Anonymous: a ética da ação digital diretaPolícia norte-americana detém hackers mesmo reconhecendo que não cometeram crimes. Pode ser grave ameaça à liberdade e direito de protesto
O movimento político conhecido como Anonymous conseguiu capturar a atenção da imprensa, os corações de muitos apoiadores e a ira de muitos espectadores, depois de oito meses de intervenções políticas, que vão de campanhas de ataques DDoS (Distributed Denial of Service) e garantir assistência técnica a grupos de direitos humanos na Tunísia, até ataques mais recentes de hacking sob o codinome de Operation Antisec.
Agora, o estado entrou completamente na disputa, também ele em surto de hiperatividade. Mês passado [agosto de 2011], 22 supostos participantes do movimento foram presos nos EUA e na Grã-Bretanha, 14 deles na investigação de uma única operação: a espetacular onda de ataques DDoS orientados diretamente para protestar contra atos das empresas Mastercard e Paypal em dezembro de 2010. Os ataques foram deflagrados depois que aquelas empresas recusaram-se a aceitar doações para o principal animador de Wikileaks, Julian Assange. Os hackers e ativistas que apoiaram a campanha de ataques DDoS (e nem todos os Anonymous apóiam a campanha) veem o ato como legítima atividade de protesto, semelhante a ocupar uma calçada ou uma rua, como uma “ocupação digital”. Se forem condenados, os supostos Anonymous que foram presos podem ter de cumprir longas penas de prisão.
Dia 20/7/2011, um dia depois das prisões nos EUA, agentes do FBI deixaram escapar uma rara explicação para as prisões; falaram da necessidade de matar o caos, ainda na semente: “queremos deixar bem claro que o caos na internet é inadmissível” – disse Steven Chabinsky, vice-diretor do FBI.
Embora a maioria das prisões estivessem associadas à campanha de ataques DDoS, o agente do FBI não deu qualquer sinal de conhecer a diferença entre o hacking e os ataques DDoS. “Hacking” implica invadir computadores ou sistemas protegidos. Um ataque DDoS é ação na qual vários computadores passam a bombardear um servidor com pedidos de acesso, até derrubá-lo por sobrecarga. Estranhamente, o mesmo agente do FBI não disse, dos supostos Anonymous presos, que seriam criminosos, terroristas ou espiões.
Quando prende Anonymous (também chamados individualmente Anons) e rotula como crimes as suas práticas, mesmo sem que haja lei que defina aquelas práticas como crimes, o FBI dá sinais de reconhecer, embora por via oblíqua, que a caça aos Anons é politicamente motivada. O FBI também dá sinais de reconhecer que o caso dos Anons não se compara aos de terroristas ou criminosos — que o Estado tem pleno direito e legitimidade de prender e processar, havendo provas que comprovem as acusações, porque violam a lei e a norma social, .
De fato, o FBI dá sinais de reconhecer que os Anons apenas exercem seus direitos de cidadãos e manifestam-se a favor de causas nas quais acreditam: “Embora se possa crer que os hackers defendem causas sociais, é absolutamente inaceitável que invadam páginas na Internet e pratiquem atos ilegais. Não se constatou qualquer indício de que usem o hacking para destruir páginas na internet, mas o que fazem pode atrair a atenção de criminosos e terroristas. Por isso, o ‘hackativismo’, embora seja visto por alguns como simples incômodo sem consequências, mostra alto potencial de desestabilização” – insistiu Steve Chabinsky, chefe do cyber-departamento do FBI, em linguajar no qual se ouvem ecos das críticas que se faziam nos anos 1960s contra os movimentos sociais.
Claro que essas declarações não podem ser tomadas como a voz do Estado, nem como sua palavra final sobre os Anonymous. Mas interessam, porque são indício claro de um fato social novo: os Anonymous vão, paulatinamente, ganhando destaque nos movimentos de protesto social. Muitas de suas ações são politicamente motivadas e conscientes. A campanha de dezembro de 2010, de ataques DDoS, que recebeu o nome de “Operação Vingar Assange”, não foi exceção.
As campanhas DDoS podem ser táticas legítimas
Concorde-se ou não com todas as táticas que os Anonymous usam – algumas ilegais, outras de colaboração e ajuda pacíficas à defesa legal de direitos humanos, outras, ainda no limbo, numa zona cinzenta que separa o legal do ilegal e o moral do imoral – sob determinadas circunstâncias os ataques DDoS podem ser vistos como protesto não violento, perfeitamente alinhados entre outros protocolos reconhecidos de manifestação pública de massa; diferentes nos dois casos, só, os meios de agir. Claro que, como acontece também nas assembleias presenciais, muitos Anons apenas se deixam levar, seguindo a onda. Outros, sim, podem ter comportamento absolutamente inconveniente.
Mas esse é traço inevitável da plataforma dos Anonymous, aberta tanto para ativistas experientes quanto para os mais neófitos. Alguns Anons estão, pela primeira vez na vida, experimentando o sabor da militância pública, acompanhando os “irmãos” Anons; e forjando a própria consciência política individual. No caso dos Anonymous, ela já nasce na prática de uma robusta democracia em ação. Sobretudo, depois de organizarem campanhas de apoio aos levantes populares no Oriente Médio e na África e participaram da derrubada de ditadores que ocuparam o poder por muitas décadas.
Apesar da ambiguidade do FBI — que não denuncia explicitamente a prática dos Anonymous como ameaça criminosa — a ação de prendê-los e de criminalizar suas táticas já é abordagem de segurança e controle que exige atenção crítica, sobretudo se alguma dessas prisões levar a acusações e julgamentos formais.
Há vários modos de ver a campanha de ataques DDoS contra as empresas PayPal e Mastercard. Um deles é defini-la como ação digital direta.
Brotado organicamente da prática social, esse movimento não esperou que algum juiz, algum político, nem algum especialista, nem algum jornalista o declarasse legal ou moral. Os cidadãos tomaram o problema nas próprias mãos. Em menos de 24 horas, uma vasta assembleia de cidadãos ocuparam, não as calçadas – tradicional cenário dos protestos sociais –, mas a ágora digital. E ali agiram, auto-organizados, para manifestar sua opinião sobre um questão. Assim, agiram diretamente contra outros atores sociais que, na avaliação dos cidadãos reunidos, não estavam agindo com justiça. Se aconteceu de ferirem alguma lei, a lei – e por boas razões – também foi considerada injusta.
Como em todas as tradições, a ação direta é variada e diversa nas propostas, na organização, na história e nos objetivos. Em outras ocasiões, os ativistas Anonymous trabalham para bloquear acessos para proteger algum recurso que consideram valioso, como aconteceu no bloqueio da linha Pacific Northwest para preservar as árvores; ou no bloqueio de navios baleeiros japoneses, no caso do Sea Shepherd [ler, em Outras Palavras, "Sea Shepherd, a guerrilha do mar"]. Na longa tradição de converter espadas em arados[1], a intenção pode ser atrair a atenção da polícia e deixar-se prender, para atrair a atenção pública sobre alguma questão. Os Anonymous derrubaram e tornaram inoperantes as páginas internet das empresas Mastercard e Paypal por vários dias, porque inundaram os servidores com quantidade gigantesca de pedidos de acesso; fizeram o que fizeram para chamar a atenção da imprensa, para dar visibilidade à sua plataforma política, e para exigir que Assange recebesse julgamento legal e justo. Nesse sentido, foram bem sucedidos, independente de qualquer sentença que os envolvidos venham a receber.
O que, porém, tornou excepcionais e extraordinários os eventos de dezembro de 2010, foi que acabaram por demarcar um momento em que a ação direta surgiu numa via diferente da prevista pelas teorias dominantes da desobediência civil. Até então, praticamente todos os atos de desobediência civil mais notáveis — mesmo os que usaram a internet — haviam sido organizados por pequenos grupos de afinidade, cujos participantes têm bem claras as possíveis consequências legais de seus atos. Tradicionalmente, aqueles militantes já saem de casa com o número do telefone do advogado escrito com tinta à prova d’água, no braço.
Quanto aos Anonymous, que se orgulham de não ter identidade “física” facilmente comprovada ou localizável e de não terem forma nem pessoal nem empresarial, essas táticas de proteção não seriam eficazes. Por isso, em dezembro, enquanto os ataques estavam em andamento, vivi colada ao computador, tentando ver como os Anons conseguiriam – se conseguissem – controlar o risco e o caos que, em certa medida, caracterizam aquele tipo de interação. De fato, “a inteligência do enxame” – que é como os Anonymous falam deles mesmos – em momento algum perdeu o controle da ação. Mantiveram fixos contra os alvos, em ataques massivos, e entremearam os ataques com vídeos e manifestos nos quais explicavam o que estavam fazendo e por que faziam.
Mas, já naquele momento, simpatizantes e opositores viam e repetiam uma mesma observação: muitos participantes não tinham qualquer ideia clara do risco que enfrentavam, opondo-se a lei. E não tinham à mão qualquer telefone de advogado ao qual recorrer numa emergência, mais altamente provável a cada minuto que passava.
Os eventos espetaculares de dezembro de 2010, combinados com as recentes prisões de Anons, evidentemente mudaram tudo isso; muitos de nós já nos informamos atentamente sobre riscos. Os riscos legais e as sutilezas filosóficas dos ataques DDoS considerados como tática de ação direta já não são questão e problema exclusivo de um pequeno círculo de ativistas que praticam e teorizam, na tradição da ação direta, já há uma década. Hoje, um número muito maior de cidadãos já abraçaram a mesma tática.
Mas à luz da recente prisão de Anons, discutir se campanhas de ataques DDoS são sempre arma política eficaz a ser usada ou não (e há bons argumentos a favor dos dois lados) não é a questão básica que mais nos deve ocupar. A questão central agora é o critério usado para decidir quem está envolvido e para determinar se os envolvidos devem ou não ser acusados. Em outras palavras, a questão central é o critério usado para determinar se há crime, ou não, nas ações dos Anonymous. Se se considera que um ataque DDoS seja ação sempre inaceitável, em todas as circunstâncias – definido como tática que só semeia o caos –, essa ideia resultará, em pouco tempo, em penalizações indiscriminadas e excessivas; no longo prazo, essa criminalização generalizada poderá paralisar todos os tipos de iniciativas semelhantes, em toda a internet.
Isso acabará tendo efeitos sobre toda a cultura política da internet, que deve permitir que floresça a máxima diversidade de táticas, inclusive as táticas de ação coletiva, de ação direta e de manifestação pacífica de opiniões – ou a internet deixará de ser instrumento para a democratização das lutas políticas e da própria vida.
Al-Jazeera | Tradução Vila Vudu
Fonte: http://www.outraspalavras.net/
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