Naomi Klein: recuperando os bens comuns
O que é o "movimento antiglobalização"? (1) Coloco
a frase entre aspas porque tenho, imediatamente, duas dúvidas sobre isso. É
realmente um movimento? Se é um movimento, é antiglobalização? Deixe-me começar
com a primeira questão. Podemos facilmente nos convencer de que é um movimento,
ao trazê-lo à existência por falar dele em um fórum como esse - passo muito
tempo neles - agindo como se pudéssemos vê-lo, segurá-lo em nossas mãos. É
claro que já vimos isso - e sabemos que o movimento voltou ao Quebec e à
fronteira EUA-México durante a Cúpula das Américas e a discussão para uma Área
de Livre Comércio hemisférica. Mas então saímos de salas como essa, vamos para
casa, assistimos TV, fazemos algumas compras e qualquer sensação de que o
movimento existe desaparece e sentimos que talvez estamos ficando loucos.
Seattle… foi um movimento ou uma alucinação coletiva? Para a maioria de nós
aqui, Seattle significava uma espécie de festa de lançamento de um movimento de
resistência global, ou a 'globalização da esperança', como alguém descreveu
durante o Fórum Social Mundial em Porto Alegre. Mas para todos os outros,
Seattle ainda significa café espumoso ilimitado, culinária de fusão asiática,
bilionários de comércio eletrônico e filmes bobos de Meg Ryan. Ou talvez sejam
ambos, e uma Seattle criou a outra Seattle - e agora elas coexistem
desajeitadamente.
Esse movimento que às vezes invocamos tem muitos nomes:
anticorporativo, anticapitalista, antilivre-comércio, anti-imperialista. Muitos
dizem que começou em Seattle. Outros afirmam que isso começou quinhentos anos
atrás - quando os colonizadores disseram pela primeira vez aos povos indígenas
que teriam que fazer as coisas de maneira diferente se quisessem se
"desenvolver" ou se qualificar para o "comércio". Outros
ainda dizem que começou em 1 de janeiro de 1994, quando os zapatistas lançaram
seu levante com as palavras Ya Basta! na noite em que o NAFTA se tornou lei no
México. Tudo depende de a quem você pergunta. Mas acho que é mais preciso
imaginar um movimento de muitos movimentos - coalizões de coalizões. Hoje,
milhares de grupos estão trabalhando contra forças cujo fio comum é o que pode
ser descrito amplamente como a privatização de todos os aspectos da vida e a
transformação de todas as atividades e valores em mercadorias. Costumamos falar
da privatização da educação, da saúde e dos recursos naturais. Mas o processo é
muito mais vasto. Inclui a maneira como ideias poderosas são transformadas em
slogans publicitários e ruas públicas são transformadas em shopping centers;
novas gerações sendo alvo de propaganda desde o nascimento; escolas sendo
invadidas por anúncios; necessidades humanas básicas, como a água, sendo vendidas
como mercadoria; direitos trabalhistas básicos sendo revertidos; genes
patenteados e o surgimento de bebês projetados geneticamente: sementes são
geneticamente alteradas e compradas; políticos são comprados e modificados.
Ao mesmo tempo, existem linhas de oposição, que se formam em
muitas campanhas e movimentos diferentes. O espírito que eles compartilham é
uma recuperação radical dos bens comuns. À medida que nossos espaços comuns -
praças, ruas, escolas, fazendas, fábricas - são substituídos pelo mercado em
expansão, um espírito de resistência está se firmando em todo o mundo. As
pessoas estão reivindicando pedaços da natureza e da cultura e dizendo 'isso
vai ser um espaço público'. Estudantes norte-americanos estão expulsando
anúncios das salas de aula. Ambientalistas e ravers europeus estão dando festas
em cruzamentos movimentados. Camponeses tailandeses sem terra estão plantando
vegetais orgânicos em campos de golfe super irrigados. Trabalhadores bolivianos
estão revertendo a privatização de seu abastecimento de água. Serviços como o
Napster estão criando uma espécie de bem comum na internet, onde as crianças
podem trocar músicas umas com as outras, em vez de comprá-las de gravadoras
multinacionais. Outdoors foram liberados e redes independentes de mídia foram
criadas. Os protestos estão se multiplicando. Em Porto Alegre, durante o Fórum
Social Mundial, José Bové, muitas vezes caricaturado como o martelo do
McDonald's, viajou com ativistas locais do Movimento Sem Terra para um lugar de
teste da Monsanto, nas proximidades, onde destruíram três hectares de soja
geneticamente modificada. Mas o protesto não parou por aí. O MST ocupou a terra
e agora os membros estão plantando suas próprias colheitas orgânicas,
prometendo transformar a fazenda em um modelo de agricultura sustentável. Em
resumo, os ativistas não estão esperando a revolução, estão agindo agora, onde
vivem, onde estudam, onde trabalham, onde cultivam.
Mas algumas propostas formais também estão surgindo, cujo
objetivo é transformar essas reivindicações radicais dos bens comuns em lei.
Quando o NAFTA e acordos similares foram elaborados, houve muita conversa sobre
a adição de "acordos paralelos" à agenda de livre comércio, que
deveria abranger o meio ambiente, o trabalho e os direitos humanos. Agora, o
contra-ataque trata de eliminá-los. José Bové - juntamente com a Via Campesina,
uma associação global de pequenos agricultores - lançou uma campanha para
remover a segurança alimentar e produtos agrícolas de todos os acordos
comerciais, sob o lema 'O mundo não está à venda'. Eles querem desenhar uma
linha em torno dos bens comuns. Maude Barlow, diretora do Conselho dos
Canadenses, que tem mais membros do que a maioria dos partidos políticos no
Canadá, argumentou que a água não é um bem privado e não deveria estar em
nenhum acordo comercial. Há muito apoio para essa ideia, especialmente na
Europa, desde os recentes sustos com alimentos. Normalmente, essas campanhas
antiprivatização são iniciadas isoladamente. Mas elas também convergem
periodicamente - foi o que aconteceu em Seattle, Praga, Washington, Davos,
Porto Alegre e Quebec.
Além das fronteiras
O que isso significa é que o discurso mudou. Durante as
batalhas contra o NAFTA, surgiram os primeiros sinais de uma coalizão entre
trabalho organizado, ambientalistas, agricultores e grupos de consumidores nos
países em questão. No Canadá, muitos de nós sentimos que estávamos lutando para
manter algo distinto da "americanização" da nossa nação. Nos Estados
Unidos, a conversa foi muito protecionista: os trabalhadores estavam
preocupados com o fato de os mexicanos "roubarem" “nossos” empregos e
reduzirem “nossos” padrões ambientais. Durante todo o tempo, as vozes dos
mexicanos que se opunham ao acordo estavam praticamente fora do radar público -
mas essas eram as vozes mais fortes de todas. Mas apenas alguns anos depois, o
debate sobre o comércio foi transformado. A luta contra a globalização se
transformou em uma luta contra a ‘corporatização’ e, para alguns, contra o
próprio capitalismo. Também se tornou uma luta pela democracia. Maude Barlow
liderou a campanha contra o NAFTA no Canadá há doze anos. Desde que o NAFTA se
tornou lei, ela trabalha com organizadores e ativistas de outros países e
anarquistas desconfiados do Estado em seu próprio país. Ela já foi vista como o
rosto de um nacionalismo canadense. Hoje ela se afastou desse discurso.
"Eu mudei", ela diz, "eu costumava achar que essa luta era para
salvar a nação. Agora eu vejo que é para salvar a democracia”. Essa é uma causa
que transcende a nacionalidade e as fronteiras do Estado. A verdadeira notícia
de Seattle é que os organizadores de todo o mundo estão começando a ver suas
lutas locais e nacionais - por escolas públicas mais bem financiadas, contra a
destruição dos sindicatos e a precarização do trabalho, por fazendas familiares
e contra a crescente lacuna entre ricos e pobres - através de uma lente global.
Essa é a mudança mais significativa que vimos em anos.
Como isso aconteceu? Quem ou o que convocou esse novo movimento
internacional de pessoas? Quem enviou os memorandos? Quem construiu essas
coalizões complexas? É tentador fingir que alguém planejou um plano mestre de
mobilização em Seattle. Mas acho que foi muito mais uma questão de coincidência
em larga escala. Muitos grupos menores se organizaram para chegar lá e, para
surpresa deles, descobriram quão ampla e diversa era a coalizão da qual eles
haviam se tornado parte. Ainda assim, se há uma força que podemos agradecer por
criar essa frente, são as empresas multinacionais. Como observou um dos
organizadores do Reclaim the Streets, devemos agradecer aos CEOs por nos
ajudarem a ver os problemas mais rapidamente. Graças à pura ambição
imperialista do projeto corporativo neste momento da história - a busca
ilimitada pelo lucro, liberada pela desregulamentação comercial, e a onda de
fusões e aquisições, liberada pelas enfraquecidas leis antitruste - as
multinacionais ficaram ricas de forma tão ofuscante, sua propriedades são tão
vastas, seu alcance é tão global, que criaram nossas coalizões para nós.
Em todo o mundo, os ativistas estão carregando em seus
ombros as infraestruturas pré-montadas fornecidas pelas empresas globais. Isso
pode significar sindicalização transfronteiriça, mas também organização
intersetorial - entre trabalhadores, ambientalistas, consumidores e até
prisioneiros, que podem todos ter relações diferentes com uma multinacional.
Assim, você pode criar uma única campanha ou coalizão em torno de uma única
marca como a General Electric. Graças à Monsanto, os agricultores da Índia
estão trabalhando com ambientalistas e consumidores de todo o mundo para
desenvolver estratégias de ação direta que eliminam alimentos geneticamente
modificados nos campos e nos supermercados. Graças a Shell Oil e Chevron, ativistas
de direitos humanos na Nigéria, democratas na Europa, ambientalistas na América
do Norte se uniram em uma luta contra a insustentabilidade da indústria
petrolífera. Graças à decisão da gigante do setor de refeições,
Sodexho-Marriott, de investir na Corrections Corporation of America, [uma
empresa privada de administração de presídios], os estudantes universitários
podem protestar contra a crescente indústria prisional norte-americana com fins
lucrativos simplesmente boicotando a comida do restaurante do campus. Outros
alvos incluem empresas farmacêuticas que estão tentando inibir a produção e
distribuição de medicamentos de baixo custo para a Aids e cadeias de fast-food.
Recentemente, estudantes e trabalhadores rurais da Flórida uniram forças em torno
da Taco Bell. Na área de São Petersburgo [Flórida], trabalhadores rurais -
muitos deles imigrantes do México - recebem em média US$ 7.500 por ano para
colher tomates e cebolas. Devido a uma brecha na lei, eles não têm poder de
barganha: os chefes das fazendas se recusam a conversar com eles sobre
salários. Quando começaram a investigar quem comprava o que eles colhiam,
descobriram que a Taco Bell era o maior compradora dos tomates locais. Então
eles lançaram a campanha Yo No Quiero Taco Bell, juntamente com os alunos, para
boicotar a Taco Bell nos campi das universidades.
É a Nike, é claro, que mais ajudou no desenvolvimento dessa
nova marca de sinergia ativista. Os estudantes, que enfrentam o controle
corporativo de seus campi pelo logotipo da Nike, se associaram aos
trabalhadores que confeccionam suas roupas de marca, bem como aos pais
preocupados com comercialização da juventude e grupos de igrejas que fazem
campanha contra o trabalho infantil - todos unidos por seus diferentes
relacionamentos com um inimigo global comum. Expor o ponto fraco das marcas de
consumo de alto brilho municiou as narrativas iniciais desse movimento, uma
espécie de chamada e resposta às narrativas muito diferentes que essas empresas
contam todos os dias sobre si mesmas, por meio de publicidade e relações
públicas. O Citigroup oferece outro alvo principal, como a maior instituição
financeira da América do Norte, com inúmeras holdings, que lidam com alguns dos
piores malfeitores corporativos do mundo. A campanha contra ele reúne com
facilidade dezenas de questões - desde extração de madeira na Califórnia até
esquemas de oleoduto e petróleo no Chade e Camarões. Esses projetos são apenas
o começo. Mas eles estão criando um novo tipo de ativista: 'Nike é uma droga de
entrada' [que leva ao consumo de outras drogas mais pesadas], nas palavras da
estudante ativista do Oregon Sarah Jacobson.
Ao se concentrarem nas empresas, os organizadores podem
demonstrar com clareza quantas questões de justiça social, ecológica e
econômica estão interconectadas. Nenhum ativista que conheci acredita que a
economia mundial pode ser mudada gradualmente, uma corporação de cada vez, mas
as campanhas abriram uma porta para o mundo secreto do comércio e finanças
internacionais. Onde elas estão levando é para as instituições centrais que
escrevem as regras do comércio global: a OMC, o FMI, a ALCA e, para alguns, o
próprio mercado. Aqui também a ameaça unificadora é a privatização - a perda
dos bens comuns. A próxima rodada de negociações da OMC está projetada para
ampliar ainda mais o alcance da mercantilização. Por meio de acordos paralelos
como o GATS (Acordo Geral de Comércio e Serviços) e o TRIPS (Aspectos
Relacionados ao Comércio dos Direitos de Propriedade Intelectual), o objetivo é
obter ainda mais proteção dos direitos de propriedade sobre sementes e patentes
de medicamentos e comercializar serviços como assistência médica , educação e
abastecimento de água.
O maior desafio que enfrentamos é destilar tudo isso em uma mensagem amplamente
acessível. Muitos ativistas entendem as conexões, que unem as várias questões,
de maneira quase intuitiva - como o subcomandante Marcos diz: 'Zapatismo não é
uma ideologia, é uma intuição'. Mas, para quem está de fora, o mero escopo dos
protestos modernos pode ser um pouco confuso. Se você investigar o movimento
pelo lado de fora, que é o que a maioria das pessoas faz, é provável que ouça o
que parece ser uma cacofonia de slogans desarticulados, uma lista confusa de
demandas díspares sem objetivos claros. Na Convenção Nacional Democrata de Los
Angeles, no ano passado, lembro-me de estar do lado de fora do Staples Center
durante o concerto Rage Against the Machine [Fúria Contra a Máquina], pouco
antes de quase levar um tiro, e pensar que havia slogans para tudo e em todo
lugar, ao ponto de absurdo.
Falhas da ideologia dominante
Esse tipo de impressão é reforçado pela estrutura
descentralizada e não hierárquica do movimento, que sempre desconcerta a mídia
tradicional. Conferências de imprensa bem organizadas são raras, não há liderança
carismática, os protestos tendem a se sobrepor uns aos outros. Em vez de formar
uma pirâmide, como faz a maioria dos movimentos, com líderes no topo e
seguidores abaixo, parece mais uma teia elaborada. Em parte, essa estrutura
semelhante à um teia é o resultado da organização baseada na Internet. Mas é
também uma resposta às realidades políticas que provocaram os protestos em
primeiro lugar: o fracasso total da política partidária tradicional. Em todo o
mundo, os cidadãos têm trabalhado para eleger os partidos social-democratas e
dos trabalhadores, apenas para vê-los assumir sua impotência diante das forças
do mercado e das ordens do FMI. Nessas condições, os ativistas modernos não são
tão ingênuos a ponto de acreditar que a mudança virá da política eleitoral. É
por isso que eles estão mais interessados em desafiar as estruturas que tornam
a democracia ineficaz, como as políticas de ajuste estrutural do FMI, a
capacidade da OMC de substituir a soberania nacional, o financiamento de
campanhas corruptas e assim por diante. Isso não é apenas transformar uma
virtude em necessidade. Mas responde, no nível ideológico, a um entendimento de
que a globalização é essencialmente uma crise da democracia representativa. O
que causou essa crise? Uma das razões básicas para isso é a maneira como o
poder e a tomada de decisões foram levados a pontos cada vez mais distantes dos
cidadãos: de local a provincial, de provincial a nacional, de instituições
nacionais a internacionais, que carecem de toda transparência ou responsabilização.
Qual é a solução? Articular uma democracia participativa alternativa.
Se você pensa sobre a natureza das reclamações feitas contra
a Organização Mundial do Comércio, é que os governos de todo o mundo adotaram
um modelo econômico que envolve muito mais do que abrir fronteiras para bens e
serviços. É por isso que não é útil usar a linguagem da antiglobalização. A
maioria das pessoas realmente não sabe o que é globalização, e o termo torna o
movimento extremamente vulnerável a desqualificações das ações, como: 'Se você
é contra o comércio e a globalização, por que você bebe café?' Enquanto, na
realidade, o movimento é uma rejeição ao que está sendo amarrado junto com o
comércio e a chamada globalização - contra o conjunto de políticas políticas
transformadoras que todos os países do mundo são instados a aceitar para se
tornarem hospitaleiros ao investimento. Eu chamo este pacote de 'McGoverno'.
Essa feliz refeição de cortar impostos, privatizar serviços, liberalizar
regulamentações, exterminar sindicatos – para que serve essa dieta? Para
remover qualquer coisa que esteja no caminho do mercado. Deixe o mercado livre
rolar, e todos os outros problemas serão aparentemente resolvidos com os
benefícios que transbordarão para o resto da sociedade. Não se trata de
comércio. Trata-se de usar o comércio para aplicar a receita do McGoverno.
Portanto, a pergunta que estamos fazendo hoje, antes da
ALCA, não é: você é a favor ou contra o comércio? A questão é: temos o direito
de negociar os termos de nosso relacionamento com o capital e o investimento
estrangeiros? Podemos decidir como queremos nos proteger dos perigos inerentes
aos mercados desregulados - ou precisamos terceirizar essas decisões? Esses
problemas se tornarão muito mais agudos quando estivermos em recessão, porque
durante o crescimento econômico muito do que restava de nossa rede de segurança
social foi destruído. Durante um período de baixo desemprego, as pessoas não se
preocuparam muito com isso. É provável que eles fiquem muito mais preocupados
em um futuro muito próximo.
As questões mais controversas que a OMC enfrenta são essas questões sobre
autodeterminação. Por exemplo, o Canadá tem o direito de proibir um aditivo
nocivo da gasolina sem ser processado por uma empresa química estrangeira? Não
de acordo com a decisão da OMC em favor da Ethyl Corporation. O México tem o
direito de negar uma licença para um local perigoso de eliminação de resíduos
tóxicos? Não de acordo com a Metalclad, a empresa norte-americana está
processando o governo mexicano por danos de US$ 16,7 milhões sob o NAFTA. A
França tem o direito de proibir a entrada de carne bovina tratada com hormônios
no país? Não de acordo com os Estados Unidos, que revidaram proibindo
importações francesas como o queijo Roquefort - levando um fabricante de
queijos chamado Bové a destruir um McDonald's. Os norte-americanos pensaram que
ele simplesmente não gostava de hambúrgueres. A Argentina precisa cortar seu
setor público para se qualificar para empréstimos estrangeiros? Sim, de acordo com
o FMI - provocando greves gerais contra as consequências sociais. É o mesmo
problema em todos os lugares: trocar a democracia pelo capital estrangeiro.
Em escalas menores, as mesmas lutas pela autodeterminação e
sustentabilidade estão sendo travadas contra barragens do Banco Mundial,
exploração madeireira, pecuária e agricultura comerciais industriais e extração
de recursos em disputadas terras indígenas. A maioria das pessoas nesses
movimentos não é contra o comércio ou o desenvolvimento industrial. Eles estão
lutando pelo direito das comunidades locais de opinar sobre como seus recursos
são usados, para garantir que as pessoas que vivem na terra se beneficiem
diretamente de seu desenvolvimento. Essas campanhas são uma resposta não ao
comércio, mas a um compromisso que já tem quinhentos anos: o sacrifício do
controle democrático e a autodeterminação do investimento estrangeiro e a
panaceia do crescimento econômico. O desafio que eles enfrentam agora é mudar
um discurso em torno da vaga noção de globalização para um debate específico
sobre democracia. Em um período de 'prosperidade sem precedentes', foi dito às
pessoas que elas não tinham escolha a não ser cortar gastos públicos, revogar
leis trabalhistas, rescindir proteções ambientais - consideradas barreiras
comerciais ilegais – retirar os recursos de escolas, não construir moradias
populares. Tudo isso foi necessário para nos tornar prontos para o comércio,
favoráveis ao investimento e competitivos mundialmente. Imagine que alegrias
nos esperam durante uma recessão.
Precisamos ser capazes de mostrar que a globalização - essa
versão da globalização - foi construída às custas do bem-estar humano local.
Muitas vezes, essas conexões entre global e local não são feitas. Em vez disso,
às vezes parecemos ter dois ativismos isolados. Por um lado, há os ativistas
internacionais contra a globalização que podem estar desfrutando de um humor
triunfante, mas parecem estar lutando contra questões distantes, desconectadas
das lutas cotidianas das pessoas. Eles são frequentemente vistos como
elitistas: crianças brancas de classe média com dreadlocks. Por outro lado, há
ativistas comunitários que se ocupam diariamente das lutas pela sobrevivência
ou pela preservação dos serviços públicos mais elementares, que frequentemente
se sentem esgotados e desmoralizados. Eles estão dizendo: por que diabos vocês
estão tão animados?
O único caminho claro a seguir é que essas duas forças se
fundam. O que é agora o movimento antiglobalização deve se transformar em
milhares de movimentos locais, combatendo a maneira como a política neoliberal
está se desenvolvendo: sem-teto, estagnação salarial, escalada de aluguel,
violência policial, explosão de prisões, criminalização de trabalhadores
migrantes e assim por diante. São também lutas sobre todos os tipos de questões
prosaicas: o direito de decidir para onde vai o lixo local, de ter boas escolas
públicas, de ser abastecido com água limpa. Ao mesmo tempo, os movimentos
locais que lutam contra a privatização e a desregulamentação no local precisam
vincular suas campanhas a um grande movimento global, o que pode mostrar onde
seus problemas específicos se encaixam em uma agenda econômica internacional
aplicada em todo o mundo. Se essa conexão não for feita, as pessoas continuarão
desmoralizadas. O que precisamos é formular uma estrutura política que possa
assumir o poder e o controle corporativos e capacitar a organização e a
autodeterminação locais. Essa deve ser uma estrutura que incentive, celebre e
proteja ferozmente o direito à diversidade: diversidade cultural, diversidade
ecológica, diversidade agrícola - e sim, diversidade política também:
diferentes maneiras de fazer política. As comunidades devem ter o direito de
planejar e gerenciar suas escolas, seus serviços, seus ambientes naturais, de
acordo com suas próprias ideias. Obviamente, isso só é possível dentro de uma
estrutura de padrões nacionais e internacionais - educação pública, emissões de
combustíveis fósseis e assim por diante. Mas o objetivo não deve ser melhores
regras e governantes distantes, deve ser uma democracia próxima, no próprio
local. Os zapatistas têm uma frase para isso. Eles chamam de "um mundo com
muitos mundos". Alguns criticaram isso como uma ‘não resposta’ da Nova
Era. Eles querem um plano. ‘Sabemos o que o mercado quer fazer com esses
espaços, o que você quer fazer? Onde está o seu plano? 'Acho que não devemos
ter medo de dizer: “Isso não depende de nós”. Precisamos ter alguma confiança
na capacidade das pessoas de se governarem, de tomar as decisões que são
melhores para elas. Precisamos mostrar um pouco de humildade, onde agora há
tanta arrogância e paternalismo. Acreditar na diversidade humana e na
democracia local pode ser tudo menos insosso. Tudo no McGoverno conspira contra
elas. A economia neoliberal é tendenciosa em todos os níveis em direção à
centralização, consolidação e homogeneização. É uma guerra travada contra a
diversidade. Contra isso, precisamos de um movimento de mudança radical,
comprometido com um mundo único com muitos mundos, que se posicione por aquele
um ‘não’ e muitos ‘sim'.
*Esta é uma transcrição de uma palestra proferida no Centro de Teoria Social e
História Comparada da UCLA em abril de 2001.
**Publicado originalmente em 'New Left Review' | Tradução de César Locatelli
Fonte: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Direitos-Humanos/Naomi-Klein-recuperando-os-bens-comuns/5/47963
segunda-feira, 29 de junho de 2020
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