Palestina e Israel por trás da cortina de fumaçaO presidente da Autoridade Palestina pediu na semana passada, à Assembleia Geral das Nações Unidas, o reconhecimento do Estado Palestino. Embora a imprensa venha dando vasta cobertura a esse momento histórico, pouco se dabate sobre a complexidade do que está em jogo e a dificuldade das partes interessadas chegarem a um denominador comum. Eis uma lista das principais perguntas cujas respostas parecem importantes até mesmo para leitores bem informados:
Por que Israel não aceita o Estado Palestino?
Pesquisas de opinião (disponíveis no site da Iniciativa de Genebra), evidenciam que a maioria da população israelense está convencida da criação do Estado Palestino, e entende que o momento está chegando. Não será uma derrota para Israel, como mostra essa lista de 50 razões para Israel dizer sim, compilada por uma coalizão de ONGs pacifistas israelenses e palestinas. Há manifestações nas ruas de Israel denunciando a intransigência do governo Netanyahu.
O Estado Palestino já foi previsto no acordo de Oslo, graças ao qual Itzhak Rabin e Yasser Arafat ganharam o prêmio Nobel da Paz, há 18 anos. Esse acordo foi uma declaração de intenções, em que ficou estabelecida a aceitação mútua da solução Dois Estados para Dois Povos. Há uma minoria que o recusa, e que tem posição forte no atual governo. Se o primeiro ministro ceder, ele perderá a liderança da coalizão de direita que lhe dá sustentação, que poderá cair nas mãos de seu aliado e rival interno — Avigdor Lieberman, da extrema direita. Portanto, o impasse deve-se não a Israel não aceitar o Estado Palestino, e sim às contradições da política interna israelense (leia mais em Outras Palavras sobre a coalizão de direita que está no governo israelense). O argumento utilizado pelo primeiro-ministro na ONU, que leva o presidente Obama a apoiá-lo por medo de perder votos judaicos nas eleições de 2012, é que a criação do Estado Palestino não pode ser unilateral, e que só poderá se dar através de negociações diretas.
E por que então não fazem as negociações diretas?
Sim, houve negociações diretas diversas vezes. As primeiras foram no ano 2000, em Camp David, patrocinadas por Bill Clinton. Não houve tempo hábil para concluí-las, em vista da mudança de guarda na presidência dos Estados Unidos, que George W. Bush assumiu em janeiro de 2001. A experiência de negociações e o enfrentamento das questões mais complexas levou os negociadores a se encontrarem novamente em 2002, na chamada Iniciativa de Genebra, que serve de base para tudo que veio a ser negociado posteriormente (ver detalhes em Paz Agora).
Outra rodada aconteceu em 2008, mas foi interrompida por nova mudança de governo — agora em Israel. Como a coalizão agora no poder tem rabo preso com setores interessados na construção de habitações nos assentamentos em territórios ocupados por Israel, Netanyahu colocou dificuldades para as negociações. Exigiu algo que nunca havia sido requerido antes: que a Autoridade Palestina reconhecesse o Estado de Israel como um Estado judeu.
Tal condição pode ter implicações em relação ao destino dos refugiados palestinos, um tema que faz parte das negociações. O governo israelense também boicotou o diálogo ao retomar e acelerar as construções nos assentamentos e em Jerusalém Oriental, o que é visto pelos palestinos como ato hostil. Portanto a exigência de Netanyahu e o seu comportamento em relação à construção nos assentamentos resultaram na paralisia das negociações, apesar dos esforços exercidos pelos Estados Unidos e pelo Quarteto (EUA, Rússia, ONU e União Europeia), para que elas acontecessem. A Autoridade Palestina, pressionada por sua sociedade, não teve outro recurso a não ser recorrer à ONU.
O que estará envolvido nas negociações?
As negociações deverão estabelecer as fronteiras entre o Estado de Israel e o Estado Palestino, já tendo por base o princípio aceito por todos de que a base serão as fronteiras anteriores à guerra de 1967 — vencida por Israel, que então ocupou a Cisjordânia e Gaza. Há ajustes a serem feitos nas fronteiras através da troca de terras, para garantir as condições de segurança para ambos os estados, e para conciliar dois pontos do conflito: a exigência dos palestinos de que tenham território contínuo que viabilize sua economia, versus a necessidade dos israelenses reduzirem o ônus social e econômico de levar de volta para o Estado de Israel os colonos que residem nos assentamentos. Do total de 300 mil colonos, as negociações poderão exigir o deslocamento de cerca de 100 mil, reduzindo muito a dimensão do problema.
Um outro ponto de negociação foi o motivo principal para as negociações de uma década atrás não terem tido sucesso: o status de Jerusalém. É exigência palestina que Jerusalém Oriental seja parte do Estado Palestino. Parte da sociedade israelense entende que Israel não pode abrir mão de ter Jerusalém unificada. Há outras questões também complexas, como a da desmilitarização do Estado Palestino, a questão dos refugiados e a questão dos direitos sobre a água. A negociação de todas essas questões não deve ser motivo para postergar a criação do Estado Palestino.
Israel não tem razão de temer que os palestinos não o reconheçam?
Sim. A sociedade israelense tem uma imagem negativa dos árabes: entre outras coisas, acredita-se em Israel que os árabes não cumprem acordos. As declarações reiteradas de grupos radicais como o Hamas e o Hezbollah (do Líbano), apoiados pelo Irã, de que Israel não tem direito a existir, levam o povo israelense a temer a possibilidade de novos confrontos que visem à sua destruição. Essas declarações são utilizadas pela direita israelense para sustentar o medo de grande parte da população, que tem fundamentos históricos. O governo israelense explora essa tendência, estereotipando os árabes e, em particular, os palestinos, inclusive na educação escolar. Há estudos de pacifistas israelenses que evidenciam, nas cartilhas elementos, que levam a temer os povos árabes. Do lado palestino, ocorre algo semelhante: ensina-se desde a escola que os judeus são malignos. E a maior parte dos palestinos só conheceu judeus em uniformes militares.
E como esse medo pode ser vencido?
Primeiramente com informação. Muitos judeus desconhecem as mudanças que ocorreram nas últimas décadas, e mantêm impressões que tinham fundamento muito tempo atrás. Por exemplo, não é sabido que em 2002 a Liga Árabe, liderada pela Arábia Saudita, lançou a Iniciativa Árabe de Paz, oferecendo a Israel o reconhecimento de todos os países árabes em contrapartida ao fim da ocupação. Foi uma guinada histórica em relação à posição explícita de recusa ao Estado de Israel, representada pelos nãos da Conferência de Cartum, em 1968: “não ao reconhecimento, não ao diálogo, não á paz”. Além disso, a geopolítica mudou com a ascensão do Irã, que é temido pelos países árabes. Israel deixou há muito de ser visto como o inimigo principal, e dois países, Egito e Jordânia, já têm acordos bilaterais com Israel desde a década de 70.
Em segundo lugar, o conhecimento mútuo: há inúmeras iniciativas conjuntas de israelenses e palestinos para vencer o medo recíproco, através de ações culturais , especialmente na música e no cinema. A mais conhecida é uma orquestra sinfônica formada por jovens judeus e árabes, fundada por um dos maiores músicos israelenses, Daniel Barenboim, e pelo maior intelectual palestino, Edward Said, já falecido.
Em terceiro lugar, a ação política conjunta. Por exemplo, a ONG de direitos humanos nos territórios ocupados, B´Tselem, é formada por israelenses e palestinos, e é a mais importante no Oriente Médio. Muitos israelenses são também solidários em ações de resistência não-violenta à ocupação, como a ação retratada no filme “Budrus”.
A exposição recíproca dos dois povos tem contribuído para mudar a imagem que um tem do outro. É um processo que levará algumas gerações, e que um Estado Palestino reconhecido e que reconheça Israel contribuir para aprofundar.
Aqui há um papel importante que outros países poderão desempenhar: desenvolver o diálogo entre suas comunidades judaicas e as comunidades árabes, para que se conheçam e transmitam a seus amigos que vivem em Israel e na Palestina impressões que levem a superar os preconceitos. O Brasil é um país que conta com as melhores condições para desempenhar esse papel.
Por que o Estado Palestino não foi criado antes?
A identidade palestina era ainda pouco nítida quando a ONU aprovou, em 1947, a criação de dois estados, um judeu e um árabe, na terra então chamada Palestina. A região estava sob mandato britânico desde o fim do império otomano, derrotado na Primeira Guerra Mundial. O estado árabe então aprovado não chegou a se constituir. O estado de Israel, ao se constituir e declarar independência, foi atacado, em 1948, por exércitos de sete países árabes. Foi uma guerra cruenta, vencida por Israel, que ocupou parte dos territórios que tinham sido designados para o novo estado árabe. Dois países árabes tomaram a parte remanescente do que deveria constituir o novo estado: a Jordânia tomou a Cisjordânia e o Egito tomou a faixa de Gaza. O novo estado árabe, que seria um estado palestino, não foi então criado, e os palestinos passaram a ser um povo sem terra, disperso pelos países árabes e no resto do mundo.
Pode-se considerar que a luta por um Estado Palestino teve início apenas a partir de 1964, com a criação da Organização para a Libertação da Palestina (OLP). E somente em 1993, após a primeira Intifada – levante palestino nos territórios ocupados — tiveram início a negociação e conhecimento recíproco, com a solução Dois Estados para Dois Povos. Até então a OLP tinha em seu estatuto o objetivo de destruir Israel.
Quem teve culpa por essa demora?
Ambos os lados. Israel, por motivos alegadamente de segurança, adotou uma política habitacional para estender suas fronteiras. Essa política foi praticada por governos dos vários partidos, e minou a confiança dos palestinos no cumprimento do acordo de Oslo. Essa política habitacional tornou-se conveniente, pois permitiu atender à demanda de habitação para as novas ondas migratórias, especialmente a de mais de um milhão de judeus que não tinham podido até então sair da União Soviética, e que emigraram após a queda da URSS, em 1989.
Do lado palestino, a humilhação de viverem sob ocupação, com as várias violações de direitos humanos daí decorrentes, levou à radicalização de parte de sua população e ao início de uma série de atentados terroristas, que passaram a fustigar a população israelense, cujo medo passou a realimentar a ansiedade por mais segurança.
A atribuição de culpas a apenas um dos lados é uma forma simplista de entender um conflito complexo como esse, caracterizado por uma espiral de injustiças e violência que não têm uma única causa, a não ser a causa já remota, que se encontra na segunda década do século 20, quando ingleses e franceses dividiram entre si toda aquela região (Líbano e Síria para os franceses, Jordânia e Palestina para os ingleses), e praticaram a política de dividir para dominar, da mesma forma que os ingleses fizeram na Índia, onde o conflito explodiu na mesma época, após a Segunda Guerra Mundial.
Mas não há como resolver?
A solução já passou por várias etapas, e pode estar muito próxima. Ambos os lados estão cansados de conflitos, e a cada ano é aparentemente menor a quantidade de pessoas em ambos os lados que favorecem a intransigência. Os jovens de ambos os lados desejam vidas normais. O ressentimento mútuo é alimentado pela opressão da ocupação e pelas reações terroristas. Hoje pode-se dizer que há maior conflito interno em cada um dos lados do que o conflito que os separa. Em Israel, os radicais que estão no atual governo, que foram reforçados pela imigração russa, tendem a dar lugar para governos mais moderados (e pode ser que o impasse na ONU provoque um rearranjo na coalizão de poder). Na Palestina, os radicais (não só no partido religioso Hamas mas também em facções seculares) também perdem espaço para aqueles que optaram pela resistência não-violenta.
Pode ser que incidentes provocados por radicais de algum dos lados acabem provocando uma nova espiral de violência, ou mesmo uma guerra. A criação do Estado Palestino é o caminho para ambos os lados poderem escapar disso e passarem a oferecer vida normal para seus cidadãos.
Tudo já foi discutido, e o que ambos os lados precisam encontrar agora são saídas honrosas para poder prosseguir nas negociações dos detalhes. O maior problema de cada um está no front interno. Em Israel, o governo de direita, que inclui um segmento claramente fascista — mas já contestado, como vimos, nas manifestações sociais pela recuperação do estado de bem estar social, destruído com políticas neoliberais. Na Palestina, a disputa de poder entre o partido nacionalista Fatah e o partido religioso Hamas.
A exigência mais forte dos palestinos é a criação do seu Estado com continuidade territorial, pois a expansão dos assentamentos israelenses penetrou fundo nos territórios ocupados, com estradas protegidas e que os árabes não podem utilizar, criando uma situação que pode ser chamada de apartheid (nos territórios ocupados, não em Israel, como muitos imaginam acontecer). Os palestinos querem que seu estado não seja um conjunto de áreas separadas por estradas israelenses. Por isso, exigem as fronteiras anteriores a 1967. Mesmo assim, a separação entre a Cisjordânia e a Faixa de Gaza é impossível de contornar, a não ser através de uma autoestrada que passe por território israelense.
O que os israelenses mais exigem?
Os israelenses precisam minimizar a transferência para Israel dos israelenses que hoje residem nas terras que serão devolvidas. É uma população de 300 mil pessoas, o que envolve um esforço muito grande, que Israel não poderá fazer em tempo curto. Israel quer minimizar esse número para cerca de 100 mil, e isso depende do traçado das fronteiras que separarão os dois Estados. Eles sabem que não conseguirão manter Jerusalém unificada, mas os interesses da especulação imobiliária continuam produzindo novas construções nessa área. Serão negociações detalhistas, pois no atacado as grandes questões já foram tratadas.
Porém, o ponto que mais divide a sociedade israelense hoje é a suposta necessidade de uma garantia formal de que Israel seja aceito como um Estado judeu. Isso implicaria o abandono explícito do chamado direito de retorno dos refugiados palestinos, posição que a Autoridade Palestina não pode assumir de direito, pois os setores radicais interessados em derrubar os moderados insuflariam uma revolta popular que desestabilizaria as conquistas já alcançadas pelos palestinos. É o principal nó da questão, do qual Netanyahu não abre mão, mas no qual a maior parte da sociedade israelense acredita que deva haver flexibilidade.
E o tal do sionismo, o que é?
O sionismo é a ideologia que levou à criação do Estado de Israel, e que preconiza que ele seja um Estado seguro para todo o povo judeu espalhado pelo mundo. Foi uma resposta dada no final do século 19 à história de dois milênios em que os judeus raramente tiveram direitos iguais aos de seus vizinhos, nos países que habitavam. Todos os judeus gozam do “direito ao retorno” para Israel. O sionismo não é inerentemente expansionista nem antiárabe. Se Israel fosse apenas a cidade de Telaviv, o sionismo se praticaria com o direito de retorno a esse outro Israel. Muitos confundem isso com a opressão que Israel exerce hoje sobre os palestinos, seja na ocupação da Cisjordãnia ou no bloqueio à faixa de Gaza. Essa opressão é reconhecida e combatida também por pessoas que se consideram sionistas (usa-se o termo “sionismo de esquerda”, que está também associado à busca de uma sociedade israelense igualitária).
O fim da ocupação e a criação do Estado Palestino são uma condição imprescindível para que o sionismo seja reconhecido mundialmente como um nacionalismo semelhante a diversos outros, que resultaram em estados nacionais hoje considerados normais, a exemplo da Alemanha e da Itália. São condição para que Israel deixe de ser estigmatizado como um país opressor e violador do direito internacional, e seja reconhecido como um país normal e pelas contribuições que tem dado para o desenvolvimento social, cultural, científico e tecnológico da humanidade, fortalecido pela economia do seu vizinho Estado Palestino. Já há muita cooperação entre as sociedades israelense e palestina — por exemplo, na área da saúde — e as oportunidades de desenvolvimento conjunto são imensas. Faz parte do documento Iniciativa Israelense de Paz, produzido por lideranças civis e militares israelenses fora do governo, a proposta de um desenvolvimento regional integrado.
Talvez Netanyahu não seja capaz de dar o passo de estadista para que esse potencial se viabilize (leia um artigo que reflete o pensamento da oposição israelense). Se não for, a plasticidade da democracia israelense permite prever que essa coalizão de direita comandada por Netanyahu poderá ser substituída, por novos arranjos entre os partidos ou em novas eleições, por um governo mais inteligente e mais flexível. Neste momento alguns passos têm que ser dados para que todos saiam da ONU com boas respostas para seus públicos internos. E a história continua… Outro Israel é possível…
* Sérgio Storch é consultor em Planejamento, ativista de diversas causas ligadas à transformação social. Escreve, em Outras Palavras, a coluna Outro Israel é Possível.
Fonte: www.outraspalavras.net
segunda-feira, 3 de outubro de 2011
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