Palestinos. Impessoas. Livres!Ao analisar troca de prisioneiros Hamas-Israel, Noam Chomsky sustenta: elites ocidentais e mídia tratam 3/5 do planeta como sub-humanos
Depoimento a Amy Goodman, do Democracy Now | Tradução: Antonio Martins
Noam Chomsky, professor emérito do Massachussets Institute of Technology (MIT), linguista mundialmente renomado e ativista politico, falou segunda-feira (17/10) à noite no Barnard College, em Nova York, sobre o conflito entre Israel e Palestina. Poucas horas antes, as duas partes haviam completado uma troca histórica de prisioneiros. O soldado israelense Gilad Shalit voltou para casa, depois de cinco anos no cativeiro em Gaza. Em contrapartida, Israel libertou 477 prisioneiros palestinos. Outros 550 estarão livres em dois meses. Quarenta dos prisioneiros serão deportados para Síria, Qatar, Turquia e Jordânia. Na terça-feira (18/10), houve celebração gigantesca em Gaza (foto). Grupos de apoio aos palestinos aprisionados frisam que mais de 4 mil permanecem no cárcere em Israel.
Horas antes de sua conferência, Chomsky foi entrevistado por Amy Goodman, do site “Democracy Now”. “Penso que o soldado israelense Gilad Shalit deveria ter sido libertado muito tempo atrás”, disse ele. Mas provocou: “Falta algo nesta história. Não há imagens das mulheres palestinas e nenhuma discussão sobre a história dos palestinos libertados. De onde eles vêm?”
Para explicar este ocultamento, Chomsky usou um neologismo poderoso e terrível: impessoas. A legislação dos Estados Unidos e da maior parte dos países ocidentais conserva princípios jurídicos democráticos. Porém, para ele, três décadas de retrocessos políticos e culturais reinstituíram uma forma ideológica de racismo que era comum no período da caça aos índios, ou da escravidão. É como se a parte não-branca da humanidade estivesse excluída dos das garantias civis, por ser sub-humana. Este retrocesso explicaria, por exemplo, a campanha de execuções praticada por Washington, em várias partes do mundo, por meio de aviões não-tripulados. E tornaria ainda mais indispensável a onda de rebeldia “contra políticos e banqueiros”, que se espalha precisamente nos países onde o retrocesso é mais grave. Ou mesmo vitórias parciais, como a libertação dos 477 prisioneiros palestinos e do soldado Gilad Shalit.
Leia, a seguir, a fala de Chomsky a “Democracy Now” – que inclui, quase ao final, curiosa menção ao Brasil….
Há cerca de uma semana, o New York Times publicou uma matéria intitulada “O Ocidente celebra a morte de um clérigo”. Era Anwar al-Awlaki, morto por um avião não-tripulado (drone). Não foi apenas morte: foi assassinato, e outro passo a mais na campanha global de assassinatos do governo Obama, que está quebrando recordes em matéria de terrorismo internacional.
Bem, nem todo o Ocidente celebrou. Houve alguns críticos. Quase todos criticam a ação pelo fato de Awlaki ser um cidadão norte-americano. Ou seja, ele era uma pessoa, ao contrário de suspeitos que são assassinados intencionalmente ou por “dano colateral”. Significa que os tratamos como formigas em que se pisa quando se anda pela rua. Não são cidadãos norte-americanos – portanto, são impessoas, e podem ser livremente mortos.
Alguns lembrarão – se tiverem boa memória – que havia um conceito jurídico anglo-saxão chamado “presunção de inocência”. Todos éramos inocentes até prova em contrário em juízo. Ele está tão mergulhado na história que é quase impossível resgatá-lo – mas de fato, existiu. Alguns dos críticos ao assassinato lembraram a Quinta Emenda à Constituição norte-americana, segundo a qual nenhuma pessoa – “pessoa”, atentem – será privada da vida, liberdade ou propriedade sem o devido processo legal. Bem, é claro que nunca se pretendeu aplicar a emenda a impessoas.
E há impessoas de diversas categorias, Em primeiro lugar, a população indígena, seja nos territórios já então possuídos ou nos seria conquistados depois. O princípio não se aplicava a eles. E, é claro, não valeu para os negros e não-brancos, que constituem três quintos da população do planeta.Esta segunda categoria de impessoas foi, em tese, promovida pela 14ª Emenda. Essencialmente com as mesmas palavras da Quinta Emenda, ela passava a incluir os antigos escravos negros. Bem, ao menos em teoria. Na prática, quase não aconteceu. Depois de aproximadamente dez anos, os três quintos da espécie foram reconduzidos à categoria de impessoas pela criminalização segregacionista da vida negra. Em essência, ela restabeleceu a escravidão – talvez em condições até piores – e estendeu-se até a Segunda Guerra Mundial. E está sendo reinstituída agora, depois de trinta anos de severo retrocesso moral e social nos Estados Unidos.
Bem, a 14ª Emenda está sendo vista agora como problemática. O conceito de pessoa era ao mesmo tempo muito amplo e muito estreito. As cortes trabalharam para superar ambos os problemas. O conceito de pessoa foi ampliado para incluir ficções legais, criadas e conservadas pelo Estado, que são chamadas de corporações; e foi estreitado para excluir alienígenas indocumentados. Isso vem até o presente: casos recentes da Suprema Corte deixa claro que as corporações não apenas são pessoas, mas pessoas com direitos bem superiores às de carne e osso: um tipo de superpessoas. Os mal-chamados “acordos de livre comércio” deram-lhes direitos assombrosos. E, é claro, a Suprema Corte acrescentou alguns.
Mas a necessidade crucial era assegurar que a categoria de impessoas incluísse os que escaparam dos horrores que criamos na América Central e México, e tentam chegar aqui. Eles não são pessoas, são impessoas. Isso inclui, é claro, os estrangeiros, especialmente se acusados do terror . É, aliás, um conceito que passou por uma transformação interessantíssima desde 1981, quando Ronald Reagan chegou ao governo e declarou a guerra global ao terror – GWOT, na terminologia fantasiosa de hoje. Não vou me aprofundar no assunto, exceto para um breve comentário sobre como o termo é usado atualmente, quase de modo imperceptível.
Tomemos, por exemplo, Omar Khadr. É um garoto de quinze anos, um canadense. Foi acusado de um crime muito severo – ou seja, a tentativa de defender seu povoado no Afganistão contra invasores norte-americanos. É, óbvio, um crime grave praticado por um terrorista perigoso. Por isso, Omar foi enviado primeiro para a prisão secreta de Bagram, depois para Guntánamo, por oito anos. Foi considerado culpado de alguns crimes. Todos sabemos o que isso significa. Quem quiser, pode obter alguns detalhes na própria Wikipedia – ou mais, em outras fontes.
Omar declarou-se culpado de alguns crimes e foi condenado a mais oito anos. Poderiam ser mais – até trinta – se não tivesse confessado a culpa. Afinal de contas, é um crime grave. Como ele é canadense, o país poderia requerer sua extradição. Mas recuou, com a coragem que lhe é peculiar. Não querem ofender o chefe, compreensivelmente.
Bem, o crime de resistência à agressão não é uma nova categoria de terrorismo. Talvez alguns de vocês sejam velhos o suficiente para lembrar do slogan “terror contra o terror”, que foi usado pela Gestapo, e que nós recuperamos. Nada disso desperta interesse, porque todas as vítimas pertencem à categoria de impessoas.
Para voltar a nosso assunto, o conceito de impessoas é central no debate desta noite. Os judeus israelenses são pessoas; os palestinos, impessoas. E muitas consequências emergem daí, como se vê frequentemente. Tenho comigo um clipping do New York Times. Matéria de capa de quarta-feira, 12 de Outubro: “Acordo com Hamas libertará israelenses preso desde 2006”. É Gilad Shalit. E bem próxima à matéria, uma imagem de quatro mulheres quase em agonia pela sorte de Gilad. “Amigos e apoiadores da família do sargento Gilad Shalit recebem informação sobre o acordo, na tenda de protesto da família, em Jerusalém”, é a legenda.
É compreensível. Penso que o soldado deveria ter sido libertado há muito tempo. Mas falta algo em toda esta história. Não há imagens das mulheres palestinas, nem discussão alguma sobre a história dos palestinos que serão libertados. De onde vêm?
Haveria muito a dizer sobre isso. Não sabemos, por exemplo – ao menos, não consegui ler no NYTimes – se a libertação inclui os palestinos – as autoridades palestinas eleitas – que foram sequestradas e aprisionadas por Israel em 2007, quando os Estados Unidos, a União Europeia e Israel decidiram dissolver o único parlamento eleito livremente no mundo árabe. A este gesto, chamou-se “promoção da democracia”.
Não sei o que aconteceu com eles. Há mais gente mantida na prisão exatamente há tanto tempo quanto Gilad Shalit – na verdade, um dia a mais. Na véspera da captura do soldado, na fronteira, as tropas de Israel entraram em Gaza, sequestraram dois irmãos – os irmãos Muamar – e fizeram-nos atravessar a fronteira, evidentemente numa violação às Convenções de Genebra. Eles desapareceram no sistema prisional de Israel. Eu não tenho a mínima ideia sobre o que lhes aconteceu: nunca li uma palavra sobre isso. Tanto quanto eu saiba, ninguém se importa, o que é compreensível. Afinal de contas, impessoas.
O que quer que pensemos sobre a captura do soldado – um membro de um exército agressor –, o sequestro de civis é um crime muito mais severo. Mas apenas se fossem pessoas. O assunto realmente não tem importância. Não é que seja ignorado. Você consulta os jornais do dia seguinte à captura dos irmãos Muamar e lê algumas linhas, aqui e ali. Mas é insignificante, claro – o que faz algum sentido, já que há milhares de palestinos nas prisões israelenses, muitos sem acusação.
Além disso, há o sistema de prisões secretas — como a Facility 1391, se você quiser pesquisar na internet. É uma prisão secreta, ou seja, certamente uma câmara de torturas, em Israel. Quando foi descoberta, houve vasta reportagem no país, assim como na Inglaterra e no resto da Europa. Mas não vi uma linha nos Estados Unidos, ao menos nos meios que as pessoas leem mais frequentemente. Escrevi sobre o tema, assim como alguns outros. Mas são, outra vez, impessoas, e naturalmente ninguém se importa. O racismo é tão profundo que se converte em algo como o ar que respiramos: não o notamos, ele permeia tudo.
O título da fala de hoje [Os Estados Unidos e Israel-Palestina: Guerra e Paz] tem certa ambiguidade. Poderia ser interpretado, erroneamente, como algo que confirma a imagem convencional das negociações. Os Estados Unidos interessados aqui, e duas forças recalcitrantes lá. Os EUA como um jogador sereno, tentando reunir dois grupos militantes e difíceis, que não parecem capazes de falar um com o outro. É uma versão inteiramente falsa. Se houvesse alguma negociação séria, ela seria organizada por uma parte neutra – talvez, o Brasil. De um lado, teríamos os Estados Unidos e Israel. De outro, o mundo. É rigorosamente verdadeiro. Mas é uma destas coisas infaláveis.
Fonte: http://www.outraspalavras.net/
quinta-feira, 20 de outubro de 2011
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