguardar o sistema energético global, as rotas marítimas, oleodutos e assim
por diante. E, claro, ao mesmo tempo, age como uma força de intervenção dos
Estados Unidos. Essa é uma razão legítima para mantermos a NATO, para ser um
instrumento para o domínio global dos EUA? Eu acho que é uma questão bastante
séria. Essa não é a pergunta que é feita. A pergunta que se faz é se Trump fez
algum comentário depreciativo sobre Montenegro. É outro exemplo do que eu disse
antes: o foco dos media e da classe política, e da comunidade intelectual em
geral, na marginália, negligencia questões cruciais, questões que,
literalmente, têm a ver com a sobrevivência humana.
A sobrevivência da vida humana organizada está em risco
devido às alterações climáticas e às armas nucleares
Pelo menos oito pessoas morreram na Califórnia devido a
incêndios florestais provocados por mudanças climáticas em todo o estado. No
total, os bombeiros lutam contra 17 incêndios florestais em toda a Califórnia,
atingindo mais de 200 mil hectares e forçando evacuações em massa, inclusive no
Parque Nacional de Yosemite. Os incêndios ocorrem no meio de uma onda de
fenómenos climáticos extremos em todo o mundo, inclusive na Índia, onde mais de
500 pessoas morreram em consequência de enchentes e fortes chuvas nas últimas
semanas. Os cientistas associaram o aumento das inundações e as chuvas às
mudanças climáticas.
NOAM CHOMSKY: Não podemos enfatizar o facto de que estamos
num momento único da história da humanidade. Na verdade, estamos desde 1945. Em
1945, a história humana mudou drasticamente. Em agosto de 1945, a humanidade
demonstrou que a sua inteligência tinha criado um meio de destruir a vida na
Terra. Ainda não o tinha em absoluto, mas era óbvio que iria se estender e
expandir, como de facto aconteceu.
Alguns anos depois, em 1947, o Bulletin of Atomic
Scientists estabeleceu o seu famoso Relógio do Juízo Final. Quão longe
estamos da meia-noite para o desastre final? Foi definido para os sete minutos
para a meia-noite. Uma vez chegou aos dois minutos para a meia-noite de 1953,
quando os EUA e depois a União Soviética detonaram armas termonucleares, que
têm a capacidade de essencialmente de destruir a vida. Desde então oscila de
várias formas. Já voltámos aos dois minutos para a meia-noite - com um
acréscimo:
Não se sabia em 1945 que estávamos a entrar, não apenas na
era nuclear, mas numa nova época geológica, a que os geólogos chamam
Antropoceno; uma época na qual a atividade humana está a ter efeitos severos e
deletérios no ambiente, em que a vida humana e outras não pode sobreviver.
Também entrámos no que hoje se chama sexta extinção, uma rápida extinção de
espécies, que é comparável à quinta extinção, 65 milhões de anos atrás, quando
um asteroide, enorme asteroide, atingiu a Terra.
A World Geological Society foi finalmente fundada
no fim da Segunda Guerra Mundial com o início do Antropoceno e a forte escalada
e destruição acentuadas do meio ambiente; não apenas o aquecimento global, o
dióxido de carbono, outros efeitos dos gases de estufa, mas também questões com
o plástico nos oceanos que se prevê tenha maior peso no mar do que o peso dos
peixes, num futuro não muito longínquo.
Portanto, estamos a destruir o ambiente para a vida humana
organizada. Estamos a contribuir para um desastre terminal com confrontos
nucleares regulares. Qualquer pessoa que tenha olhado para os registos, que são
chocantes, teria de concluir que é um milagre termos sobrevivido tanto tempo.
Seres humanos, neste momento, esta geração, pela primeira vez na história, tem
que perguntar: “A vida humana sobreviverá?”. E não num futuro distante - as
sociedades organizadas? - essas são as questões com as quais nos devemos
preocupar. Tudo o mais é insignificante em comparação com isto.
E voltemos outra vez para NATO; o que está a fazer?
Expandiu-se para a fronteira russa. Se der uma olhadela nas políticas do Trump
de um ponto de vista geoestratégico, elas são totalmente incoerentes. Quer
dizer, por um lado, ele está a ser simpático com Vladimir Putin, por outro,
aumenta as ameaças contra a Rússia e, consequentemente, para nós mesmos. Armas
para a Ucrânia, grave ameaça para a Rússia. Ao aumentar as forças na fronteira russa,
fazem com que os russos façam o mesmo. Manobras militares, o novo programa
nuclear que instituiu, que é uma grave ameaça para Rússia e, de facto, para o
mundo.
Já sob Obama, os programas de modernização tinham atingido
um nível em que representavam uma ameaça literal de primeiro ataque à Rússia.
Trabalhos importantes sobre isso têm aparecido nas revistas científicas, Bulletin
of Atomic Scientists. Trump está a intensificá-lo, ao modernizar ainda mais
forças extremamente perigosas, diminuindo também significativamente o limiar
para a guerra nuclear; também novas armas, que são armas nucleares supostamente
táticas, que, como qualquer estrategista nuclear pode dizer, são apenas
incentivos para a escalada para um desastre final. Essas são enormes ameaças
contra a Rússia, para nós também, agora combinadas com sermos educados com
Putin numa conferência de imprensa. Geoestrategicamente não faz sentido.
AMY GOODMAN: Trump foi atrás dos aliados da NATO, desde a
Grã-Bretanha até à Alemanha e, antes disso, Macron na França, bem como Trudeau
no Canadá. Mas também, enquanto questiona a NATO, diz que o está a fazer porque
quer simplesmente que gastem mais e, na verdade, nomeou os fabricantes de armas
nos Estados Unidos para gastarem mais, chegando a dizer que deveriam usar 4%
dos seus orçamentos em armas. Pode comentar?
NOAM CHOMSKY: Por outras palavras: na minha opinião é que
nada disso faz sentido; se estivermos à procura de uma estratégia séria por
trás, estamos à procura no lugar errado. Não é isso que está por trás disto.
Nada disso faz sentido do ponto de vista estratégico. Nenhum. É tudo
contraditório, incoerente e assim por diante. Isso deve dizer-nos algo: vamos
procurar noutro lado. E tudo faz sentido no pressuposto de que ele é
impulsionado por uma preocupação esmagadora: ele mesmo. Tudo isso tem sentido
para um megalomaníaco que quer se certificar de que tem poder, tem riqueza, tem
de apelar para um número de círculos eleitorais para se certificar de que é
apoiado.
Estabelecer um eleitorado extremamente robusto: expandir a
NATO, construir o sistema militar, modernizar as armas nucleares e assim por
diante. OK, ele tem-nos no bolso. O eleitorado crucial e atual é o setor
corporativo e os super-ricos. E ele está apenas a dar-lhes presentes. Enquanto
ele está a atacar os media- os media estão a ajudá-lo, concentrando-se nele -
os seus apaniguados no Congresso estão a realizar um simples roubo. Quero
dizer, é inacreditável, se der uma olhadela ponto por ponto. Já mencionei
alguns exemplos antes.
Então ele tem de manter uma base de votação; caso contrário
está fora. E ele faz isso fingindo: "Eu vou confrontar a NATO, fazê-los
pagar mais, então eles não vão continuar a roubar-nos." Ótimo. "Eu
vou enfrentar a China: parem de roubar a nossa propriedade intelectual.” Ótimo.
"Vou pôr tarifas em todo mundo. Estou a defender-vos, aos vossos direitos
de trabalhadores.” Ponto por ponto, tudo se encaixa. E eu acho que é
basicamente o que está a acontecer. Essa busca por alguma geoestratégica
coerente por trás disso é quase impossível. Existem algumas coisas, claro. O
esforço para construir uma aliança dos estados mais reacionários do Médio
Oriente contra o Irão - Arábia Saudita, Israel, Emirados Árabes Unidos, Egito,
sob a ditadura - é uma estratégia louca, mas coerente.
Devo dizer que um corolário da doutrina do "eu
primeiro", que tem sido observado repetidas vezes, é que se Obama fez
algo, “eu tenho de fazer o oposto”, não importa o que seja. Não importa quais
são as consequências. “Caso contrário, não sou um presidente transformador, um
presidente significativo”.
Noam Chomsky condena a mudança de Israel para a extrema
direita e a nova lei “estado-nação judaico”
Israel aprovou uma lei amplamente condenada que define
Israel como o estado-nação do povo judeu e dá aos judeus o direito exclusivo à
autodeterminação. Também declara o hebraico como a única língua oficial do país
e encoraja a construção de colónias judaicas no território ocupado como um
“valor nacional”. A lei foi condenada internacionalmente e houve acusações de
que Israel legalizou o apartheid.
AMY GOODMAN: Vou agora perguntar-lhe sobre a passagem da
nova lei em Israel que o define como o estado-nação do povo judeu e lhe dá o
direito exclusivo de autodeterminação. A lei também declara o hebraico como a
única língua oficial do país e encoraja a construção de colónias judaicas no
território ocupado como um “valor nacional:
PRIMEIRO MINISTRO BENJAMIN NETANYAHU: Este é um momento
decisivo nos anais do sionismo e na história do estado de Israel. Vamos
continuar a garantir os direitos civis na democracia de Israel. Esses direitos
não serão prejudicados. Mas a maioria também tem direitos, e a maioria decide.
A maioria absoluta quer garantir o caráter judaico do nosso estado para as
próximas gerações.
AMY GOODMAN: Pode falar sobre essa nova lei, Noam Chomsky?
NOAM CHOMSKY: Sim. Em primeiro lugar, uma ligeira correção:
as colónias totalmente judaicas autorizadas estão em Israel. Não é sequer uma
questão relativa aos territórios ocupados. São todas assim. Estão dentro de
Israel.
Então, sim, a nova lei muda a situação existente, mas não
tanto quanto está a ser reivindicado. O que a nova lei determina já está
praticamente em vigor há muito tempo. A lei volta às leis do território de 1960
que o Tribunal Superior israelita estabeleceu e definiu: "Israel é o
estado soberano do povo judeu" - todo o povo judeu, mas não os seus
cidadãos, apenas os judeus. Isso foi há 60 anos. As leis do território foram
estabelecidas de tal maneira que, como foi reconhecido na época internamente em
Israel, não fora, as terras do estado estariam efetivamente sob a administração
do Fundo Nacional Judaico. Uma série de práticas legais e administrativas foram
criadas para dar essa garantia. Se está interessada em detalhes, escrevi sobre
isso detalhadamente há 30 anos num livro chamado Towards a New Cold War.
Mas, basicamente, uma complexa matriz foi criada para garantir que o Fundo
Nacional Judaico estaria no controle das terras do Estado. Isso equivale a mais
de 90% do território do país.
Qual é a missão do Fundo Nacional Judaico? Bem, tem um
contrato com o estado de Israel que determina que a sua missão é trabalhar para
o benefício - estou a citar - de pessoas “de raça, religião ou origem judaica”.
OK, o que é que se espera disto? O que se espera é que 92% a 93% das terras do
país sejam efetivamente reservadas para pessoas de raça, religião e origem
judaicas. E foi isso que aconteceu.
Isto finalmente chegou aos tribunais, ao tribunal Supremo de
Israel, no ano de 2000. Uma associação de liberdades civis em Israel trouxe um
caso. Os queixosos eram um casal árabe, um casal árabe profissional, que queria
comprar uma casa numa colónia judaica, a colónia de Katzir, que era, como na
maior parte do país, só para judeus. O tribunal finalmente decidiu a seu favor,
numa decisão muito restrita.
Quase imediatamente, começaram os esforços a tentar
descobrir uma maneira de contornar a situação, de várias maneiras. E a nova lei
simplesmente é isso que faz, diretamente. Autoriza todas as colónias judaicas
em Israel, o que significa cerca de 90% do país. Se olharmos para o
desenvolvimento das colónias ao longo dos anos - isso é discutido num artigo
importante do escritor israelita Yitzhak Laor numa edição recente do Haaretz -
eu escrevi sobre isso num post aqui em Truthout - ele aponta que 700
colónia todo-judaicas foram criadas, sem nenhuma participação árabe. Os
palestinianos árabes estão confinados a cerca de 2% do território, muitos deles
expulsos de lá.
Portanto, é formalizado o que foi praticado de maneiras complexas.
O árabe deixa de poder de ser uma língua oficial. São aprimoradas práticas
passadas introduzindo-as na que é hoje chamada Lei Básica, que é efetivamente a
constituição. Sim, essas são mudanças, mas menos dramáticas do que a forma como
são retratadas, não porque sejam formas adequadas, mas porque sempre foi assim
de uma forma ou de outra.
Aliás, isso não deve ser muito estranho para os americanos.
Olhemos para a habitação – assunto que foi recentemente discutido por [Richard]
Rothstein, num livro interessante. Se você olhar para os programas
habitacionais do New Deal, eles foram legal e explicitamente direcionados para
garantir projetos somente brancos, cidades somente brancas. É por isso que as
cidades que surgiram nos anos 1950, como Levittown, eram 100% brancas. Vários
requisitos legais foram introduzidos para que isso fosse garantido. Este é o
New Deal. E não estamos a falar sobre o Sul Profundo, embora, é claro, eles o
tenham influenciado.
Isso não mudou até o final dos anos 60. E nessa altura, já
era tarde demais para beneficiar os afro-americanos. A razão foi por causa de
mudanças económicas gerais nos anos 50 e 60 que foi um período de grande
crescimento nos Estados Unidos, proporcionando pela primeira vez, em centenas
de anos de história, 400 anos de história, que os afro-americanos tivessem
algum tipo de hipóteses de entrar na sociedade convencional. Mas eles foram
impedidos da habitação, por meios legais. No momento em que esses meios legais
foram desmantelados, estávamos a entrar no início do período neoliberal de
estagnação e declínio, por isso não lhes fez nenhum bem. Esse é outro capítulo
da feia história do racismo americano.
Então, não deveríamos ficar muito surpreendidos com o que
está a acontecer em Israel, que é muito feio e faz parte da mudança do país
para a direita, e que foi previsto em 1967, previsto logo de caras: a ocupação
seria levar o país para a direita. Quando se tem a bota no pescoço de alguém,
não é bom para a sua psique. E acho que estamos a ver isso acontecer.
Israel está bem ciente disso, aliás. Analistas políticos
israelitas têm apontado há alguns anos que Israel devia preparar-se para um
período em que vai perder o apoio de setores do mundo que têm alguma
preocupação com os direitos humanos e o direito internacional, e deveria estar
a voltar-se para alianças com os países que simplesmente não se importam com
isso. Digamos que a Índia, sob o recente governo ultranacionalista de Modi,
compartilha com Israel o movimento em direção ao ultranacionalismo, à
repressão, ao ódio ao Islão; a China não presta atenção a essas coisas;
Singapura; Arábia Saudita; Emirados Árabes Unidos.
E podemos ver isso acontecer nos Estados Unidos também. Não
há muito tempo, Israel era o queridinho absoluto da América liberal. Isso
mudou. Agora, até entre os democratas autoidentificados há mais apoio aos
palestinianos do que a Israel. O apoio a Israel nos Estados Unidos mudou para a
direita ultranacionalista e para os evangélicos, que, pelas razões erradas,
apoiam as ações israelitas, com alguma paixão, de facto, enquanto ao mesmo
tempo muitos deles apegam-se a doutrinas em que afirmam que a segunda vinda de
Cristo, que é iminente, levará a uma série de eventos que terminarão com os
judeus a ser enviados para a perdição eterna. Isso ao mesmo tempo que apoiam as
ações israelitas. E é por isso que a base do apoio israelita nos Estados Unidos
mudou para a ala direita do Partido Republicano. E isso está a acontecer no
mundo inteiro.
No meio da repressão mortal de Israel aos protestos em Gaza,
Chomsky diz que os EUA devem acabar com o apoio aos "assassinos".
Em Gaza, milhares de pessoas reuniram-se no sábado para o
funeral de Majdi al-Satari, de 11 anos, que morreu depois de baleado na cabeça
por um atirador israelita na sexta-feira em protestos perto do muro de
separação com Israel. Moumin al-Hams, de 17 anos, e Ghazi Abu Mustafa, de 43
anos, também foram baleados e mortos por atiradores israelitas nos protestos.
No total, soldadas israelitas mataram pelo menos 150 palestinianos desde o
início dos protestos não violentos da Grande Marcha do Retorno, a 30 de março.
AMY GOODMAN: Vamos falar da situação em Gaza. O ministro da
Segurança Interna de Israel, Gilad Erdan, disse na quinta-feira que Israel
poderia lançar outra operação militar em larga escala contra a Faixa de Gaza.
Isto ocorre após a violenta repressão de Israel aos protestos pacíficos em Gaza
de março a maio, quando as forças israelitas mataram mais de 136 palestinianos
e feriram mais de 14.000. Falei com o médico palestino-canadense Tarek Loubani,
que foi baleado pelas forças israelitas em ambas as pernas enquanto ajudava a
tratar os palestinianos feridos pelas forças israelitas durante a Grande Marcha
de Retorno não violenta. Era 14 de maio, uma segunda-feira. Perguntei ao Dr.
Loubani - logo depois de ter sido baleado se sentiu que foi um alvo.
DR. TAREK LOUBANI: Eu não sei a resposta. Não sei quais
ordens que eles receberam ou o que estava nas suas cabeças, por isso não posso
dizer se fomos deliberadamente atingidos. O que eu posso dizer é o que sei. Nas
seis semanas da marcha não houve vítimas de paramédicos. E num dia, 19
paramédicos - 18 feridos mais um morto - e eu estávamos todos feridos; foram
todos alvejados com munição real. Éramos todos - Musa estava realmente num
resgate na altura, mas toda a gente com quem conversei era como eu. Estávamos
fora durante uma trégua, sem fumo, sem nenhum caos, e fomos alvejados e
atingidos por munições reais, a maioria de nós nos membros inferiores. Assim, é
muito, muito difícil acreditar que os israelitas que atiraram sobre mim e sobre
os outros colegas - apenas da nossa equipe médica, quatro de nós foram
baleados, incluindo Musa Abuhassanin, que faleceu - não sabiam quem nós éramos,
que não sabiam o que estávamos ali a fazer e que eles estavam direcionados
para qualquer outra coisa.
AMY GOODMAN: Então, mais tarde, no mesmo dia, 14 de maio, o
homem de quem o Dr. Loubani falava, o paramédico Musa Abuhassanin, foi baleado
e morto pelas forças israelitas. Foi baleado no peito. O Dr. Loubani twittou
uma foto legendada: “Uma foto assombrosa, sexta-feira, 11 de maio. À esquerda:
Mohammed Migdad, baleado no tornozelo direito. Hassan Abusaada. Tarek Loubani,
baleado na perna esquerda e joelho direito. Moumin Silmi. Youssef Almamlouk.
Musa Abuhassanin, baleado no tórax e morto. Voluntário desconhecido. Fotógrafo:
baleado e ferido.” E mostrou esta fotografia, que achava que seria para um
álbum de recortes, e percebeu que estes eram alguns dos últimos dias de suas
vidas. O que está acontecendo em Gaza agora, na sua perspetiva, Noam?
NOAM CHOMSKY: Podemos acrescentar a essa lista a jovem palestiniana,
uma médica, que foi assassinada por um franco-atirador, longe da chamada
fronteira, quando cuidava de um paciente ferido. Sim, é horrivelmente feio.
Mas há um pano de fundo, como sempre. O pano de fundo
crucial é que os israelitas - esse domínio israelita em Gaza, que reduziu a
vida à mera sobrevivência, chegou a um ponto em que as Nações Unidas, outros
analistas preveem que até ao ano 2020, Gaza será literalmente inabitável. São 2
milhões de pessoas, metade delas crianças, enjauladas numa prisão,
cuidadosamente controladas, com restrições selvagens à alimentação e a qualquer
coisa que lhes chegue, ao ponto de os pescadores serem mantidos perto da costa
para não poderem pescar, os esgotos foram destruídos, as centrais elétricas
foram atacadas.
O programa oficial - oficial - era manter Gaza no que era
chamada uma dieta, o suficiente para simplesmente sobreviver. Não parece bem se
todos morrerem de fome. Observe que este é um território ocupado, o que é
reconhecido até pelos Estados Unidos, por todos menos Israel. Então, aqui está
uma população mantida numa prisão, num território ocupado, alimentada com uma
dieta para mantê-los numa mera sobrevivência , constantemente usada como um
saco de pancada para o que se chama a si próprio o exército mais moral do
mundo, agora a chegar a um ponto onde dentro de alguns anos será inabitável e
além disso com atos sádicos, como atiradores altamente treinados a matar uma
jovem médica palestiniana quando ela está a cuidar de um paciente, e o que o
médico acabou de descrever.
E o que fazemos com isto? Nós realmente reagimos. Os Estados
Unidos reagiram. E reagiram cortando drasticamente o financiamento para a única
organização, a UNRWA, organização da ONU, que mantém a população dificilmente
viva. Essa é a nossa resposta, juntamente com, é claro, o apoio esmagador a
Israel, fornecendo as armas, o apoio diplomático e assim por diante. Um dos
mais extraordinários escândalos, se é a palavra certa, no mundo moderno.
Podemos fazer alguma coisa? Claro, claro que podemos. Gaza
deveria ser um próspero paraíso mediterrânico. Tem uma localização maravilhosa,
tem recursos agrícolas, pode ter praias maravilhosas, pesca, recursos marinhos,
até tem gás natural no mar, que não é permitido usar. Então, há muito que pode
ser feito. Mas nós - os EUA preferimos, repetidamente em todas as
administrações, - mas muito pior agora - como sempre, apoiar os assassinos.
AMY GOODMAN: Noam, Israel ameaça outro ataque a Gaza, como o
que chamaram de Operação de Proteção em 2014, quando mataram mais de 2.000
pessoas, em que cerca de um quarto desse número eram crianças.
NOAM CHOMSKY: Sim, estão a ameaçar. Se der uma olhadela aos
registos, não há tempo para falar sobre isso agora, há um livro maravilhoso que
acaba de ser publicado. O livro de Norman Finkelstein, Gaza, sobre o
martírio de Gaza, é um estudo definitivo sobre isso. Mas o que aconteceu desde
2005 é bem evidente. Quer dizer, a história anterior é suficientemente feia.
Mas em 2005, Ariel Sharon e outros falcões israelitas
reconheceram que não fazia sentido manter alguns milhares de colonos judeus a
colonizar ilegalmente Gaza, usando a maior parte dos seus recursos e dedicando
uma grande parte do exército israelita a protegê-los. Isso era totalmente sem
sentido. Então, decidiram transferi-los das sua colónias ilegais e subsidiadas
em Gaza para colónias ilegais e subsidiadas em áreas que Israel queria manter,
na Cisjordânia, nas colinas de Golã.
Foi enquadrado como um evento traumático, mas isso foi uma
jogada para a opinião mundial. Foi basicamente uma piada. Eles poderiam ter
feito isso facilmente. E eles sairiam, e a isso chamaram retirada. Mas eles
permaneceram sob a total ocupação israelita, apenas que o exército não estava
dentro de Gaza. Estava a controlar do lado de fora. Houve um acordo alcançado
em novembro de 2005 entre os palestinianos e Israel com um cessar fogo, sem
violência, abrindo o porto de Gaza, reconstruindo o aeroporto que Israel
destruiu, abrindo a fronteira para que houvesse fluxo livre com Israel e Egito
e assim por diante. Esse acordo durou duas semanas, em novembro.
Em janeiro, os palestinianos cometeram um grande crime:
fizeram umas eleições livres, reconhecidas como livres e justas, apenas uma no
mundo árabe. Mas o resultado saiu da maneira errada. As pessoas erradas ganharam:
o Hamas. Israel, imediatamente, aumentou a violência, aumentou o cerco,
aumentou a repressão contra Gaza, impôs a dieta. Os EUA reagiram com o
procedimento operacional padrão: começaram a organizar um golpe militar. O
Hamas antecipou o golpe militar, que foi um crime ainda maior. A violência, a
violência dos EUA e Israel, aumentou. A selvageria do cerco aumentou e assim
por diante.
Então a coisa continua assim. Repetidamente, há um episódio
a que Israel chama cortar a relva. Esmagá-los. Eles estão indefesos, claro.
Então, há um acordo alcançado, que o Hamas aceita e cumpre. Israel viola-o
constantemente. Finalmente, uma escalada israelita da violação leva a uma
resposta do Hamas que Israel usa como pretexto para o próximo episódio de
cortar a relva. Eu analisei isso. Norman Finkelstein analisou isso no seu
livro. Outros também já o fizeram. Essa é a história desde 2005.
Então, sim, pode haver outro (ataque). Mas agora estamos a
chegar a um ponto quase terminal. Repito, espera-se que a Faixa de Gaza,
devastada de forma tão violenta ao longo dos anos, se torne literalmente
inabitável. Agora, existem maneiras de lidar com isso. Não é preciso um
cientista brilhante para descobrir isso. É bem óbvio.
AMY GOODMAN: E, Noam, a solução que você diz é muito evidente
e simples?
NOAM CHOMSKY: Muito evidente. Cumprir os termos do acordo de
novembro de 2005. Permitir que Gaza se reconstrua. Abrir os pontos de acesso
para Israel e Egito. Reconstruir o porto marítimo que foi destruído.
Reconstruir o aeroporto que Israel destruiu. Permitir a reconstrução das
centrais elétricas. Deixá-los tornar-se um território florescente no
Mediterrâneo. E, claro, permitir: lembre-se de que os famosos Acordos de Oslo
exigiam, explicitamente, que a Faixa de Gaza e a Cisjordânia fossem um
território unificado e que a sua integridade territorial fosse mantida. Israel
e os Estados Unidos reagiram imediatamente separando-os. ok? Isso também não é
uma lei da natureza. Direitos nacionais palestinianos podem ser alcançados, se
os EUA e Israel estiverem dispostos a aceitar isso.
Originalmente publicado em democracynow.org.
Artigo traduzido por Paula Cabeçadas para Esquerda.Net
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