Porque os Estados pagam 600 vezes mais que os bancos?Cobrar taxas de juro colossais sobre dívidas acumuladas há cinco ou dez anos não é uma maneira de responsabilizar os governos mas de asfixiar as economias em proveito único dos bancos privados
Depois de ter esmiuçado 20 mil páginas de vários documentos, a Bloomberg demonstrou que o Banco Central dos Estados Unidos emprestou secretamente aos bancos em dificuldades a soma de 1,2 biliões de dólares à taxa incrivelmente baixa de 0.01 por cento.
Na mesma altura, em muitos países, os povos sofrem com os planos de austeridade impostos pelos governos aos quais os mercados financeiros se recusam a emprestar alguns bilhões e taxas de juro inferiores a seis, sete ou nove por cento! Asfixiados por estas taxas de juro, os governos são “obrigados” a congelar as reformas, os subsídios às famílias ou os salários dos funcionários e a cortar nos investimentos, o que faz aumentar o desemprego e vai fazer-nos mergulhar em breve numa recessão muito grave.
Será normal que, em situação de crise, os bancos privados, que se financiam habitualmente a um por cento nos bancos centrais, possam beneficiar de taxas de 0,01 por cento e que, em situação de crise, alguns Estados sejam obrigados, pelo contrário, a pagar taxas 600 ou 800 vezes mais elevadas? “Ser governado pelo dinheiro organizado é tão perigoso como pelo dinheiro organizado”, dizia Roosevelt. E tinha razão. Estamos à beira de viver uma crise do capitalismo desregulado, o que pode ser suicida para a nossa civilização. Como escreveram Edgar Morin e Stéphane Hessel no Le Chemin de l´espérance, O Caminho da Esperança (Fayard, 2011), as nossas sociedades têm que escolher: a metamorfose ou a morte?
Vamos esperar que seja tarde demais para abrir os olhos? Vamos esperar que seja tarde demais para compreender a gravidade da situação e escolher em conjunto a metamorfose antes que as nossas sociedades desabem? Não temos condições neste espaço para desenvolver as dez ou 15 reformas concretas que tornariam possível essa metamorfose. Queremos apenas mostrar que é impossível não dar razão a Paul Krugman quando nos explica que a Europa adoece numa “espiral da morte”. Como fornecer oxigênio às finanças públicas? Como agir sem alterar os tratados, o que exige meses de trabalho e se tornará impossível se a Europa for cada vez mais detestada pelos povos?
Angela Merkel tem razão quando diz que não devem encorajar-se os governos a continuar a fugir para a frente. Mas o essencial dos empréstimos que os nossos Estados contraem nos mercados financeiros deve-se a dívidas antigas. Em 2012 a França deve contrair empréstimos à volta de 400 bilhões de euros: 100 bilhões que correspondem ao déficit do orçamento (que seria quase nulo se fossem anuladas as baixas de impostos concedidas nos últimos dez anos) e 300 bilhões que correspondem a dívidas antigas, que chegam ao prazo de vencimento e que somos incapazes de reembolsar se não nos voltarmos a endividar nos mesmos valores algumas horas antes do reembolso.
Fazer pagar taxas de juro colossais sobre dívidas acumuladas há cinco ou dez anos não é uma maneira de responsabilizar os governos mas sim de asfixiar as nossas economias em proveito único dos bancos privados: sob o pretexto de que existe um risco, eles emprestam a taxas muito elevadas não tendo dúvidas, de fato, de que não existe qualquer risco real porque o Fundo Europeu de Estabilidade Financeira (FEEF) existe para garantir a solvência dos Estados que contraem empréstimos…
É preciso acabar com a atitude de dois pesos e duas medidas: inspirando-nos no que fez o Banco Central norte-americano para salvar o sistema financeiro propomos que as “velhas dívidas” dos Estados possam ser refinanciadas a taxas próximas de zero por cento.
Não é preciso modificar os tratados europeus para pôr esta medida em prática: é verdade que o Banco Central Europeu (BCE) não está autorizado a fazer empréstimos aos Estados membros, mas pode emprestar sem limites aos organismos públicos de crédito (artigo 21.3 do Sistema Europeu de Bancos Centrais) e às organizações internacionais (artigo 23 do mesmo estatuto). Por isso pode emprestar a 0,01 por cento ao Banco Europeu de Investimentos (BEI) ou à Caixa de Depósitos, os quais, por seu turno, podem emprestar a 0,02 por cento aos Estados que se endividem para pagar as dívidas antigas.
Nada impede que estes financiamentos sejam postos em prática já a partir de janeiro! Mas ainda não é tudo: o orçamento da Itália apresenta um excedente primário. Por isso, ficará equilibrado se a Itália não tiver que pagar custos financeiros cada vez mais elevados. Será preciso deixar cair a Itália na recessão e na crise política ou será antes necessário aceitar pôr fim a estes rendimentos dos bancos privados? E resposta deveria ser evidente uma vez que se trata de agir em favor do bem comum.
O papel que os tratados atribuem ao BCE é o de fiscalizar a estabilidade dos preços. Como poderá este ficar sem reagir quando em alguns países os preços das suas obrigações do Tesouro duplicam ou triplicam em alguns meses? O BCE também deveria fiscalizar a estabilidade das nossas economias. Como poderá ficar sem agir quando o preço da dívida nos ameaça fazer mergulhar na recessão “mais grave que a de 1930”, segundo o governador do Banco de Inglaterra?
Se nos ativermos aos tratados, nada impede o BCE de agir com força para fazer baixar os preços da dívida. Não apenas nada o impede de agir, mas tudo incita a fazê-lo. Se o BCE for fiel aos tratados, deverá fazer tudo para que baixem os preços da dívida pública. Segundo a opinião geral, trata-se da inflação mais inquietante!
Em 1989, depois da queda do Muro de Berlim, bastou um mês a Helmut Kohl, François Mitterrand e aos outros chefes de Estado europeus para decidirem criar a moeda única. Depois de quatro anos de crise, de que é que os nossos dirigentes estão à espera para fornecer oxigênio às finanças públicas? O mecanismo que propomos poderá ser aplicado imediatamente tanto para reduzir os encargos das dívidas antigas como para financiar os investimentos fundamentais para o nosso futuro, como um plano europeu de poupança de energia.
Os que pedem a negociação de um novo tratado europeu têm razão: com os países que o desejem, é preciso construir uma Europa política capaz de agir sobre a mundialização; uma Europa verdadeiramente democrática como a propuseram Wolfgang Schauble e Karl Lamers em 1994 ou Joscka Fisher em 2000. É necessário um tratado de convergência social, é necessária uma verdadeira governação económica.
Tudo isso é indispensável. Mas nenhum novo tratado poderá ser adotado se o nosso continente se afundar numa “espiral da morte” e os cidadãos passarem a detestar tudo o que chegue de Bruxelas. É urgente enviar aos povos um sinal muito claro: a Europa não está nas mãos dos lobbies financeiros. Está ao serviço dos cidadãos.
*Michel Rocard é também o presidente do Conselho de Orientação Científica de Terra Nova desde 2008. Pierre Larrouturou é também o autor de “Para evitar o último crash”, “Pour evitar le krach ultime” (Nova Editions)
Publicado no BE Internacional.
Fonte: www.revistaforum.com.br/
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