Reformas e esquerda em Cuba. Um olhar sobre o presente
A esquerda cubana “do século XXI” terá de assumir a defesa dos numerosos perdedores que as reformas trarão e que se somarão aos milhares de trabalhadores e localidades do país já empobrecidos nas últimas duas décadas. Por Armando Chaguaceda
Nestes dias em que o sítio Havanatimes está publicando fragmentos do sugestivo (e seguramente imprescindível) livro de Sam Farber sobre a revolução cubana, temos, vários amigos – residentes na Ilha e na diáspora –, trocado ideias sobre o rumo das reformas em Cuba. Temos debatido sobre a(s) posição(ões) que, face a elas, deveria assumir quem se reclame de esquerda, afastando-se simultaneamente do socialismo de Estado vigente na Ilha e da proposta neoliberal. Estas “notas” nascem a partir dessa troca de ideias.
Neste diálogo descobrimos que as visões parciais ou polarizadas não permitem captar a essência das mudanças em curso. Alguns analistas apresentam estas reformas como uma mera continuação, maquilhada, do modelo económico e político que regeu, pelo passado meio século, a vida dos cubanos. Outros, explicam-na como uma mutação transcendental, uma espécie de Revolução na Revolução, onde “líderes e massas” marcham em perfeita sintonia de velocidade, horizontes e interesses. Uns ignoram, ao defender a ideia de equidade, os graves problemas do modelo ainda vigente que tornam insustentáveis – sem subsídios externos – as modalidades conhecidas de certas políticas sociais; outros abraçam – com entusiasmo adolescente – os novos ares de mudança ignorando que assistimos a uma reformulação da hegemonia estatal sem as correspondentes ampliações de direitos e participação dos cidadãos.O que tem acontecido desde 2008 é, na opinião deste colunista, uma lenta e ainda inacabada mutação do modelo clássico de socialismo de Estado para outro mais próximo do das experiências asiáticas. Neste último, o mercado amplia a sua presença sem que isso signifique uma diminuição drástica da capacidade do Estado (e da burocracia enquanto estamento que o controla) para impor a sua agenda em áreas-chave da esfera económica (como a grande indústria, os transportes e as comunicações), assim como noutras relacionadas com a informação, organização e ordem públicas em que a sua presença – que não a sua eficácia – é quase monopolista. Nas reformas em curso não está em discussão o tipo de regime político construído durante o meio século passado, pois assistimos mais a uma espécie de liberalização económica (com o seu correlato de ampliação de certos espaços de acção individual associados à esfera económica) que a uma democratização relevante e institucionalizada, pluralizadora da vida e dos actores políticos, que derrogue – de forma paulatina e relevante – a ordem sociopolítica autoritária vigente na Ilha.
A previsível ampliação de espaços de mercado – que dinamizem a produção e fornecimento de bens e serviços das pessoas face ao monopolismo asfixiante e ineficaz do Estado – é positiva, tanto para a sociedade como para o próprio Estado, uma vez que este poderia concentrar-se naquelas questões verdadeiramente estratégicas para o desenvolvimento nacional e fazê-lo melhor. Nesse sentido, a expansão de um sector de trabalho por conta própria, da pequena e média empresa privada (que, como sabemos, não são iguais ao contapropismo, apesar de em documentos e discursos oficiais as duas modalidades se nos apresentarem confundidas e indiferenciadas) e, sobretudo, do cooperativismo são passos importantes, que podem ser ligados às medidas tomadas – ou previsíveis – a partir da estratégia reformista em curso. Semelhantes iniciativas implicariam a expansão de uma espécie de “cidadania proprietária” – enquanto condição que respeita, não só à posse formal e efectiva de activos económicos, mas também de bens de uso pessoal e familiar – o que, creio, ligará mais as pessoas à sua terra e as comprometerá com lutar por um futuro dentro das fronteiras nacionais. Tudo isto, claro está, se o Estado as acompanhar de forma proactiva e não reprimir – como sucedeu nos anos 90 – as suas energias e iniciativas.Que o Governo de Raul Castro queira melhorar as condições de vida das pessoas, que deseje que se consuma mais e melhor e que se eliminem algumas restrições absurdas é algo, sem dúvida, de elogiar, que deve aliviar a sorte da população cubana. Mas isso não equivale a supor que (como fazem alguns defensores da reforma) as mudanças em curso ampliem o catálogo de liberdades e direitos activos e, sobretudo, que permitam converter em realidade o objectivo de Poder Popular, substância de um inexistente socialismo democrático e participativo. Significa que a ideia que subjaz a estas reformas é a de que um país com gente materialmente satisfeita é mais governável.
Uma ampliação da democracia não aparece no horizonte das actuais reformas, com a modesta ressalva para uma limitação de mandatos, filha do senso comum e dos conhecimentos da biologia. E quando, de uma perspectiva de esquerda, apostamos numa ampliação democrática não nos referimos ao modelo de democracia procedimental e minimalista que acompanhou a implementação do neoliberalismo na região. Podemos reinterpretar a democracia como uma desejável ampliação da incidência e cogestão da sociedade organizada (e dos cidadãos como indivíduos portadores de deveres e direitos), que acompanha um Estado Providência, na defesa e promoção do público e de todos os direitos das pessoas. Democracia que rejeita as “soluções” mercantilizadoras e autoritárias que se oferecem – como cantos de sereia – aos problemas do desenvolvimento e da ordem social nas condições da periferia terceiromundista.
Qualquer estratégia de esquerda, perante o processo de reformas na Cuba actual, deve insistir na defesa das chamadas “conquistas da Revolução” – que não são outra coisa senão o fruto do trabalho e sacrifício do povo a despeito das trapalhadas e caprichos burocráticos - sob a forma de exigências concretas de uma educação, saúde e segurança públicas, universais e de qualidade. Que cada criança – seja de Miramar ou de Palma Soriano – tenha garantido um bom professor e condições materiais para educar-se, como teve a minha geração, sem que a política educativa dependa de “Planos Emergentes” carentes de retroalimentação ou de insensíveis condicionamentos pressuponentes do Fundo Monetário Internacional. Que as mulheres tenham garantido o direito a decidir sobre o seu corpo, sem ver criminalizada a sua decisão por poderes seculares ou eclesiásticos. Que os profissionais da saúde aufiram um rendimento decente, sem ver-se tentados a emigrar para países do Norte, a alistar-se em Missões Internacionais ou a vender, de forma ilegal, os seus serviços aos compatriotas, como forma de obter recursos que lhes permitam adquirir meios de vida e bens de consumo. E quando a Libreta – esse símbolo da “pobreza planificada” – desaparecer, por decreto ou morte natural, que seja apenas porque os trabalhadores podem ver feita realidade a máxima socialista que reza ”de cada um segundo a sua capacidade, a cada um segundo o seu trabalho”.Ao mesmo tempo, temos, nós os socialistas, de acompanhar as reformas actuais com outras propostas operativas e concretas de políticas de transparência, prestação de contas e participação das pessoas na tomada de decisões a todos os níveis e na constituição de sujeitos económicos e políticos – comunitários, cooperativos e associativos – alternativos, tanto à ordem vigente, como aos encantamentos neoliberais. Para tornar tais iniciativas concretas e sustentáveis haverá, sem dúvida, que lançar mão não só do acervo próprio, mas também ter em conta – sem que isso equivalha a diluir essências – as melhores propostas do pensamento demoliberal, do socialismo democrático, do cristianismo social e dos movimentos populares, para apenas mencionar algumas das correntes que pululam, activas, pela região e pelo mundo. E também dialogar, com respeito mútuo e sem exclusões nem mimetismos, com os seus expoentes na Ilha, pois só a comunicação e a solidariedade entre os “sem poder” permitirá uma compreensão dos verdadeiros horizontes, semelhanças e diferenças entre as nossas agendas, impedindo a sua manipulação por todos os governos e poderes fácticos (empresariais, mediáticos e religiosos) envolvidos na “questão cubana”. [1]
Simultaneamente, a esquerda cubana “do século XXI” terá de assumir a defesa dos numerosos perdedores que as reformas trarão e que se somarão aos milhares de trabalhadores e localidades do país já empobrecidos nas últimas duas décadas. Por último – mas não por isso menos importante – é inevitável incorporar nos nossos discursos e acções problemáticas pouco assumidas pelo nosso legado ideológico e organizativo, tais como a dos Direitos Humanos (que não podem ser administrados ou limitados a despeito da sua universalidade e integralidade) e a da expansão de identidades particulares – de género, raciais, socioambientais e contraculturais –, que não encontram lugar no modelo de socialismo estatista nem nas derivas para as previsíveis formas de mercantilismo autoritário e inserção subordinada (típico de república das bananas) que nos reservam o mercado global. Seguramente esta não é uma agenda que reconforte nem capos, nem messias, nem mercadores, mas pode servir de bússola para conduzir algo de digno de chamar-se esquerda por melhores rumos, dando direcção ao futuro da nação.
Nota
[1] Um exemplo deste diálogo sem exclusões nem mimetismos é constituído pelo Festival Poesia Sin Fin e pela Feria de Proyectos Alternativos, que actualmente tem lugar em Havana sob a convocatória do colectivo OMNI-Zonafranca.
Artigo originalmente publicado em:
http://www.cubaencuentro.com/opinion/articulos/reformas-e-izquierda-en-cuba-miradas-al-presente-271636
Tradução: Passa Palavra
Fonte: http://passapalavra.info/
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