Sampa, força da grana e barbárie
Em defesa do proprietário de imóvel abandonado, “Justiça”
desaloja famílias no antigo Hotel Cineasta, em 2011. Só no centro de SP, já há
mais vinte “reintegrações de posse” autorizadas
Judiciário e polícia postam-se para garantir o direito à
especulação, quando perturbado por seres humanos buscando (que ousadia!) o
direito de morar em alguma parte
A esquina da Ipiranga com a avenida São João, imortalizada
em versos, testemunhou fatos bem pouco poéticos há menos de duas semanas.
Bebês sufocados com bombas de gás, pessoas desmaiando e
outras sendo forçadas por policiais a deitar no chão molhado. Cadeirantes sem
suas cadeiras de roda. Filhos perdidos das mães. Cenário de horror.
Ali, no cruzamento mais famoso de São Paulo, ficava até
poucos dias a ocupação de duzentas famílias de sem-teto, no prédio do antigo
hotel Aquarius, fechado e abandonado há mais de dez anos.
Não só este. Estima-se em 400 mil o número de imóveis desocupados
na cidade de São Paulo. No Brasil, segundo o IBGE, são 6.052.000 imóveis nestas
condições. Praticamente a mesma proporção do número de famílias sem moradia.
Estão ali servindo à especulação imobiliária, esperando por alguma operação
urbana ou PPP (Parceria Público-Privada) que lhes agregue valor com
investimento público.
O Judiciário e a polícia postam-se para garantir o direito à
especulação, caso este seja perturbado por grupos de sem-teto buscando – que
ousadia! – o direito de morar em alguma parte. Só no centro de São Paulo há
mais de vinte ocupações com ordem de despejo. A prefeitura também conseguiu, na
semana passada, ordem judicial para despejar a ocupação Chico Mendes, na região
do Morumbi. Preparemos os olhos e o estômago para as cenas dos próximos
capítulos.
Tratar problemas sociais como casos de polícia é sinal
inequívoco da barbárie. Assim foi no Carandiru, em Eldorado dos Carajás ou no
Pinheirinho. É a aposta na violência de Estado para sufocar as contradições da
sociedade.
Foi assim na esquina famosa, no dia 16. E foi assim também,
dois dias depois, em uma esquina nem tão famosa do bairro da Lapa. O PM
Henrique Dias de Araújo atirou à queima-roupa em um camelô que tentava defender
seu colega, agredido por outros dois policiais.
Carlos Augusto Braga, o camelô assassinado, já havia
terminado o expediente e estava indo buscar o filho na escola. Segundo a
família, planejava voltar ao Piauí, onde havia sido aprovado num concurso
público. Não verá mais nem o filho, nem o Piauí.
O PM que o matou já respondia por outro assassinato, em
março deste ano, quando atirou num morador de rua, supostamente em legítima
defesa. Legítima defesa foi também a alegação do comando para o novo
assassinato, até ter sido desmentido por um vídeo que flagrou o crime.
É impressionante como a reação de indignação a esses vídeos
tem prazo tão curto de validade. E como o Judiciário contribui para a
banalização da barbárie. Alguns dias depois do assassinato, o soldado já foi
solto e pouco se falou do assunto.
O rito é padrão mesmo quando as provas estão aos olhos de,
todos. Lembram-se vocês daquele pedreiro que foi assassinado por quatro PMs em
frente de casa no Jardim Rosana, zona sul de São Paulo, em 2012? O vídeo saiu
no “Jornal Nacional”, da TV Globo.
Algumas semanas depois, o bar de onde saiu a gravação foi
palco de uma chacina, também cometida por policiais, onde sete pessoas
morreram.
Sabem o que aconteceu? Os policiais da chacina, depois de
reconhecidos e presos, já estão soltos. E os quatro que exterminaram o pedreiro
foram absolvidos pelo Judiciário no mês passado.
Mas e as imagens? Ora, pedreiro, camelô, sem-teto, quem se
importa?
O governador Geraldo Alckmin (PSDB) segue o mantra malufista
de que polícia violenta dá voto. E por isso não perde uma oportunidade de por o
Choque em ação, a Rota na rua. Pode funcionar no curto prazo, numa sociedade
dominada pelo medo e pela violência.
Mas frequentemente quem aposta na barbárie vê, cedo ou
tarde, o feitiço voltar-se contra o feiticeiro. Junho de 2013 deu sinais disso,
mas a memória é curta.
O prefeito Fernando Haddad (PT), que poderia ter se
contraposto, preferiu atribuir a violência do despejo da avenida São João a
“oportunistas” e tratar o assassinato do camelô como “fato isolado”. Com medo
das acusações levianas do Ministério Público de que favorece ocupações e em
nome da Operação Delegada, que herdou de Kassab, perdeu uma excelente
oportunidade de, no mínimo, ficar calado.
Assim terminou uma semana de barbárie. Com as autoridades
políticas e o Judiciário convidando a todos que façam mais vezes. Afinal, com
camelô e sem-teto pode.
Na Sampa real e sem poesia, a feia fumaça que sobe apagando
as estrelas tem cheiro de pólvora e gás lacrimogêneo.
Fonte: http://outraspalavras.net
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