sexta-feira, 9 de setembro de 2011

A marca e a (in)sustentável leveza do objeto - por Isleide Fontenelle

A marca e a (in)sustentável leveza do objetoNesses últimos dias fomos inundados por reportagens sobre o afastamento de Steve Jobs da presidência-executiva da Apple, hoje considerada a marca mais valiosa do mundo. Foram muitas as competências atribuídas a Jobs para que a Apple chegasse a esse patamar: seu gênio criativo, seu ímpeto empreendedor, sua capacidade de sintetizar o espírito de uma época. Nessa longa lista, deparamo-nos com uma espécie de reprodução do mito do self made man tão comum à literatura de business americana. Não por acaso, o atual presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, afirmou que ele, Jobs, encarnava o american dream. Esse ethos americano do sucesso, no qual criatividade e inovação são postos a serviço do progresso econômico foi, desde pelo menos o início do século XX, cada vez mais associado à cultura de consumo. Assim, a sensação que tive ao me deparar com reportagens que enfatizavam a capacidade de Jobs em integrar negócio e cultura e de reconfigurar desejos através dos seus gadgets, foi a de que, se as tecnologias mudaram tanto, as narrativas midiáticas sobre elas não mudaram muito.

Em matéria de produção de estratégias de sedução do consumidor, Steve Jobs vem de uma linhagem que poderia ser remetida, pelo menos, ao início do período novecentista, quando um arguto sobrinho do psicanalista vienense Sigmund Freud, afirmou ter descoberto a maneira de fazer com que as pessoas passassem a desejar aquilo que não necessitavam e a necessitar aquilo que não desejavam. Refiro-me a Edward Bernays, retratado no documentário de Adam Curtis (The century of the self), como o fundador das relações públicas, entendida como a “arte” da produção de “hapiness machines” da cultura de consumo do século XX. Jobs também é cultuado como um gênio das relações públicas. A cada lançamento dos produtos Apple, há todo um espetáculo midiático em torno de fãs enlouquecidos que, em filas gigantescas, buscam aquele que consideram ser seu objeto de desejo. Funcionários da Apple participam ativamente dessa encenação, ao aplaudir cada consumidor que, após longas horas de espera, consegue adentrar o templo da marca e adquirir seu objeto-fetiche.

Mas de que objeto estamos falando? De um tocador de música individual? De um telefone celular? De um computador portátil com acesso a internet, a música e a telefone? Seriam essas as descrições corretas para nos referirmos a um iPod, um iPhone ou um iPad? Não sei dizer, não domino essa linguagem. Mas tenho lido que o gênio criativo de Jobs também foi atrelado a essa capacidade que ele teria em reconfigurar uma tecnologia já existente a partir do desenvolvimento de um design que integra forma e função, permitindo seu uso de forma simples, facilmente acessível.

Aqui, talvez, esteja o ponto de partida para pensarmos a novidade que a Apple representa: a transformação da tecnologia da informação – que pode ser mera commodity – em i-objetos. Segundo o filósofo italiano Giorgio Agamben, em seu livro Profanações (Boitempo Editorial, 2007), o capitalismo atual tornou-se um poderoso dispositivo de captura dos meios puros, os comportamentos capazes de reconstituir o uso comum das coisas para fora da esfera da mercadoria. A isso Agamben chama de “comportamentos profanatórios”, aos quais atribui uma grande tarefa política no mundo contemporâneo.

O virtual carrega consigo essa promessa, como já sabemos, daí a necessidade de se aprisionar, sob a forma mercadoria, o seu uso. Foi o que fez a Apple com o iPod: não só reconfigurou o tocador de música individual existente, como também absorveu um movimento que parecia revolucionário até então: o do acesso livre à música. Ao criar um objeto que podia armazenar e tocar músicas de maneira diferente da usual – até então só presente em formas que tinham o apelo sedutor da cultura hacker – a mensagem parecia ser: mais importante do que a música é a forma através da qual você a ouve. Foi a partir daí que a marca Apple se reconfigurou como cool e seus fones de ouvido se tornaram quase uma extensão do próprio corpo, comunicando uma forma de ser e de estar no mundo.

Até hoje essa lógica-forma continua presente em todos os i-objetos da Apple. Parafraseando Marx, seu segredo está na forma… E aqui talvez esteja a mudança mais profunda no cenário do consumo virtual que essa marca ilustra tão bem: ao mesmo tempo em que seus objetos buscam se virtualizar – como os “conteúdos” que carregam – a partir de um design cada vez mais minimalista; eles também procuram materializar sua existência. Seus pequenos gadgets prometem um acesso cada vez mais expandido ao mundo através de palavras como usabilidade, portabilidade, mobilidade. A frase mais persistente que ouço sobre as vantagens de se possuir um iPad é a de que passa-se a se ter, em um único objeto, todos os recursos necessários de acesso ao mundo virtual: informação, música, livros, filmes, jogos, comunicação, linguagem. Mas, antes de tudo, é necessário possuir o i-objeto, sem o qual a “experiência” do virtual não pode se tangibilizar.

Nessa inversão, é todo o conteúdo que parece se tornar commodity, ao mesmo tempo em que o i-objeto se torna a promessa de nosso acesso ao mundo. Essa não é uma inversão sem importância. Remete-nos, de forma radical, ao tema do acesso e dos “guardiões do portão”, bem como a uma nova forma de tirania dos objetos. Não estranha, portanto, que os protagonistas dos movimentos de protesto ocorridos recentemente, em Londres, tenham saqueado iPads, entre outros objetos-fetiche. Há aí uma racionalidade: eles são leves, fáceis de carregar, ao mesmo tempo em que carregam o mundo. Mas até que ponto é possível, com tal movimento, realizar a tarefa política que Agamben propõe como sendo a dos nossos tempos, qual seja, “profanar o improfanável”?
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Fonte: http://boitempoeditorial.wordpress.com/

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