domingo, 28 de setembro de 2014

Sampa, força da grana e barbárie – por Guilherme Boulos


Sampa, força da grana e barbárie
Em defesa do proprietário de imóvel abandonado, “Justiça” desaloja famílias no antigo Hotel Cineasta, em 2011. Só no centro de SP, já há mais vinte “reintegrações de posse” autorizadas

Judiciário e polícia postam-se para garantir o direito à especulação, quando perturbado por seres humanos buscando (que ousadia!) o direito de morar em alguma parte

A esquina da Ipiranga com a avenida São João, imortalizada em versos, testemunhou fatos bem pouco poéticos há menos de duas semanas.

Bebês sufocados com bombas de gás, pessoas desmaiando e outras sendo forçadas por policiais a deitar no chão molhado. Cadeirantes sem suas cadeiras de roda. Filhos perdidos das mães. Cenário de horror.
Ali, no cruzamento mais famoso de São Paulo, ficava até poucos dias a ocupação de duzentas famílias de sem-teto, no prédio do antigo hotel Aquarius, fechado e abandonado há mais de dez anos.

Não só este. Estima-se em 400 mil o número de imóveis desocupados na cidade de São Paulo. No Brasil, segundo o IBGE, são 6.052.000 imóveis nestas condições. Praticamente a mesma proporção do número de famílias sem moradia. Estão ali servindo à especulação imobiliária, esperando por alguma operação urbana ou PPP (Parceria Público-Privada) que lhes agregue valor com investimento público.

O Judiciário e a polícia postam-se para garantir o direito à especulação, caso este seja perturbado por grupos de sem-teto buscando – que ousadia! – o direito de morar em alguma parte. Só no centro de São Paulo há mais de vinte ocupações com ordem de despejo. A prefeitura também conseguiu, na semana passada, ordem judicial para despejar a ocupação Chico Mendes, na região do Morumbi. Preparemos os olhos e o estômago para as cenas dos próximos capítulos.

Tratar problemas sociais como casos de polícia é sinal inequívoco da barbárie. Assim foi no Carandiru, em Eldorado dos Carajás ou no Pinheirinho. É a aposta na violência de Estado para sufocar as contradições da sociedade.

Foi assim na esquina famosa, no dia 16. E foi assim também, dois dias depois, em uma esquina nem tão famosa do bairro da Lapa. O PM Henrique Dias de Araújo atirou à queima-roupa em um camelô que tentava defender seu colega, agredido por outros dois policiais.

Carlos Augusto Braga, o camelô assassinado, já havia terminado o expediente e estava indo buscar o filho na escola. Segundo a família, planejava voltar ao Piauí, onde havia sido aprovado num concurso público. Não verá mais nem o filho, nem o Piauí.

O PM que o matou já respondia por outro assassinato, em março deste ano, quando atirou num morador de rua, supostamente em legítima defesa. Legítima defesa foi também a alegação do comando para o novo assassinato, até ter sido desmentido por um vídeo que flagrou o crime.

É impressionante como a reação de indignação a esses vídeos tem prazo tão curto de validade. E como o Judiciário contribui para a banalização da barbárie. Alguns dias depois do assassinato, o soldado já foi solto e pouco se falou do assunto.

O rito é padrão mesmo quando as provas estão aos olhos de, todos. Lembram-se vocês daquele pedreiro que foi assassinado por quatro PMs em frente de casa no Jardim Rosana, zona sul de São Paulo, em 2012? O vídeo saiu no “Jornal Nacional”, da TV Globo.

Algumas semanas depois, o bar de onde saiu a gravação foi palco de uma chacina, também cometida por policiais, onde sete pessoas morreram.

Sabem o que aconteceu? Os policiais da chacina, depois de reconhecidos e presos, já estão soltos. E os quatro que exterminaram o pedreiro foram absolvidos pelo Judiciário no mês passado.

Mas e as imagens? Ora, pedreiro, camelô, sem-teto, quem se importa?

O governador Geraldo Alckmin (PSDB) segue o mantra malufista de que polícia violenta dá voto. E por isso não perde uma oportunidade de por o Choque em ação, a Rota na rua. Pode funcionar no curto prazo, numa sociedade dominada pelo medo e pela violência.

Mas frequentemente quem aposta na barbárie vê, cedo ou tarde, o feitiço voltar-se contra o feiticeiro. Junho de 2013 deu sinais disso, mas a memória é curta.

O prefeito Fernando Haddad (PT), que poderia ter se contraposto, preferiu atribuir a violência do despejo da avenida São João a “oportunistas” e tratar o assassinato do camelô como “fato isolado”. Com medo das acusações levianas do Ministério Público de que favorece ocupações e em nome da Operação Delegada, que herdou de Kassab, perdeu uma excelente oportunidade de, no mínimo, ficar calado.

Assim terminou uma semana de barbárie. Com as autoridades políticas e o Judiciário convidando a todos que façam mais vezes. Afinal, com camelô e sem-teto pode.

Na Sampa real e sem poesia, a feia fumaça que sobe apagando as estrelas tem cheiro de pólvora e gás lacrimogêneo.

Fonte: http://outraspalavras.net

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