Quando as bicicletas viram arte surreal
No interior
do Senegal, o bicicleteiro-escultor Fall Meïssa combina transporte limpo
com reciclagem e recria, a partir de mitos africanos, obras de imaginação
invencível
Para que
serve uma bicicleta? Para Fall Meïssa, a resposta vai muito além de um meio de
transporte ou de lazer. Uma bicicleta pode virar um segurança do Michael
Jackson, o cozinheiro do Gênio do rio, a mama África grávida ou até um
pterodátilo meio dinossauro meio peixe. No trem de ideias surrealistas que
viaja em alta velocidade pela sua mente não faltam opções do que fazer com uma
bicicleta ou com partes dela que já não são utilizadas. A transformação do lixo
em esculturas de metais escorre com facilidade entre as ideias do artesão de
Saint Louis.
Meio
período artista, meio período mecânico, Fall Meïssa nasceu e cresceu entre as
magrelas assistindo pai e avô a trabalharem em uma modesta oficina de
bicicletas. “Quando eu era criança, no ateliê do meu pai, o velho não queria
que eu tivesse uma vida de traquinagens na rua, então para me ocupar ele me deu
a função de limpá-las”, lembra o artista, “cada vez que ele me dizia que não
estava pronto, que faltava tal ângulo ou tal canto para melhorar, eu
recomeçava. Nunca estava bom o suficiente. Nunca era hora de sair para
brincar”.
Foi assim,
no borbulhar de um sentimento antagônico que Fall começou a transformar
virtualmente em sua cabeça os objetos trabalhados. Imaginando-os em outras
formas, ele começou a acreditar que cada vez que limpava, as peças iam ganhando
novos contornos – quase animais ou humanos. “Era como se quando eu os tocava,
eu tivesse o poder de lhes dar vida. Era como se eu tivesse ganhado o poder de
lhes dar uma segunda chance”, conta o escultor na sua fala rápida, quase
atropelada e de palavras cortadas. Suas obrigações lhe conferiram uma compaixão
oposta: ao se sentir privado de liberdade, ele transformou livre os objetos que
limpava.
Fall
explica que, aos poucos, vender as peças ou jogá-las fora se tornou impossível
— ele já tinha começado a amá-las. Para ele já não eram mais objetos. Ele havia
entendido que ali estava presente uma segunda vida. No seu pensamento fluído, o
artista declara: “A bicicleta é como a natação, ela nos é familiarizada. É algo
que gente nunca esquece. Ao ver um pedaço solto, qualquer pedaço, a gente sabe
que ele veio da bicicleta. Não é assim com o carro ou com o celular. Porque a
bicicleta não é vestida, ela é nua. E por isso, nós humanos somos muito
próximos dela”. Transporte, entregas, encontros: em um insight, ele entendeu
que as bicicletas são mais do que isso, são também um meio de fazer circular
ideias e transmitir valores. E assim partiu para arte.
Da paixão
pela escola moderna, Meïssa imbicou nas metodologias contemporâneas de criação
e na contramão de Saint Louis, uma cidade com problemas graves de coleta de
lixo, o genioso escultor construiu sua vida na arte ecológica, tornando-se
precursor de uma ciência de reciclagem que lhe veio naturalmente, através do
sentimento e da percepção de valor de um material em desuso. Nas mãos do
artista de aparência quase caricatural, de sobrancelhas grossas, barba preta
com destaque singular de ponta branca, boca já sem dentes e capuz de pano
cobrindo o cabelo cheio, as peças se transformam em obras refinadas, frutos de
uma linha de pensamento apurada e complexa e de uma imaginação invencível.
De um aro
cortado ali e aqui, adicionado de um amortecedor e ornamentado por guidões
nasce um “robô em pane, um grande cara, um corajoso! Mas que está em pane
porque a velocidade da vida eletrônica não respeita a velocidade da vida”.
Nasce também um “torcedor do basquete que não é um jogador, mas que na sua
ansiedade marca pontos antes da própria equipe”. Nascem ainda mitos, lendas e
personagens históricos relacionados ao gênio do rio, entidade mística
intimamente presente na vida dos moradores de Saint Louis e que os protege de
afogamentos e dos perigos das águas “em troca de dois pedaços de carneiro
sacrificado oferecidos ao rio no nascimento de cada bebê da cidade”. Nascem a
ritmo galopante analogias e metáforas. Na sua linguagem refinada e
contrastante, o escultor afirma que a fórmula é simples: “A escultura e a mecânica
são como a medicina. Existe um paciente que espera e eu tenho que ir até a
minha farmácia buscar o medicamento necessário”. Com Fall Meïssa, o conceito de
reciclagem ganha uma nova forma, uma forma em que a criatividade parece não ter
esquina.
Fonte: http://outraspalavras.net/blog
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