Capitalismo e crise: o que o racismo tem a ver
com isso?
A história do racismo moderno se entrelaça com a história
das crises estruturais do capitalismo.
Há dois fatores sistematicamente negligenciados pelas
analistas da atual crise econômica. O primeiro é o caráter estrutural e
sistêmico da crise. Em geral, são destacados como motivos determinantes da
crise os erros e ou excessos cometidos pelos agentes de mercado ou pelos
governantes da vez. O caminho intelectual dessa explicação é o individualismo,
o que reduz a crise a um problema moral e/ou jurídico. Desse modo, a avaliação
da crise e suas graves conseqüências sociais – fome, desemprego, violência,
encarceramento, mortes – convertem-se em libelos pela reforma dos sistemas
jurídicos, pela imposição de mecanismos contra a corrupção ou ainda, por
campanhas pela conscientização acerca dos males provocados pela “ganância” ou
pela sede de lucro. Enfim, tanto causas como efeitos recaem apenas sobre os
sujeitos e nunca são questionadas as estruturas sociais que permitem a
repetição dos comportamentos e das relações que desencadeiam as crises.
O segundo fator esquecido pelos estudiosos da crise – intimamente
ligado ao primeiro – é a especificidade que a crise assume no tocante aos
grupos sociais que a sociologia denomina de minorias. Minorias caracterizam-se
pelos processos de discriminação direta ou indireta a que são submetidas
pessoas socialmente identificadas como pertencentes a determinados grupos
sociais (negros, judeus, mulheres, pessoas LGBT etc.). A discriminação
sistemática, processual e histórica cria uma estratificação social que se
reverte em inúmeras desvantagens políticas e econômicas aos grupos
minoritários, vivenciadas na forma de pobreza, salários mais baixos, menor
acesso aos sistemas de saúde e educação, maiores chances de encarceramento e
morte.
São duas as conclusões até este momento: 1) a identificação
de um grupo social minoritário deve levar em conta as peculiaridades de cada
formação social, vez que a dinâmica do processo discriminatório vincula-se à
lógica da econômica e da política; 2) a discriminação só se torna sistêmica se
forem reproduzidas as condições sócio-políticas que naturalizem a desigualdade
de tratamento oferecido a indivíduos pertencentes a grupos minoritários. Por
isso, em face da estrutura política e econômica da sociedade contemporânea,
formas de discriminação como o racismo só se estabelecem se houver a
participação do Estado, que pode atuar diretamente na classificação de pessoas
e nos processos discriminatórios (escravidão, apartheid e nazismo) ou
indiretamente, quando há omissão diante da discriminação, permitindo-se que
preconceitos historicamente arraigados contra negros, mulheres e gays se
transformem em critérios “ocultos” ou regras “não inscritas” que operam no
funcionamento das instituições, na distribuição econômica (emprego e renda, por
exemplo) e na ocupação de espaços de poder e decisão.
Crise como crise do capitalismo
Em primeiro lugar, o que chamamos de capitalismo é uma
relação social, em que detentores de dinheiro e dos meios de produção
(máquinas, terra, escritórios, ferramentas, computadores etc.) e trabalhadores
assalariados relacionam-se com o fim de produzir mercadorias. O objetivo
fundamental da produção de mercadorias é gerar mais dinheiro do que o investido
na produção, e não satisfazer necessidades humanas. Portanto, além de cobrir os
custos da produção, a venda de mercadorias deve gerar um excedente que será
revertido para a aquisição de mais capital, ou seja, na ampliação dos fatores
de produção. O capitalismo se define como um processo socialmente orientado
para o acúmulo de capital. Mas ainda que a base da relação mantenha-se a mesma,
a produção capitalista será organizada das mais diferentes maneiras, e isso irá
variar de acordo com o local, com o desenvolvimento tecnológico, com as
condições dos trabalhadores, com as condições políticas etc. Em suma: as formas
de acumulação podem variar a fim de garantir a expansão do capital, o aumento
da produtividade e a obtenção do lucro.
Uma sociedade de troca mercantil não é um dado natural, mas
uma construção histórica. O mercado ou sociedade civil não seria possível sem
instituições, direito e política. Como nos adverte Robert Boyer “as
instituições básicas de uma economia mercantil pressupõem atores e estratégias
para além dos atores e estratégias meramente econômicos”1. Para demonstrar como
o mercado é de fato uma construção social, Boyer conta-nos como a intervenção
estatal direta ou indireta foi imprescindível para: 1) tornar possível a
concorrência, estipulando regras e limites à atuação das empresas. A
concorrência que muitos consideram como da “natureza” do capitalismo só é
possível pela mediação entre as esferas pública e privada; 2) liberar as forças
de concorrência do trabalho, o que historicamente implicou na regulação das
relações salariais, ora pelo direito privado (privilegiando regras pactuadas
pela negociação entre capital e trabalho), ora ao denominado direito social
(com imposição de certos limites ao contrato). Nesse sentido, a intervenção
estatal “é mais evidente ainda quando referente à cobertura social: as lutas
dos assalariados pelo reconhecimento dos acidentes de trabalho, dos direitos à
aposentadoria e à saúde resultaram em casos de avanço em matéria de direitos
sociais – avanços que dizem respeito tanto à natureza da cidadania quanto ao
modo de regulação”2. A relação salarial, independentemente de quais mecanismos
jurídico-políticos atuam na fixação de seus parâmetros, é decorrente de uma
mediação estatal.
É nesse sentido que além das condições objetivas – e aqui
referimo-nos às possibilidades materiais para o desenvolvimento das relações
sociais capitalistas – o capitalismo necessita de condições subjetivas. Com
efeito, os indivíduos precisam ser formados, subjetivamente constituídos, para
reproduzir em seus atos concretos as relações sociais, cuja forma básica é a
troca mercantil. Nisso, resulta o fato de que um indivíduo precisa tornar-se um
trabalhador ou um capitalista, ou seja, precisa “naturalizar” a separação entre
“Estado” e “sociedade civil”, sua condição social e seu pertencimento a
determinada classe ou grupo. Esse processo, muitas vezes, passa pela
incorporação de preconceitos e discriminação que serão “atualizadas” para
funcionar como modos de subjetivação no interior do capitalismo. Este processo
não é “espontâneo”; os sistemas de educação e meios de comunicação de massa são
aparelhos funcionam justamente produzindo subjetividades culturalmente
adaptadas em seu interior. Não é por outro motivo que parte da sociedade
entende como um mero aspecto “cultural” o fato de negros e mulheres receberem
os piores salários e trabalharem mais horas mesmo que isso contrarie
disposições legais3.
Estado e crise
Mas o que é o Estado? Como define Joachim Hirsch4, o Estado
é a “condensação material de uma relação social de força”. Está longe de ser,
portanto, o resultado de um contrato social, a corporificação da vontade
popular democrática, o ápice da racionalidade ou o instrumento de opressão da
classe dominante. Essas definições que passeiam entre o idealismo e a
simplificação abstrata, não revelam a materialidade do Estado, enquanto um
complexo de relações sociais indissociável do movimento da economia.
“Ele é bem mais uma relação social entre indivíduos, grupos
e classes, a ‘condensação material de uma relação social de força’. Material,
porque essa relação assume uma forma marcada por mecanismos burocráticos e
políticos próprios no sistema das instituições, organizações e aparelhos
políticos. A aparelhagem do Estado tem uma consistência e uma estabilidade e
por isso é mais do que a expressão direta de uma relação social de força.
Mudanças nas relações de força sempre produzem efeitos no interior do Estado,
mas ao mesmo tempo a estrutura existente do aparelho estatal reage sobre eles.
O Estado expressa em sua concreta estrutura organizativa relações sociais de
força, mas também simultaneamente as forma e as estabiliza” 5.
O Estado é a forma política do capitalismo, e não um mero
instrumento dos capitalistas. Pode-se dizer que o Estado é de classe, mas não
de uma classe, salvo em condições excepcionais e de profunda anormalidade. Em
uma sociedade dividida em classes e grupos sociais, o Estado aparece como a
unidade possível, em uma vinculação que se vale de mecanismos repressivos e
material-ideológicos6. A manutenção desse modo de vida conflituoso depende da
internalização, pelos indivíduos, das condições de funcionamento da sociedade
capitalista como parte da “cultura”. A ideologia – e quando esta não for
suficiente, a violência física – fornece o remendo para uma sociedade
estruturalmente marcada por contradições, conflitos e antagonismos
insuperáveis. Esses fatores explicam a importância da construção de um discurso
ideológico calcado na meritocracia, no sucesso individual e no racismo a fim de
“naturalizar” a desigualdade.
Ressalte-se que alterações das relações de força e dos
conflitos sociais pressupõem a capacidade do Estado de manter “as estruturas
socioeconômicas fundamentais” e a adaptação do Estado às transformações sociais
sem comprometer sua unidade relativa e sua capacidade de garantir a estabilidade
política e econômica7.
O conflito social entre capital e trabalho assalariado não é
único conflito existente na sociedade capitalista. Há outros conflitos que se
articulam com as relações de dominação e exploração, que não se originam nas
relações de classe e tampouco “desapareceriam com ela”8: são conflitos raciais,
sexuais, religiosos, culturais e regionais que remontam a períodos anteriores
ao capitalismo, mas que nele tomam uma forma especificamente capitalista.
Portanto, entender a dinâmica dos conflitos raciais e sexuais é absolutamente
essencial à compreensão do capitalismo, visto que a dominação de classe se
realiza nas mais variadas formas de opressão racial e sexual. A relação entre
Estado e sociedade não se resume à troca e produção de mercadorias; as relações
de opressão e de exploração sexuais e raciais são importantes na definição do
modo de intervenção do Estado e na organização dos aspectos gerais da sociedade9.
“O racismo, tal como a moderna construção das relações de
gênero, é um meio da divisão social e da desorganização das classes dominadas,
seja no interior como no exterior das fronteiras estatais. Através desses
mecanismos de opressão e de dominação funda-se o povo enquanto nação. Como as
fronteiras estatais são sempre permeáveis e a unidade ‘étnica’ deve permanecer
basicamente indefinida e instável, o racismo adquire sua contínua eficácia e
dinâmica”10.
Há, portanto, um nexo estrutural entre as relações de classe
e a constituição social de grupos raciais e sexuais que não pode ser ignorado11.
Como afirmei no artigo “Estado, direito e análise materialista do racismo”, “as
classes quando materialmente consideradas também são compostas de mulheres,
pessoas negras, indígenas, gays, imigrantes, pessoas com deficiência, que não
podem ser definidas tão somente pelo fato de não serem proprietários dos meios
de produção. “Para entender as classes em seu sentido material, portanto, é
preciso, antes de tudo, dirigir o olhar para a situação real das minorias”12.
O que é a crise afinal?
A crise é um elemento estrutural, inscrito na lógica da
sociabilidade capitalista13. Deste modo, em sendo a crise parte do capitalismo,
defini-la é, de certo modo, determinar o funcionamento não apenas da economia,
mas das instituições políticas que devem manter a estabilidade14. O processo de
produção capitalista depende de uma expansão permanente da produção e de uma
acumulação incessante de capital. Entretanto, a acumulação incessante de
capital e a necessidade de aumento da produção encontram limites históricos que
se chocam com as características conflituosas da sociedade. A crise se dá
justamente quando o processo econômico capitalista não encontra compatibilidade
com as instituições e as normas que deveriam manter a instabilidade. As crises
revelam-se, portanto, como a incapacidade do sistema capitalista em
determinados momentos da história de promover a integração social por meio das
regras sociais vigentes. Em outras palavras, o modo de regulação, constituído
por normas jurídicas, valores, mecanismos de conciliação e integração
institucionais entra em conflito com o regime de acumulação. A consequência
disso é que a ligação entre Estado e sociedade civil, mantida, como foi visto,
mediante a utilização de mecanismos repressivos e de inculcação ideológica,
começa ruir. O sistema de regulação entra em colapso, o que resulta em
conflitos entre instituições estatais, independência de órgãos governamentais
que passam a se voltar uns contra os outros e funcionar para além de qualquer
previsibilidade, falta de direção governamental e instabilidade política15. Não
se torna mais possível convencer as pessoas de que viver debaixo de certas
regras é normal e, a violência estatal passa a ser recorrente como meio de
controle social.
O racismo e as crises
A crise de 1873, o imperialismo e o neocolonialismo
A história do racismo moderno se entrelaça com a história
das crises estruturais do capitalismo. A necessidade de alteração dos
parâmetros de intervenção estatal a fim de retomar a estabilidade econômica e
política – e aqui entenda-se estabilidade como o funcionamento regular do
processo de valorização capitalista – sempre resultou em formas renovadas de
violência e estratégias de subjugação da população negra.
A primeira grande crise do capital, de 1873, resultou na
alteração brutal das relações capitalistas. Além de alterar toda a produção
industrial do mundo, redefinir o equilíbrio político e militar e alterar todo o
sistema financeiro e monetário internacional, a crise de 1873 foi o ponto de
partida para o imperialismo e, mais tarde, para a primeira grande guerra16.
O imperialismo marcou o início da dominação colonial e da
transferência das disputas capitalistas do plano interno para o plano
internacional. Isso porque a crise de superacumulação de capital obrigou o
capitalismo a expandir-se além das fronteiras nacionais. Essa é a explicação
econômica do imperialismo, mas que também teve como base um argumento
ideológico preponderante: o racismo.
A ideologia imperialista baseou-se no racismo e na ideia
eurocêntrica do progresso. Os povos da África, por exemplo, precisavam ser
“salvos” pelo conquistador europeu de seu atraso natural. Essa ideologia
racista, somada ao discurso pseudocientífico do “darwinismo social” – que
afirmava a superioridade “natural” do homem branco –, foram o elemento
legitimador da pilhagem, assassinatos e destruição promovida pelos europeus no
continente africano17.
“A fúria da conquista colonial, que teve em considerações
racistas de ‘superioridade civilizacional’ seu principal alicerce ideológico
(até setores da Internacional Socialista, confinada basicamente à Europa,
admitiam a expansão colonial em nome da ‘obra civilizadora’ e seus países, e se
definiam, como o alemão Eduard David, ‘socialimperialistas’) produziu vítimas
em número maior aos holocaustos europeus do século XX, e fez também nascerem
movimentos de resistência, que, finalmente, incorporaram os povos coloniais à
luta política mundial contemporânea.”18
Achille Mbembe, em Crítica da razão negra, apresenta os
laços inextricáveis entre “morte” e “negócio” na esteira da relação entre
imperialismo, colonialismo e racismo:
“Esta brutal investida fora da Europa ficará conhecida pelo
termo “colonização” ou “imperialismo”. Sendo uma das maneiras de a pretensão
européia ao domínio universal se manifestar, a colonização é uma forma de poder
constituinte, na qual a relação com a terra, as populações e o território
associa, de modo inédito na história da Humanidade, as três lógicas da raça, da
burocracia e do negócio (commercium). Na ordem colonial, a raça opera enquanto
princípio do corpo político. A raça permite classificar os seres humanos em
categorias físicas e mentais específicas. A burocracia emerge como um
dispositivo de dominação; já a rede que liga a morte e o negócio opera como
matriz fulcral do poder. A força passa a ser lei, e alei tem por conteúdo a
própria força.19
A bolsa de valores, o empreendimento colonial e o
desenvolvimento do capital financeiro são, ao fim e ao cabo, os fundamentos
econômicos que permitiram a constituição do racismo e do nacionalismo como a
manifestação da ideologia do capitalismo após a grande crise do século XIX.
A crise de 1929, o Welfare State e a nova forma do racismo
Após a grande de depressão de 1929 e a segunda grande
guerra, o arranjo social estabilizador resultou no regime fordista de
acumulação e no Welfare State. A produção industrial em larga escala e o
consumo de massa foram articulados com a ampliação de direitos sociais e
políticas de integração de grupos sociais ao mercado consumidor. Entretanto,
mesmo o Estado Social keynesiano ou Welfare State foi incapaz de lidar com os
problemas sociais que estruturam o capitalismo. A desigualdade é um dado
permanente do capitalismo, que pode ser, a depender de circunstâncias
históricas e arranjos politicos específicos, no máximo, maior ou menor.
Mas como lembra David Harvey, mesmo na “Era de ouro do
capitalismo”, o acesso aos direitos sociais pelos trabalhadores não foi
simétrico e variava de acordo com a capacidade produtiva do país, o setor da
economia e o grupo social a que pertencia o trabalhador. Setores de alto risco
da economia e países de fraca demanda interna e com baixa capacidade de
inovação tecnológica possuíam fracas redes de proteção social, com baixa
permeabilidade às reivindicações da classe trabalhadora. Havia setores
fordistas que se serviam de bases não fordistas de contratação, o que significa
que alguns trabalhadores eram submetidos à superexploração ou mesmo ao trabalho
compulsório, ainda que sob a égide de um Estado social e democrático20.
Outra importante distinção feita por Harvey para se
compreender as limitações do Welfare State é entre os setores “monopolista” e
“competitivo” da indústria. O setor monopolista caracteriza-se por alta
demanda, em que os conflitos encontravam lugar para converter-se em “direitos”.
Já o “setor competitivo” é de alto risco, baixos salários e subcontratação e é
nele que mulheres, negros e imigrantes estão alocados, longe da proteção de
sindicatos fortes e da incidência de direitos sociais. Assim que racismo e
sexismo colocam determinadas pessoas em seu “devido lugar”, ou seja, nos
setores menos protegidos e mais precarizados da economia.
A enorme contradição de uma sociedade em que se pregava a
universalidade de direitos e que, ao mesmo tempo, negros, mulheres e imigrantes
eram tratados como caso de polícia, gerou movimentos de contestação social que
colocavam em xeque a coerência ideológica e a estabilidade política do arranjo
socioeconômico do pós-guerra. Ressalte-se que até mesmo o movimento sindical e
as organizações de esquerda mostraram profundas limitações – assim como ocorre
ainda hoje -, para a realização de uma crítica e até uma autocrítica que
expusesse o racismo e o machismo que impregnavam suas próprias estruturas. A
única forma de lidar com a denúncia dos movimentos sociais às contradições do Welfare
State foi a criminalização e a perseguição aos “radicais”, “criminosos” e
“comunistas” que ameaçavam as bases de uma sociedade livre21.
Neoliberalismo e racismo
A crise do Estado de Bem Estar social e do modelo fordista
de produção dá ao racismo uma nova forma. O fim do consumo de massa como padrão
produtivo predominante, o enfraquecimento dos sindicatos, a produção baseada em
alta tecnologia e a supressão dos direitos sociais em nome da austeridade
fiscal tornaram populações inteiras submetidas às mais precárias condições ou
simplesmente abandonadas à própria sorte, anunciando o que muito consideram o
esgotamento do modelo expansivo do capital.
Chama-se por austeridade fiscal o corte das fontes de
financiamento dos “direitos sociais” a fim de transferir parte do orçamento
público para o setor financeiro privado por meio dos juros da dívida pública.
Em nome de uma pretensa “responsabilidade fiscal” segue-se a onda de
privatizações, precarização do trabalho e desregulamentação de setores da
economia. Do ponto de vista ideológico, a produção de um discurso justificador
da destruição de um sistema histórico de proteção social revela a associação
entre parte dos proprietários dos meios de comunicação de massa e o capital
financeiro: o discurso do empreendedorismo, da meritocracia, do fim do emprego
e da liberdade econômica como liberdade política são diuturnamente martelados
nos telejornais e até nos programas de entretenimento. Ao mesmo tempo,
naturalizase a figura do inimigo, do “bandido” que ameaça a integração social,
distraindo a sociedade que, amedrontada pelos programas policiais e pelo
noticiário, aceita a intervenção repressiva do Estado em nome da segurança, mas
que, na verdade, servirá para conter o inconformismo social diante do
esgarçamento provocado pela da gestão neoliberal do capitalismo. Mais do que
isso, o regime de acumulação que alguns denominam de pós-fordista dependerá
cada vez mais da supressão da democracia22. A captura do orçamento pelo capital
financeiro envolve a formulação de um discurso que transforma decisões políticas,
em especial as que envolvem finanças públicas e macroeconomia, em decisões
“técnicas”, de “especialistas”, infensas à participação popular.
O esfacelamento da sociabilidade regida pelo trabalho
abstrato e pela “valorização do valor” resulta em terríveis tragédias sociais,
haja vista que o movimento da economia e da política não é mais de integração
ao mercado (há que se lembrar que na lógica liberal o “mercado” é a sociedade
civil). Como não serão integrados ao mercado, seja como consumidores ou como trabalhadores,
jovens negros, pobres, moradores de periferia e minorias sexuais serão
vitimados por fome, epidemias ou pela eliminação física promovida direta ou
indiretamente (e.g. corte nos direitos sociais) pelo Estado. Enfim, no contexto
da crise, o racismo é um elemento de racionalidade, de “normalidade” e que se
apresenta como modo de integração possível de uma sociedade em que os conflitos
tornam-se cada vez mais agudos.
A superação do racismo passa pela reflexão sobre formas de
sociabilidade que não se alimentem de uma lógica de conflitos, contradições e
antagonismos sociais que não podem ser resolvidos, no máximo mantidos sob
controle. Todavia, a busca por uma nova economia e por formas alternativas de
organização é tarefa impossível sem que o racismo e outras formas de
discriminação sejam compreendidas como parte essencial dos processos de
exploração e de opressão de uma sociedade que se quer transformar.
* * *
Silvio Luiz de Almeida é natural de São Paulo, capital.
Jurista e filósofo, doutor em filosofia e teoria geral do direito pela
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Largo São Francisco).
NOTAS
1 BOYER, Robert. Teoria da regulação: os fundamentos. São
Paulo: Estação Liberdade, 2009, p. 48.
2 BOYER, Robert. Teoria da regulação: os fundamentos. São Paulo: Estação
Liberdade, 2009, p. 51. No mesmo sentido ver BRUNHOFF, Simone de. Estado e
capital: uma análise da política econômica. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1985, p. 17.
3 É interessante notar que os discursos racistas assumem diferentes modulações
a depender do contexto social, cultural e econômico. Como nota Van Dijk, uma
das características centrais do racismo contemporâneo é a sua negação,
“ilustrada de modo típico nas conhecidas ressalvas do tipo ‘não tenho nada
contra negros, mas…”. VAN DIJK, Teun A. Discurso e poder. São Paulo: Contexto,
2015, p. 155.
4 HIRSCH, Joachim. Teoria materialista do Estado. Rio de Janeiro: Revan, 2010,
p. 37
5 Idem, Ibidem, p. 37-38
6 Idem, Ibidem, p. 37
7 Idem, Ibidem, p. 39-40
8 Idem, Ibidem, p. 40.
9 Idem, Ibidem, p. 40
10 Idem, Ibidem, p. 86
11 “colocar a forma de socialização capitalista como ponto de partida de uma
análise do Estado não quer dizer que tais antagonismos não sejam essenciais, ou
que apresentem “contradições secundárias” subordinadas. Ao contrário, a relação
com a natureza, de gênero, a opressão sexual e a racista estão inseparavelmente
unidas com a relação de capital, e não poderiam existir sem ela. No entanto, o
decisivo é que o modo de socialização capitalista, enquanto relação de
reprodução material, é determinante na medida em que impregna as estruturas e
as instituições sociais – as formas sociais determinadas por ele – nas quais
todos essas antagonismos sociais ganham expressão e ligam-se uns aos outros.
HIRSCH, Joachim. Teoria materialista do Estado. Rio de Janeiro: Revan, 2010, p.
134
12 ALMEIDA, Silvio Luiz de. “Estado, direito e análise materialista do
racismo”. In: Celso Naoto Kashiura Junior; Oswaldo Akamine Junior, Tarso de
Melo. (Org.). Para a crítica do direito: reflexões sobre teorias e práticas
jurídicas. São Paulo: Outras Expressões; Dobra universitário, 2015, p. 747-767.
13 A sociedade capitalista é, em razão de seus antagonismos e conflitos
estruturais, fundamentalmente portadora de crise, e por isso, só pode ser
estável em suas respectivas estruturais sociais, políticas e institucionais por
períodos limitados. Seu desenvolvimento não transcorre nem linear, nem
continuamente; as fases de relativa estabilidade são sempre interrompidas por
grandes crises. …” Idem, Ibidem, p. 131.
14 HIRSCH, Joachim. Teoria materialista do Estado. Rio de
Janeiro: Revan, 2010, p. 134.
15 Idem, Ibidem, p. 134.
16 COGGIOLA, Osvaldo. As grandes depressões (1873-1896 e 1929-1939):
fundamentos econômicos, consequencias geopolíticas e lições para o presente.
São Paulo: Alameda, 2009, p. 104.
17 A população da ‘Africa negra’ era, no século XIX, de três a quatro vezes
menor do que no século XVI. A conquista colonial capitalista (com uso de
artilharia contra, no máximo, fuzis coloniais), o trabalho forçado multiforme e
generalizado, a repressão das numerosas revoltas por meio do ferro e do fogo, a
subalimentação, as diversas doenças locais, as doenças importadas e a
continuação do tráfico negreiro oriental, reduziram ainda mais a população que
baixou para quase um terço. Idem, Ibidem, p. 118.
18 Idem, Ibidem, p. 120.
19 MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Lisboa: Antígona, 2014, p. 105.
20 HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 2011, p. 132.
21 MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial: o homem
unidimensional. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
22 DARDOT, Pierre; LAVAL, Cristian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal.
São Paulo: Boitempo, 2016.
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In: Celso Naoto Kashiura Junior; Oswaldo Akamine Junior, Tarso de Melo. (Org.).
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Rio de Janeiro: Zahar, 1982
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MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Lisboa: Antígona, 2014.
TIZESCU, Alessandra Devulsky da Silva. Aglietta e a teoria da regulação: direito
e capitalismo. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo: tese de
doutorado, 2014. VAN DIJK, Teun A. Discurso e poder. São Paulo: Contexto, 2015
Fonte: https://blogdaboitempo.com.br/2020/06/23/capitalismo-e-crise-o-que-o-racismo-tem-a-ver-com-isso/
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