quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Terceira modernidade do capital, crise de civilização e barbárie social - Por Giovanni Alves

Terceira modernidade do capital, crise de civilização e barbárie socialO sentido radical da crise do nosso tempo histórico diz respeito a incapacidade da forma social do capital em conter (e realizar) as possibilidades de desenvolvimento do ser genérico do homem pressupostas pela nova materialidade sócio-técnica em virtude da degradação das condições materiais de reprodução humana, inclusive no pólo desenvolvido do capitalismo global. Este é um traço indelével do esgotamento histórico de um modo planetário de controle do metabolismo social baseado na propriedade privada dos meios de produção social e divisão hierárquica do trabalho.

O que consideramos como crise estrutural do capital possui as caracteristicas de uma “sindrome” social, isto é, de um “estado mórbido” caracterizado por um conjunto de sinais e sintomas associados a uma “condição social crítica”, suscetível de despertar reações de temor e insegurança global. É o que temos denominado de sociometabolismo da da barbárie ou barbárie social.

Na verdade, vivemos uma nova era civilizatória que inaugura a terceira modernidade do capital. Sob as condições da barbárie social, o capitalismo histórico altera qualitativamente a dinâmica da luta de classes, que se contrasta, por exemplo, com a dinâmica histórica inscrita na segunda modernidade do capital, caracterizada pela lógica cultural do modernismo.

O capital adquire sua dimensão real tão-somente a partir da segunda modernidade, ou seja, a instauração do modo de produção capitalista propriamente dito. Constitui-se a grandeindústria com o sistema de máquinas que põe a subsunção real do trabalho ao capital. Esta importante inflexão histórica propiciou um salto qualitativamente novo na dinâmica civilizatória do capital. É possível dizer que, com a segunda modernidade do capital, que tem inicio com a Primeira Revolução Industrial, a partir do século XIX, e que prossegue até a última metade do século XX, o capital se consolida como sistema planetário, ou seja, sistema de controle do metabolismo social global. É nesse período histórico que se constitui o mercado mundial e todas as determinações sociais descritas num impressionante vigor literário por Karl Marx e Friedrich Engels n´O Manifesto Comunista, de 1848.

A segunda modernidade do capital é a modernidade-máquina, temporalidade histórica em que se constituiu um estilo de pensamento, de política e de sensibilidade estética que poderíamos caracterizar como modernista. Foi nessa etapa de desenvolvimento do capitalismo ocidental, no bojo do qual se desenvolveu o processo de modernização que constituiu-se a classe social (burguesia e proletariado) e o Estado nacional em torno da qual se consolida o território propriamente dito da Nação e da Cidade. São tais determinações essenciais que irão compor a identidade social de homens e mulheres da segunda modernidade. Enfim, a segunda modernidade é a modernidade propriamente dita.

Por modernidade entendemos um conjunto de experiências de vida: experiência do espaço e do tempo, de si mesmo e dos outros, das possibilidades e perigos da vida, que é hoje em dia compartilhado por homens e mulheres em toda parte do mundo. Assim, desde o século XVI, constitui-se no Ocidente a modernidade do capital, que assume diversas formas histórico-temporais, por conta do desenvolvimento do modo de produção capitalista.

Diremos com Marshall Berman, no seu livro clássico “Tudo que é sólido se desmancha no Ar”, que “ser moderno é encontrarmo-nos em um meio-ambiente que nos promete aventura, poder, alegria, crescimento, transformação de nós mesmos e do mundo – e que, ao mesmo tempo, ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que conhecemos, tudo o que somos. Ambientes e experiências modernos atravessam todas as fronteiras de geografia e de etnias, de classe e nacionalidade, de religião e ideologia; neste sentido, pode-se dizer que a modernidade une todo o gênero humano. Mas é uma unidade paradoxal, uma unidade de desunidade: envolve-nos a todos num redemoinho perpétuo de desintegração e renovação, de luta e contradição, de ambigüidade e angústia. Ser moderno é ser parte de um universo em que, como disse Marx, ´tudo o que é sólido se desmancha no ar´”. Esta percepção de Marshal Berman é a percepção aguda da modernidade clássica, a segunda modernidade do capital, a modernidade da grande indústria e do modernismo, que irá expor a forma essencial deste processo de modernização do capital.

Por “modernismo”, que se vincula a esta segunda modernidade, entendemos como sendo, de acordo com Perry Anderson (no livro “As origens da pós-modernidade”), “a espantosa variedade de visões e idéias que visam a fazer de homens e mulheres os sujeitos, ao mesmo tempo que os objetos, da modernização, a dar-lhe o poder de mudar o mundo que os está mudando, a abrir-lhes caminho em meio ao turbilhão e apropriar-se dele”. Deste modo, o modernismo como lógica cultural da segunda modernidade do capital, são visões e valores carentes de utopia social. Enfim, são visões culturais e políticas que emergem no período de ascensão histórica do capital. O modernismo é o espírito político-cultural da segunda modernidade do capital.

Deste modo, podemos distinguir a primeira modernidade do capital, que transcorreria do século XVI à última metade do século XVIII e seria caracterizada pela ascensão histórica do capitalismo comercial e capitalismo manufatureiro. Neste período de constituição do capitalismo moderno, as sociedades européias ainda estavam imersas em relações sociais tradicionais, marcadas pela dominação de classe aristocráticas e agrárias, ainda não subsumidas à lógica do capital industrial, mas apenas à lógica do capital mercantil.

A segunda modernidade do capital seria a modernidade da Primeira e Segunda Revolução Industrial, do surgimento da grande indústria, do modo de produção capitalista propriamente dito, da subsunção real do trabalho ao capital, da transição dolorosa e luminosa para a última modernidade do capital, a terceira modernidade.

A terceira modernidade do capital seria a modernidade tardia, a modernidade sem modernismo, ou a modernidade pós-modernista. É a modernidade do espírito do toyotismo que explicita um nova implicação sociometabólica da produção social: a maquinofatura em contraste com a manufatura ea grandeindústria. A terceira modernidade é a modernidade do capitalismo manipulatório e da crise estrutural do capital. É a modernidade da predominância do capital financeiro sobre as demais frações do capital. A terceira modernidade seria a modernidade do precário mundo do trabalho e da barbárie social. Enfim, com a terceira modernidade nos inserimos noutra temporalidade histórica do capital, com impactos decisivos na objetividade e subjetividade da classe dos trabalhadores assalariados e do trabalho vivo. Com a terceira modernidade altera-se a dinâmica histórica da luta de classes na medida em que está posta a precarização do homem-que-trabalha como um traço indelével da nova precariedade salarial.

Apesar de estarmos inseridos na temporalidade histórica da terceira modernidade do capital, somos constrangidos ainda, no plano da memória histórica e da imagem social, pela segunda modernidade do capital, a modernidade do modernismo, a modernidade da forma cultural prenhe de projetos de utopias concretas (como diria Ernst Bloch).

Enquanto a primeira modernidade do capital era prenhe de utopias abstratas, como a de Thomas Morus (“A Utopia”) ou de Tomazo di Campanella (“Cidade do Sol”); ou mesmo de Charles Fourier e Robert Owen; a segunda modernidade do capital nasce com o proletariado industrial e os projetos sociais do comunismo político em meados do século XIX no bojo da crise de 1848, aprimeira grande crise do capitalismo ocidental. Seu marco histórico maduro são as revoluções sociais de 1848, evento crucial que inspirou o Manifesto Comunista, de Karl Marx e Friedrich Engels. As revoluções sociais de 1848 abrem um novo período histórico da luta de classes.

O processo social da segunda modernidade do capital é caracterizado pelo espírito do modernismo, isto é, o conjunto de doutrinas e práticas estéticas e políticas amplamente heteróclitas, assincrônicas e intrinsecamente contraditórias, como a própria modernização do capital no período de sua ascensão histórica. Neste período, temos a ascensão e crise do Estado social, com seus partidos e sindicatos de classe e com os projetos de utopias sociais caracterizados pelo comunismo histórico e pela social-democracia clássica. Constituiu-se o mundo do trabalho organizado cuja dinâmica da luta de classes propiciou uma precariedade salarial caracterizada pelo emprego estável dos trabalhadores assalariados organizados. É o período histórico das conquistas sociais do trabalhismo organizado, da legislação do trabalho e do Welfare State. Nele vigoram como estilo cultural e político da subjetivação de classe, tanto o reformismo social-democrata, quanto o comunismo político como forças estruturantes da defensividade do trabalho.

Na temporalidade histórica da segunda modernidade do capital ocorre o surgimento e desenvolvimento dos Estados nacionais, com destaque para a constituição hegemônica dos Estados Unidos como nação moderna, de crise européia, dos conflitos imperialistas, da Primeira e Segunda Guerra Mundial, da colonização, descolonização e ocidentalização do Terceiro Mundo, da indústria cultural, da modernização avassaladora em todas as instâncias da vida social (o que só ocorreria após a Segunda Guerra Mundial). Enfim, é um período de intensa “destruição criativa”, último período histórico de ascensão do capital, uma ascensão de destruição de modos de vida tradicionais vinculados à dominação de classes aristocráticas e agrárias, que só ocorreriam de vez após as duas guerras mundiais que atingiram o Continente Europeu (é tal transição do tradicional para o moderno que iria dar aquela sensação de ambigüidade típica do modernismo – euforia e rebeldia, tão típica dos movimentos culturais modernistas, do surrealismo ao rock and roll dos The Beatles).

A crise da segunda modernidade do capital ocorre em meados da década de 1960, década de transição, que anunciaria, no centro do sistema do capital, a passagem para a terceira modernidade, modernidade tardia ou modernidade sem modernismo. Ela irá se compor na medida em que se dissolvem as coordenadas históricas compositivas do modernismo.

Nos primórdios do século XXI vivemos sob a terceira modernidade que inaugura a temporalidade histórica da crise estrutural do capital com implicações qualitativamente novas na dinâmica da luta de classes, na medida em que se altera o processo social de subjetivação de classe.

A mundialização do capital e a vigência do regime de acumulação predominantemente financeirizado; as políticas neoliberais, a acumulação flexível e o espírito do toyotismo; e a instauração da sociedade em rede a partir da revolução informacional no bojo do capitalismo manipulatório, colocam novas determinações concretas no processo de formação (e luta) da classe social do proletariado.

Por um lado, amplia-se a condição de proletariedade que, com a nova precariedade salarial, incorpora as camadas sociais ditas de “classe média”. A nova precariedade salarial que inaugura a “nova questão social” (Robert Castel), explicita a precarização estrutural do trabalho como um traço compositivo ineliminável da npva dinâmica do capitalismo global. Por outro lado, a precarização do homem-que-trabalha, traço indelével da nova precariedade salarial, com a dessubjetivação de classe, “captura” da subjetividade e redução do trabalho vivo a força de trabalho, colocam obstáculos efetivos à formação da consciência de classe e, portanto, à formação do sujeito histórico do proletariado como classe social.

Deste modo, o nosso conceito de barbárie social diz respeito a condição social crítica qualitativamente nova que surge na terceira modernidade do capital e que coloca obstáculos efetivos à formação do sujeito histórico de classe. Na verdade, ocorre um processo de deformação da classe pari pasu à crise de formação contraditória do valor no bojo da crise estrutural do capital (formação contraditória no sentido de que a crise de formação do valor se põe no bojo da disseminação da forma-valor pela vida social).

Com a nova precariedade salarial, que contém no seu bojo o estado de barbárie social, inaugura-se, deste modo, a era de crise social como crise de civilização, caracterizada, no plano sociometabolico, pela crise da vida pessoal, crise de sociabilidade e crise de auto-referencia pessoal. A terceira modernidade, com o sociometabolismo da barbárie, que reduz tempo de vida a tempo de trabalho, coloca em questão, de modo qualitativamente novo, o devir humano dos homens.
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Giovanni Alves é doutor em ciências sociais pela Unicamp
Fonte: http://boitempoeditorial.wordpress.com/

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