Noam Chomsky: ''Viva a morte!'' é a abordagem de Trump na
presidência
Enquanto protestos contra a violência policial racista
abalam o país, eleva-se o fascismo na Casa Branca de Trump e a pandemia da
COVID-19 persiste, este país está em um momento crucial. Falei sobre esse ponto
crítico na história com Noam Chomsky, conhecido como o pai da linguística
moderna, um dos intelectuais públicos mais proeminentes do mundo e autor de
mais de 100 livros, incluindo Hegemonia ou Sobrevivência, Estados Falidos,
Otimismo sobre o desespero, Esperanças e Perspectivas, Mestres da Humanidade e
Quem Governa o Mundo?
Na entrevista a seguir, Chomsky fornece insights sobre como podemos lidar
melhor com o momento atual - e nos preparar para o grave futuro.
George Yancy: Antes de perguntar sobre a COVID-19, gostaria de começar
perguntando sua opinião sobre o horrível assassinato de George Floyd e como
você entende os protestos que têm ocorrido nos EUA e no mundo. Estou
especialmente interessado em sua resposta à retórica de Trump de mobilizar as
forças armadas para suprimir a chamada insurreição.
Noam Chomsky: “Assassinato horrível” é o termo
correto. Mas sejamos claros sobre os assassinatos de negros americanos
ocorrendo agora mesmo. A brutalidade de alguns poucos policiais racistas em
Minneapolis constitui uma pequena parte do crime.
Tem sido amplamente observado que as taxas de mortalidade pela pandemia são
muito mais altas entre os negros. Um estudo atual constatou que “os
norte-americanos, que vivem em condados com populações negras acima da média,
têm uma probabilidade três vezes maior de morrer de coronavírus, do que aqueles
em condados onde os brancos são maioria. Esse massacre de pessoas negras é, em
parte, resultado de como os recursos foram empregados para lidar com a crise,
principalmente "em áreas que, por acaso, eram mais brancas e mais
ricas". Mas está enraizado mais profundamente em um registro hediondo de
400 anos de racismo malévolo. A praga vem assumindo diferentes formas desde o
estabelecimento do sistema mais cruel de escravidão na história da humanidade -
uma base primordial para a indústria, finanças, comércio e prosperidade geral
do país – que, na melhor das hipóteses, foi atenuado, mas nunca chegou perto da
cura.
A escravidão americana foi única não apenas em termos de crueldade, mas também
por estar ligada à cor da pele. Dentro desse sistema, todo rosto negro era
marcado com o emblema: "Sua natureza é ser escravo".
Outros grupos foram duramente tratados. Judeus e italianos
eram tão temidos e desprezados, um século atrás, que a lei de imigração racista
de 1924 foi projetada para barrá-los do país, enviando muitos judeus para os
crematórios. Em apoio ao seu discurso, os racistas da época alegavam que
tínhamos que nos proteger dos judeus e italianos que dirigiam os principais
sindicatos do crime, de criaturas como Meyer Lansky e Al Capone e Bugsy Siegel.
Mas os judeus e os italianos foram finalmente assimilados. O mesmo aconteceu
com os irlandeses.
Com as pessoas negras, porém, é diferente. Eles são considerados
permanentemente inassimiláveis em uma sociedade amaldiçoada pelo racismo e pela
supremacia branca. Para as vítimas, os efeitos são agravados pelos duradouros
desníveis socioeconômicos, gerados pela maldição, intensificados pelo ataque
neoliberal dos últimos 40 anos, um grande benefício para a riqueza extrema, um
desastre para os mais vulneráveis.
O massacre de negros norte-americanos continua passando abaixo do radar. O
presidente, cuja maldade não tem limites, tem explorado o foco na pandemia para
prosseguir seu serviço ao seu eleitorado principal, a grande riqueza e o poder
corporativo. Um método é eliminar regras que protegem o público, mas prejudicam
os lucros. Em meio a uma pandemia respiratória sem precedentes, Trump se moveu
para aumentar a poluição do ar, o que torna a COVID-19 muito mais mortal, tanto
que dezenas de milhares de americanos podem morrer como resultado, informa a
imprensa corporativa. Como sempre, as mortes não são distribuídas
aleatoriamente: “Os mais atingidos são as comunidades de baixa renda e as
pessoas de cor”, que são forçadas a viver nas áreas mais perigosas.
É muito fácil continuar. Os manifestantes sabem muito bem de
tudo isso. Eles não precisam de estudos. Para muitos, é a experiência vivida.
Os protestos não estão apenas demandando o fim da brutalidade policial nas
comunidades negras, mas também uma reestruturação muito mais fundamental das
instituições sociais e econômicas.
E eles estão recebendo apoio notável, como vemos não apenas em ações em todo o
país, mas também em pesquisas. Uma pesquisa no início de junho "constatou
que 64% dos adultos norte-americanos eram" simpáticos às pessoas que estão
protestando no momento", enquanto 27% disseram que não eram e 9% não
estavam seguros."
Podemos comparar essa reação a outra ocasião em que protestos semelhantes
ocorreram: 1992, após a absolvição dos policiais de Los Angeles que espancaram
Rodney King quase até a morte. Uma semana de tumultos se seguiu, com mais de 60
mortes, finalmente abafados pela Guarda Nacional, apoiada por tropas federais
enviadas pelo presidente Bush. Os protestos foram limitados principalmente a
Los Angeles, nada parecido com o que estamos vendo hoje.
Trump tem uma preocupação primordial, seu próprio bem-estar: como posso usar
essa tragédia para melhorar minhas perspectivas eleitorais, acionando os
componentes mais racistas e violentos da minha base eleitoral? Seus instintos
naturais pedem violência: "os cães mais cruéis e as armas mais ameaçadoras
que eu já vi". E enviar as forças armadas para ensinar à
"escória" uma lição que nunca esquecerão.
O plano de Trump de "dominar" a população
malcomportada pela violência provocou raiva generalizada, incluindo a
condenação amarga por ex-presidentes dos Chefes de Estado-Maior Conjunto, além
de expressões de simpatia pelos manifestantes. O almirante Mike Mullen,
ex-presidente do Estado-Maior Conjunto, escreveu: “Como homem branco, não posso
reivindicar uma perfeita compreensão do medo e da raiva que os afro-americanos
sentem hoje…. Mas como alguém que vive já há bastante tempo, eu sei o
suficiente - e já vi o suficiente - para entender que esses sentimentos são
reais e que são dolorosamente fundamentados”.
As mudanças nas duas últimas décadas são, talvez, um sinal de que grande parte
da população está começando a reconhecer verdades, há muito escondidas sobre
nossa sociedade, um raio de luz em tempos sombrios.
George Yancy: Muitas vezes nos dizem que os Estados Unidos são o país
mais poderoso do mundo. Somos alimentados com uma dieta do
"excepcionalismo americano". No entanto, globalmente, temos o maior
número de mortes devido à COVID-19. Estávamos sistemicamente despreparados.
Como você explica essa incongruência e qual o papel de Trump nisso tudo?
Noam Chomsky: A falta de preparação tem três causas básicas: a lógica
capitalista, a doutrina neoliberal e o caráter da liderança política. Vamos
examiná-las brevemente, por sua vez.
Depois que a epidemia de SARS de 2003 foi contida, os
cientistas sabiam que a ocorrência de uma pandemia era provável e que ela
poderia ser causada por outro coronavírus. Eles também sabiam como tomar as medidas
para se preparar. Mas o conhecimento não é suficiente. Alguém deve usá-lo. O
candidato óbvio são as empresas farmacêuticas, que possuem todos os recursos
necessários e enormes lucros, graças em grande parte às patentes exorbitantes
concedidas a eles nos acordos erroneamente chamados de "livre
comércio". Mas eles foram bloqueados pela lógica capitalista. Não há lucro
em se preparar para uma possível catástrofe no futuro - e como o economista
Milton Friedman entoou no início da era neoliberal há 40 anos, a única
responsabilidade da corporação é maximizar o valor para os acionistas (e a
riqueza da administração). Em 2017, as principais empresas farmacêuticas
rejeitaram uma proposta da União Europeia de acelerar a pesquisa de patógenos,
incluindo o coronavírus.
O outro candidato é o governo, que também possui os recursos necessários e
desempenhou um papel significativo no desenvolvimento da maioria das vacinas e
medicamentos. Mas esse caminho está bloqueado pela doutrina neoliberal que
prevalece desde Reagan, que nos convenceu que o governo é o problema - o que
significa que as decisões devem ser removidas do governo, que é, em certa
medida, influenciado pelos cidadãos, e entregue às tiranias privadas, que não
são responsabilizadas, e que foram os principais agentes (e beneficiários) do
triunfo neoliberal. Portanto, o governo também é barrado.
O terceiro fator são os governos individuais. Restringindo
aos EUA, o Presidente George H.W. Bush havia estabelecido um Conselho de
Assessores de Ciência e Tecnologia (PCAST) para manter o presidente a par das
importantes questões científicas. Um dos primeiros atos do presidente Obama ao
assumir o cargo em 2009 foi encomendar um estudo a esse conselho (PCAST) sobre
como lidar com uma pandemia. O estudo foi entregue à Casa Branca algumas
semanas depois.
O governo Obama, orientado para a ciência, agiu para implementar uma
infraestrutura para pandemias, que planejava uma resposta precoce a ameaças de
doenças infecciosas. Ela estava em vigor até 20 de janeiro de 2017, quando o
presidente Trump assumiu o cargo e, em poucos dias, começou a desmantelar toda
a infraestrutura científica do executivo, incluindo os preparativos para uma
pandemia, e de fato passou a rejeitar a ciência geralmente de um papel de
influir nas políticas, revertendo as iniciativas bipartidárias, desde a Segunda
Guerra Mundial, que foram críticas para o desenvolvimento da economia moderna
de alta tecnologia.
Para cravar mais pregos no caixão, Trump dissolveu programas nos quais os
cientistas trabalhavam com colegas chineses para investigar os coronavírus. A
cada ano, ele diminuiu os recursos destinados aos Centros de Controle e
Prevenção de Doenças (CDC). Isso continuou com sua proposta orçamentária de
fevereiro de 2020, enquanto a pandemia já ocorria, exigindo novos cortes no CDC
(enquanto aumentava os subsídios às indústrias de combustíveis fósseis). Os
cientistas foram sistematicamente substituídos por funcionários da indústria,
que garantiriam que o lucro privado fosse maximizado, independentemente do impacto
sobre o público irrelevante.
As decisões de Trump estão alinhadas com o julgamento de seu
especialista favorito, Rush Limbaugh, a quem ele concedeu a Medalha
Presidencial da Liberdade. Ele nos instrui que a ciência é um dos "quatro
vértices do engano", junto com a academia, a mídia e o governo, todos os
quais "existem em virtude do engano". A máxima orientadora do governo
foi articulada de maneira mais eloquente pelo general líder de Franco em 1936:
“Abaixo a inteligência! Viva a morte!”
O resultado foi que os EUA estavam "sistematicamente despreparados",
quando atingidos pela pandemia.
George Yancy: Em fevereiro, Trump disse que a COVID-19 simplesmente
desapareceria, que "um dia, é como um milagre, desaparecerá". Ele
estava profundamente enganado e depois culpou a China, até “racializando” a
doença. Alguns afirmam que Trump tem sangue nas mãos por causa de seu mau uso
da COVID-19. Quais são seus pensamentos sobre isso?
Noam Chomsky: Dezenas de milhares de norte-americanos morreram como
resultado do serviço dedicado de Trump a seu eleitorado principal: aos
extremamente ricos e ao poder corporativo. Sua malevolência persistiu mesmo
após a doença ter nos atingido. Algumas semanas após a descoberta dos primeiros
sintomas, em dezembro passado, os cientistas chineses identificaram o vírus,
sequenciaram o genoma e forneceram as informações à OMS e ao mundo. Os países
da Ásia e da Oceania reagiram rapidamente e têm a situação amplamente sob
controle. Outros variaram. Trump criou a retaguarda. Por dois meses cruciais,
as autoridades de inteligência e saúde dos EUA tentaram capturar a atenção da
Casa Branca, em vão. Finalmente, Trump notou - possivelmente quando o mercado
acionário faliu, como foi relatado. Desde então, foi um caos.
Não é de surpreender que Trump e seus subordinados tenham se
debatido desesperadamente para encontrar algum bode expiatório responsável por
seus crimes contra os norte-americanos, alheios ao número de pessoas que ele
abate. A diminuição do financiamento, seguida da saída da OMS [Organização
Mundial da Saúde] é um golpe sádico contra africanos, iemenitas e muitas outras
pessoas pobres e desesperadas que foram protegidas de doenças galopantes pela
ajuda médica da OMS, antes mesmo do ataque do coronavírus, e, agora, estão
enfrentando novas catástrofes, além dessa. Eles são dispensáveis se isso
melhorar suas perspectivas eleitorais.
A acusação de Trump contra a OMS, que é ridícula demais para se discutir, é que
estava sendo controlada pela China. Ao sair, ele aumenta a influência chinesa.
Mas é injusto julgá-lo por tolo. Esse desfecho apenas ressalta o fato de ele
nunca se importou com isso, em primeiro lugar.
George Yancy: Falando em responsabilidade e sangue nas mãos, uma certa
interpretação dos direitos individuais parece substituir uma responsabilidade
social coletiva para muitos nos EUA que não estão observando as recomendações
da OMS e do CDC, incluindo uma flagrante rejeição ao uso de máscaras. O que
você diria que está alimentando essa raiva e falta de responsabilidade em
relação à saúde e segurança dos outros?
Noam Chomsky: Os republicanos confiam
predominantemente no presidente, não importa o quanto suas ações os
prejudiquem. Sua imagem divina é ampliada por quem o rodeia, graças à sua
bem-sucedida campanha para se livrar de todos, exceto bajuladores, como o
segundo em comando, Secretário de Estado Mike Pompeo, que pensa que Deus pode
ter enviado Trump para Terra para salvar Israel do Irã. Os colegas evangélicos
de Pompeo, a maior base de apoiadores de Trump, provavelmente concordam. E eles
ouvem a mesma coisa, em geral, do Partido Republicano, que praticamente
abandonou qualquer fragmento de integridade e o adora, abominavelmente, o que
quer que ele faça. O mesmo se aplica à sua câmara de eco na mídia. Estudos
mostraram que a principal fonte de informação para os republicanos é Fox News,
Limbaugh e Breitbart. De fato, uma díade interessante se desenvolveu: Trump
emite um pronunciamento aleatório, é saudado por Sean Hannity como uma
descoberta inovadora, e na manhã seguinte Trump liga na Fox News para descobrir
o que pensar.
Pesquisas de opinião pública revelam as consequências. Uma pesquisa do Pew em
abril, quando a responsabilidade de Trump pelo crescente desastre estava
evidente, constatou que 83% dos republicanos e simpatizantes dos republicanos
classificaram a resposta de Trump ao surto como excelente ou boa (em comparação
com 18% dos democratas e simpatizantes dos democratas). Eles estão ouvindo um
presidente comparar o vírus à "gripe comum" e, em meados de abril,
tuitar instruções aos seus apoiadores para "LIBEREM A VIRGINIA, e salvem
sua grande segunda emenda [da Constituição]. O estado de Virginia está
sitiado!” A 2ª Emenda não tem a menor relevância, mas Trump sabe quais botões
apertar. Ele estava, transparentemente, instando suas tropas a pegar em armas,
parte de suas tentativas mais gerais de encorajar manifestantes armados a
violar ordens em estados com governadores democratas (como a Virgínia), numa
época em que já havia quase 50.000 mortes registradas.
Vamos matar mais norte-americanos, não apenas iemenitas e
africanos, se isso melhorar minhas perspectivas eleitorais. “Abaixo a
inteligência! Viva a morte! ”
Quando excluímos as operações de Astroturf [NT: prática de fazer parecer que um
movimento ou mensagem, manipulado pela liderança, teve origem espontânea nas
bases da população] e a lealdade fervorosa da base de votos, não está claro que
resta muito além de um apelo aos "direitos individuais" em qualquer
sentido significativo.
Também não está claro que os manifestantes estejam substituindo a
responsabilidade social. Eles evidentemente não veem dessa maneira. Eles
ficariam horrorizados com a ideia de que o que estão fazendo é semelhante a
pessoas com rifles de assalto correndo pelas ruas atirando aleatoriamente,
embora a comparação seja adequada. Eles não acham que estão colocando em risco
ninguém. Ao contrário, eles estão seguindo seu reverenciado líder em protestar
contra um esforço da esquerda radical, talvez por instruções da China, para
destruir seus direitos elementares e até mesmo tirar suas armas.
Tudo isso indica que o país está em apuros - e à luz do poder dos EUA, o mundo
também está.
George Yancy: Além da incompetência de Trump, o que precisa ser feito
globalmente para que possamos evitar outra pandemia e o que devemos fazer para
estarmos melhor preparados no futuro?
Noam Chomsky: Não acho que "incompetência"
seja a palavra certa. Ele é bastante competente em perseguir seus objetivos
principais: enriquecer os muito ricos, aumentar o poder e o lucro corporativos,
manter sua base alinhada, enquanto os apunhala pelas costas, e concentrar o
poder nas suas mãos, desmantelando o poder executivo e intimidando republicanos
no Congresso, que, timidamente, aceitam quase tudo. Não ouvi um pio deles
quando Trump demitiu o cientista encarregado do desenvolvimento de vacinas por
ousar questionar uma das falsas curas que ele está promovendo. Há um silêncio
mortal por parte dessas fileiras, quando ele realiza seu expurgo de
inspetores-gerais, que impõem alguns controles sobre o pântano que ele criou em
Washington, também insultando um dos senadores republicanos mais respeitados,
Chuck Grassley, de 86 anos, que dedicou sua longa carreira para estabelecer
esse sistema.
É uma conquista impressionante.
O que precisa ser feito globalmente é seguir os conselhos que os cientistas
estão nos fornecendo. Uma nova pandemia é provável, provavelmente pior do que
esta, por conta do aquecimento global, que pode se transformar em um assamento
climático com outros quatro anos da praga de Trump. É preciso tomar medidas
para se preparar para isso, do tipo recomendado em 2003 e que foram, em pequena
escala, adotadas até Trump empunhar sua bola de demolição. Deveria haver
cooperação internacional na busca de coronavírus e outros riscos potenciais,
com crescimento do entendimento científico necessário para o desenvolvimento
rápido de vacinas e medicamentos para aliviar os sintomas e com a implementação
de planos de contingência a serem aplicados se uma pandemia ocorrer novamente.
Para os EUA em particular, isso significa libertar a
sociedade do dogma neoliberal, que teve consequências amargas no domínio da
saúde (e muitos outros). O modelo de negócios para hospitais, sem desperdício
ou capacidade de reserva, não utilizada, é um convite ao desastre. De maneira
mais geral, o sistema de saúde privatizado, altamente ineficiente, é um fardo
terrível para a sociedade, com o dobro dos custos de outros países
desenvolvidos e com alguns dos piores resultados. Um estudo recente da Lancet
estima seu custo anual em quase US$ 500 bilhões e 68.000 mortes extras. É
escandaloso que os EUA não possam subir ao nível de outras sociedades e, em vez
disso, dependam do sistema mais cruel e caro de assistência universal à saúde:
as salas de emergência. Se você consegue se arrastar até uma delas, pode
conseguir atendimento - seguido talvez de uma fatura saudável.
O mesmo dogma neoliberal impede os Institutos Nacionais de Saúde de irem além
da pesquisa básica e desenvolvimento de medicamentos para testes e
distribuição, ignorando as empresas privadas e implementando as disposições da
lei dos EUA, constantemente ignoradas, que exigem que os medicamentos,
produzidos com a assistência do governo (praticamente todos), fiquem
disponíveis ao público a um custo razoável. Os estudos mais cuidadosos sobre
esses assuntos que eu conheço são de Dean Baker, que estima enormes economias
sem perda de inovação se essas medidas forem introduzidas (veja seu livro Rigged, disponível
gratuitamente).
Este é apenas um começo. Existem problemas sociais, culturais e institucionais
profundos que devem ser abordados.
George Yancy: Assumindo que as eleições de novembro
estão próximas, você vê Trump empregando o ardil da fraude eleitoral para
permanecer no poder? Se isso acontecer, o que você prevê em termos dessa
atuação política?
Noam Chomsky: Trump e associados já estão promovendo, energicamente,
esse embuste, não pela primeira vez. Eles sabem que lideram um partido
minoritário e que têm que recorrer a enganos e fraudes para manter o poder
político. E para eles, muita coisa está em jogo. Outros quatro anos permitiriam
garantir que suas políticas de extrema direita prevaleceriam por uma geração,
não importa o que a população queira. Esse tem sido o objetivo da estratégia de
McConnell de colocar o judiciário, de cima a baixo, nas mãos de jovens juristas
de extrema-direita que podem bloquear programas de interesse público. A perda
da oportunidade atual pode condenar o projeto. Para Trump, pessoalmente, as
perspectivas de perda podem ser graves, mesmo que ele seja psicologicamente
capaz de aceitá-la como um ser humano normal. Ele pode se tornar vulnerável a
sérias acusações legais, se sua imunidade for perdida. E com o Partido
Republicano se rendendo à sua autoridade, ao estilo norte-coreano, ele enfrenta
poucos impedimentos. Podemos deixar o resto para a imaginação.
George Yancy: Eu percebo que isso parece distópico, mas quem pode dizer
que Trump, por puro desejo de poder, não galvanizará uma milícia para apoiar
seu desejo de permanecer no poder? Alguma ideia?
Noam Chomsky: Não pode ser descartada. Como
amplamente reconhecido, o país está enfrentando uma crise constitucional de
longo prazo. O Senado é uma instituição radicalmente antidemocrática, em menor
grau o colégio eleitoral. Por razões demográficas e estruturais, uma pequena
minoria de eleitores brancos, cristãos, rurais, tradicionais e muitas vezes
supremacistas brancos pode manter o controle num nível ainda além do que os
democratas racistas do sul exerceram antes que a "estratégia sulista"
de Nixon os levasse ao rebanho republicano. E isso é praticamente imutável por
emenda constitucional. Não está fora de questão que nas mãos de Trump, a crise
iminente possa acontecer muito em breve.
George Yancy: Noam, eu sei que você prefere não falar muito de si mesmo,
mas aos 91 anos como está lidando pessoalmente com nosso momento histórico
surreal vivendo sob o COVID-19?
Noam Chomsky: Em termos pessoais restritos, não é uma dificuldade grave
para mim e minha esposa. Para muitos outros, é uma história radicalmente
diferente. O momento é realmente surreal. O futuro será moldado pela forma como
emergirmos da crise. As forças, que são responsáveis pela crise e pelo ataque
neoliberal à população, e que têm, comprovadamente, a intensificado agudamente,
não estão sentadas em silêncio. Eles estão trabalhando incansavelmente para garantir
que o que surja seja uma versão mais dura e autoritária do que eles criaram em
seu próprio interesse. Existem forças populares que buscam aproveitar as
oportunidades atuais para reverter os desastres do passado recente e avançar
para um mundo muito mais humano e decente. E, decisivamente, enfrentar as
crises muito mais graves que estão surgindo.
Vamos nos recuperar da pandemia, a um custo terrível. Não
nos recuperaremos do derretimento contínuo das camadas de gelo polares e de
outras consequências do assamento da terra, que tornará impossível a vida em
muitas das áreas da habitação humana, em pouco tempo, se continuarmos em nosso
curso atual. Mais quatro anos da malignidade de Trump aumentarão drasticamente
as dificuldades de lidar com essa catástrofe iminente - mesmo se escaparmos da
ameaça da guerra nuclear terminal que Trump está escalando, ao desmantelar o
regime de controle de armas, que ofereceu alguma proteção, e ao correr para
desenvolver novos e mais perigosos meios de destruição que minam nossa
segurança decrescente.
*Publicado originalmente em 'Truthout' | Tradução de César Locatelli
Fonte: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Pelo-Mundo/Noam-Chomsky-Viva-a-morte-e-a-abordagem-de-Trump-na-presidencia/6/47762
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