Castells debate os dilemas da internetPara sociólogo, breve todo planeta estará conectado; Google e Facebook não são ameaça. Grande desafio é manter liberdade na rede
Nos Estados Unidos, o Congresso examina leis (SOPA e PIPA) que podem impedir a troca de conteúdos em rede — e, se adotadas, atingirão internautas em muitos países. Na China, a campanha anunciada pelo presidente Hu Jintao para “promover a identidade cultural” do país inclui endurecer a censura sobre certos conteúdos que circulam pela rede. Mas em todo o mundo, ela continua a ligar seres humanos sem intermediações de governos ou empresas — e, em casos cada vez mais numerosos, a viabilizar mobilizações que derrubam ditaduras e desafiam o poder econômico. Qual o futuro da internet, em meio a tendências tão contraditórias?
No início de janeiro, o sociólogo Manuel Castells concedeu ao programa Europa Abierta, da rádio e TV pública espanhola, uma entrevista de enorme importância para o debate destes temas. Conhecido por obras que estabeleceram novos conceitos (como a trilogia “A Era da Informação”) e, mais recentemente, por sua aposta na possibilidade de manter a internet como espaço de uma “cultura de liberdade”, Castells sustentou quatro pontos de vista essenciais:
> Está surgindo uma era de “autocomunicação de massas”: Em suas análises anteriores, e nas de outros autores, já se falava numa “era de comunicação compartilhada”, que substituiria, a “comunicação de massas”. Castells acrescenta, agora, um outro dado. Além de dispensar o conteúdo dos grandes meios, estabelecendo trocas conteúdos em pequenos grupos, os cidadãos estão se tornando capazes de falar às massas. As redes sociais permitem multiplicar mesmos mensagens transmitidas por pequenos grupos, quando estes são capazes de sensibilizar as sociedades. É o que ocorreu, por exemplo, nas revoluções tunisiana e egípcia.
> As grandes empresas com base na internet são aliadas, na luta pela liberdade — mas precisam ser reguladas: Google, Facebook e outros têm grande poder de influência sobre a rede. Porém, seu próprio modelo de negócio as leva a se oporem a medidas autoritárias de controle. Aprenderam a surfar na rede; precisam multiplicar a circulação de conteúdos, de todos os tipos, para ampliar sua receita. Ainda assim, Castells defende a criação de conselhos que regulem a internet em favor do interesse público. São eles que podem assegurar, por exemplo, a neutralidade da rede, impedindo que certos usuários tenham privilégios sobre os demais.
> A ideia de uma “internet elitista” não resiste aos fatos: 1,7 bilhão de pessoas estão conectadas — um quarto da população total do planeta. Nunca um meio de comunicação teve alcance tão maciço. Mas este número vai se ampliar novamente em breve, graças às tecnologias que levam a internet aos celulares, ou seja, a 4,7 bilhões de seres humanos.
> Nada está garantido: No momento, mesmo os controles estabelecidos pelos governos sobre a rede (como a censura a certas palavras-chaves, na China) são frágeis. No entanto, a horizontalidade radical da internet é lógica intrínseca da autoridade — que é controlar informações. A única garantia para manter a rede livre é a permanente mobilização dos cidadãos.
Num mundo que mudou muito, em pouco tempo, os meios de comunicação de massa estão se transformando ainda mais rapidamente. Qual sentido de suas transformações?
Os meios de comunicação tornaram-se ao mesmo tempo globais e locais. Com a transmissão digital, podem-se recombinar meios diferentes. O que antes era uma comunicação muito local e em que havia poucos canais e poucas formas de difusão de mensagens, transformou-se numa enorme constelação que está em todo mundo.
Mas a grande transformação foi produzida nos últimos dez ou doze anos, quando começou a se difundir a comunicação horizontal. Ou seja, não mais aquela que vai de um a muitos — e sim a que vai de muitos a muitos. Com cada um emitindo e selecionando suas próprias mensagens a partir da internet. Isso abriu as fronteiras. Qualquer pessoa pode organizar seu próprio canal e suas próprias redes de comunicação.
Portanto, estamos em um sistema de comunicação duplo, em que os meios de comunicação de massa já não reinam sozinhos. Surgiu o que chamamos de a “auto-comunicação de massa” — a comunicação que nós mesmos selecionamos, mas que tem o potencial de chegar às massas, ou àquele grupo de pessoas que definimos em nossas redes.
Em Comunicação e Poder, um de seus livros mais inspiradores, você difunde a utopia de um mundo melhor graças à livre comunicação entre as pessoas. Porém, percebemos, pelos ataques que têm sido lançados à liberdade na rede. Por isso, pergunto: nada parece ser tão simples, não é?
As coisas não são nada simples — mas não é difícil compreender a equação. Quem tem o poder, organiza a rede — seja poder econômico, midiático, político, qualquer um. E quem tem poder deseja mantê-lo, pois é a forma de assegurar que seus próprios interesses e valores estejam melhor servidos que os dos demais, na organização da sociedade. Por isso mesmo, quem tem poder rejeita as mudanças que ameaçam seu domínio.
Conservar o poder requer manter o máximo controle possível sobre a informação, e assegurar, sobretudo, que os canais de comunicação sejam verticais. Nessa lógica, alguns poucos devem controlar a comunicação dirigindo-se aos muitos que não a temos. Bem… isso é o que está mudando fundamentalmente!
Mas dizemos que não é tão fácil porque, ainda que a internet e as redes móveis permitam que uma multiplicidade e uma horizontalidade da comunicação, as grandes empresas também possuem os mesmos canais. E os governos possuem uma certa capacidade — não decisiva, por sorte — de controlar e intimidar a livre circulação de ideias na internet e nos meios de comunicação móveis. Ou seja, a princípio a tecnologia permite uma abertura do mundo da comunicação, mas poderes econômicos, políticos e midiáticos seguem tentando controlá-la. O resultado de tudo isso varia segundo os momentos e os países, e depende sempre da capacidade que as pessoas têm de mobilizar-se para defender seu direito à liberdade.
Poderia ser mera ilusão de ótica a sensação de que nossa capacidade de influência, e liberdade para nos informar, são agora muito maiores?
Creio que é uma ótima pergunta, mas não — claramente, não. Temos inúmeros estudos mostrando que as pessoas têm muitíssimo mais capacidade de intervir no espaço da comunicação, a partir da internet, que em qualquer outro momento na História. Tanto é assim que, falando concretamente, as grandes empresas de comunicação do mundo também usam as redes sociais
As barreiras de entrada no mundo de comunicação da internet diminuíram muito. A tecnologia está ao alcance de qualquer estudante formado. E o capital necessário para criar um canal no Youtube, por exemplo, é relativamente pequeno. Portanto, há centenas e centenas e centenas de alternativas, e algumas são mais sofisticadas que outros. E se o Youtube pratica a censura, ou se o Facebook controla o que se diz ou não se diz, as pessoas simplesmente mudam-se para outra rede social e abandonam o que havia.
É o que aconteceu com a primeira grande rede social de comunicação. Em sua época, o AOL.com, era o grande invento, a grande tecnologia. Quando a AOL tentou cortar a liberdade de expressão, simplesmente as pessoas abandonaram-na e ela praticamente acabou, em termos de rede. Então, de certo modo, para vender o que querem em termos de publicidade, em termos de obter dados sobre as pessoas, as empresas de internet têm de aceitar a liberdade de expressão. Porque é isso que as pessoas buscam: expressar-se, organizar-se e relacionar-se livremente.
O mesmo com os governos. Os governos odeiam a internet. Porque é um desafio básico ao que sempre foi o fundamento de seu poder: o controle da comunicação e da informação. Os governos dizem: internet sim, mas para o que me servir. Sempre usam os mesmos pretextos: a pornografia infantil, o terrorismo — como se fossem fundamentalmente problemas da rede. Ora, são problema da sociedade. E os terroristas usam a internet, mais para propaganda, não para se organizar. É o que fazemos todos. Todos utilizamos a internet para tudo: para o bem e para o mal. E os governos odeiam que algo escape a seu controle. Mas não pode haver “um pouquinho” de internet. A rede existe ou não existe: por ela se transmite todo tipo de informações.
Pode-se tentar controlar, como por exemplo na China, com meios muito potentes. Mas mesmo assim, não conseguem realmente controlar aquilo que as pessoas crêem. Como os governos fazem o controle da internet pelos governos? Por análise de conteúdo, com robôs: esses sistemas automáticos que buscam palavras-chave. Para escapar do controle, uma estratégia é não dizer nenhuma das palavras-chaves que um robô pode interpretar: democracia, Tian An Men, Tibete, Taiwan, pornografia, etc… Se nenhuma palavra de uma lista for usada, se não se comete nenhuma imprudência nesse sentido, os robôs não são capazes de controlar.
Existem outros sistemas mais manuais de intimidar o webmaster, a pessoa que maneja cada site, mas isso é muito mais artesanal e muito menos eficaz. Ou seja, o que os governos fazem para controlar a internet é o que sempre fez a polícia: manter uma lista de suspeitos habituais e buscar controlar os correios eletrônicos e os web destes suspeitos.
Mas há uma mudança a mais: o email deixou de ser a forma de comunicação mais importante, e mesmo mais comum, na internet. Desde julho de 2009, o número de usuários das redes sociais de comunicação, tipo Facebook e outros, é muito maior que o de email.
Ou o Twitter…
Twitter também… mas ele não é o maior. E está estancado, de certo modo, porque não permite uma interação suficientemente rica, como em outras redes sociais. E sobretudo porque o bom do Twitter era que se podia (e segue sendo assim) interagir facilmente pelo celular. Mas agora entramos na época do iPhone e outros dispositivos móveis que podem entrar diretamente na internet. Pode-se estar no Facebook sem nenhum problema e é uma grande vantagem das redes sociais com maior amplitude de banda.
Mas o controle de informação que os governos tinham não estará sendo transferido ao Google, por exemplo? É ele que seleciona o que se encontra e estabelece preferência de alguns sites sobre outros. Estaremos oferecendo a uma empresa privada o poder que tiramos do governo e das urnas?
Bem, os governos legitimados pelas urnas possuem muitos condicionamentos e existem apenas em uma parte do mundo. O Google tem enorme poder, sobretudo tecnológico, e pode ser um veículo de controle. Mas, na batalha que vivemos no momento, ele é mais um aliado que um inimigo. Os que realmente estão tentando controlar — e os que podem controlar mais — são as empresas proprietárias dos canais de comunicação, por meio dos quais flui a rede. Porque nesse caso, o tipo de censura é muito mais direto: cortam seu acesso, a menos que haja uma intervenção judicial. Podem cortá-lo restringi-lo, diferenciá-lo da maneira que quiserem. Por isso, é tão importante a batalha pela neutralidade da rede.
Nos Estados Unidos isso é decisivo. O governo Bush caminhava para entregar entregando as redes às grandes empresas de telecomunicação, com seus critérios. Obama fez uma campanha muito grande para preservar a neutralidade da rede, e delegou isso ao novo presidente da comissão geral de comunicações, que está tentando mantê-la.
O Google tem poder, naturalmente, à medida que é uma máquina de busca que utiliza seus próprios critérios. Dizem que os algorítmos são aleatórios, mas na realidade não é assim: eles utilizam seus próprios critérios e condicionam o que buscamos e o que não buscamos. Mas o que não podem fazer é controlar o acesso, controlar a comunicação, porque quanto mais tráfego, conteúdo e atividade na internet, melhor para eles. Eles vivem de incrementar a comunicação livre na internet, e não de limitar aquilo que ela nos entrega.
Google é um negócio, não uma ideologia. Quanto mais internet e mais comunicação, mais negócios para o Google. De qualquer maneira, como você disse, é absolutamente necessária uma regulação séria, em benefício do interesse público. Uma regulação de toda a comunicação, e em particular da internet. Por exemplo, na Catalunha, temos o Conselho Audiovisual, que tem uma atividade bastante séria e em função do interesse público. Esses conselhos reguladores às vezes são especialmente politizados, mas é fundamental que regulem em função do interesse público, não em função dos interesses do governo.
Os meios de comunicação passaram a transmitir fatos como o funeral de Michael Jackson via Facebook. Todos compartilhavam o que viam e compartilhavam seus sentimentos diretamente. Estaríamos vivendo uma globalização dos sentimentos, maior do que a já ocorrida até agora?
Sim, efetivamente. Este é um exemplo excelente. De forma menos interativa (porque não havia Facebook), ocorreu no funeral de Lady Di, como um momento de comunhão geral do lamento de milhões de pessoas no mundo.
Mas eu diria que mais importante que esse exemplo é a ideia da articulação dos meios de comunicação de massa tradicionais com os novos meios de comunicação pela internet. Ou seja, estamos em um processo de convergência tecnológica e também convergência comunicativa.
Vemos dois mundos diferentes: o mundo da comunicação de massas e o mundo da auto- comunicação de massas, mas hoje em dia eles estão interagindo. Qualquer canal de televisão sabe que tem que contar com a interação dos meios de comunicação pela internet. Está surgindo um híbrido. Mas atenção: como a internet não é controlável, para que os meios de comunicação de massa realmente interajam com a comunicação que chega à rede, será preciso que diminuam o nível de controle em relação ao que eles próprios difundem. Isso seria uma revolução, que ainda não chegou aos meios de comunicação.
O mesmo posso dizer em relação ao governos e políticos. Para que possam fazer uso eficiente da internet, precisam aceitar a autonomia dos cidadãos. Essa foi a genialidade de Obama e é difícil, pois quase nenhum político aceita liberar o sentimento dos cidadãos para que eles próprios se organizem. E mesmo Obama, desde que chegou à Casa Branca, limitou bastante o que os cidadãos podem e não podem fazer na internet.
Esse é o tema: a internet é um meio de comunicação livre. Qualquer tipo de articulação com a internet — seja política, midiática ou cultural — implica renunciar a boa parte do controle vertical que os meios de comunicação exercem. Esse, sim, é um processo de transformação que está acontecendo e que podemos ver no exemplo do funeral de Michael Jackson.
Quem não está na internet já não existe?
Na política, se alguém não está em comunicação — seja pelos meios de comunicação, ou pela internet –, não existe. As pessoas existem distantes da internet, é claro, mas limitam muito as possibilidades de relação e de informação. Os estudos mostram que quanto mais se está na internet, mais possibilidades de relações, mais amigos, mais atividade, mais informação social e política, mais informação cultural. O internauta é um ser ativo, a ideia de que a rede afasta as pessoas do mundo é refutada pela experiência empírica.
Mas eu diria que essa pergunta está começando a ficar um pouco velha. É como perguntar se existimos sem eletricidade. Sim, é claro que as pessoas podem viver felizes sem ela: em momentos na floresta, contemplando o correr do rio, lendo um livro… Por outro lado, a eletricidade é a base da civilização industrial que construímos.
Temos hoje 1,7 bilhão de usuários de internet no mundo (em 1996, havia aproximadamente 40 milhões…). Uma barreira para o desenvolvimento da rede era a falta de plataformas móveis: em 2012, a comunicação interpessoal já não se dá principalmente por meio de linhas fixas, mas a partir de dispositivos móveis, como os celulares. Pois bem: o número de linhas móveis passou de 16 milhões, em 1991, para 4,7 bilhões. O planeta está praticamente conectado — inclusive os países pobres. Essa plataforma puxará uma nova etapa de expansão e desenvolvimento da internet. Significa que a rede tem, hoje, o mesmo significado que a eletricidade representou para o desenvolvimento da sociedade industrial.
A pergunta, portanto, perde sentido. Não vivemos na internet, mas com ela. É uma parte essencial da nossa vida, além de uma cultura de liberdade. Se existem pessoas que não querem a internet — gente de mais idade, por exemplo, que identificamos em algumas de nossas pesquisas –, elas têm todo o direito de sustentar essa opinião. Deveríamos assegurar, por exemplo, que os serviços públicos não sejam distribuídos apenas pela rede, pois as pessoas sempre precisam ter o direito de optar por outras tecnologias. Mas insisto, é o mesmo que poder optar por não ter eletricidade.
Internet, celulares, redes sociais são elementos que mudam as formas de nos relacionarmos, e também abrem um mundo novo de oportunidades, numa hora de crise. É hora de sondar as oportunidades de ocupação e negócio por meio da rede?
Certamente. O que não é se sustentará é o modelo de capitalismo financeiro global que tínhamos. O núcleo deste sistema derreteu. Todo o crescimento econômico dependia de uma demanda atrelada a crédito fácil, crédito com capital inventado a partir de manipulações matemáticas dos mercados financeiros. Isto acabou, e surge um reflexo de contração total da economia, que os governos tentam reparar para logo dizer “voltamos ao que era antes, ao mesmo tipo de economia”.
Muitos economistas, em todo o mundo — e eu estou entre eles –, não acreditam ser possível ou viável voltar ao mesmo modelo. Não significa dizer que o capitalismo acabou, mas sim, este tipo de capitalismo especulativo financeiro. A saída, dentro dos marcos da economia de mercado não passa pelo estímulo da demanda, nem por contraí-la ainda mais — e sim por estimular um novo tipo de oferta, a produção de mais por menos. Consumir menos, com uma economia menor e mais dinâmica, com mais tempo livre, de modo o motor da produção não seja a demanda, mas a inovação, a capacidade de produzir coisas novas. Aqui temos a internet e mais amplamente todo o mundo da cultura e da produção digital. Esse é o elemento-chave, sobretudo se ligado a novas formas de mercado e à aplicação das novas tecnologias informáticas ao mundo da biogenética, da investigação biomédica.
Acredito que aqui está, hoje, a oportunidade de criar pequenas empresas, empreendimentos com muitos empresários jovens potenciais que têm conhecimentos, sabem e podem encontrar nichos de mercado. O problema é que, na Espanha e em toda a Europa, as instituições financeiras não aceitam trabalhar com a ideia do risco. Relacionam-se com os empreendedores com a ideia de que capital de risco é capital para o banco — e risco para o empreendedor…
Creio que há uma possibilidade aberta. Se conseguíssemos superar a cultura burocrática do governo e a cultura de controle bancário — especulam com nosso dinheiro, mas não arriscam o deles — será possível começar uma economia com bases mais sãs que as que vimos cair.
Entrevista a Sergio Martin, Rádio Europa Aberta | Tradução: Daniela Frabasile e Gabriela Leite Martins
Fonte: www.outraspalavras.net/
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