sexta-feira, 14 de março de 2014

São Paulo, “cidade de trilhos”? - Por Oliver Cauã Cauê


São Paulo, “cidade de trilhos”?
Ao contrário do que afirma secretário dos Transportes, modelo do governo estadual mantém desmonte da rede ferroviária — e aposta num “metrô para ricos”

Em artigo publicado na Folha de S. Paulo, o secretário de Transportes Metropolitanos Jurandir Fernandes surpreendeu ao falar na “São Paulo dos trilhos”. Oras, a terra da garoa tem três vezes menos trilhos que há cem anos. Conforme Rolnik e Klintowitz:

Até a década de 1920, o modo predominante de transporte era coletivo e sobre trilhos – bondes e trens. Segundo Mário Lopes Leão (1945), a cidade tinha, em 1933, uma rede de bondes com 258 km de extensão, três vezes maior do que a extensão atual do metrô. O sistema de bondes nessa época era responsável por 84% das viagens em modo coletivo, realizando aproximadamente 1,2 milhão de viagens/dia, em uma cidade que tinha, então, 888 mil habitantes (Vasconcellos, 1999, p.158).
As responsabilidades do partido de Jurandir perante este declínio são enormes. Além da construção das autopistas “Rodoanel Mário Covas” e “Nova Marginal” pelo governo estadual, o ex-presidente Fernando Henrique privatizou o sistema de trilhos e deixou uma mínima malha para a empresa estadual de trens, a CPTM. Desta forma, hoje ela é incrivelmente menor do que aquela construída pelos barões do café, quando chegava-se de trem a Campinas, Piracicaba, Mato Grosso e, na outra extremidade, a Santos. O sistema era incrivelmente pontual e possuía (para poucos, é verdade) vagões de altíssimo conforto.

Para além deste novo “dado”, o secretário traz outras novidades:
“A boa notícia é que, nos últimos cinco anos, houve um aumento considerável da participação do transporte sobre trilhos entre os modos de viagem da população na região metropolitana de São Paulo. As viagens realizadas por metrô cresceram 45% e as de trem, 62%. Nos ônibus municipais de São Paulo, o aumento foi de apenas 8%.”

Há que se verificar em detalhes em que medida este aumento foi resultado de esforços do governo estadual. Justifico:
O grande boom de passageiros se deu há dez anos graças à implantação do Bilhete Único, uma iniciativa do poder municipal. Portanto, o aumento de passageiros pode estar relacionado (ainda que de maneira marginal) a remodelações realizadas pela prefeitura. Não custa lembrar que o corte de linhas frequentemente atribuído ao prefeito Fernando Haddad iniciou-se na gestão Kassab. Como a distribuição atual das linhas privilegia o modelo tronco-alimentador, onde ônibus vão até as periferias e seguem para um terminal ou estação de metrô, a baldeação é forçada;
Segundo este mesmo raciocínio, o Bilhete Único Mensal pode aumentar a quantidade de passageiros do sistema metroferroviário, mas isso não significa que os méritos sejam do governo estadual, uma vez que a proposta foi executada e implantada pelo poder municipal. De fato, desta vez, o governo estadual implantou imediatamente o Bilhete Mensal, de maneira a se colar à política e dividir os frutos eleitorais com o PT. Mas isto só demonstra como o PSDB está a reboque de políticas do PT e que carece de criatividade política (para dizer o mínimo).

No entanto, o governo do estado possui mecanismos para influir no aumento da quantidade de passageiros nos trens e metrôs, sobretudo daqueles endinheirados, do qual o Secretário se alegra:
“A população de menor renda passou a utilizar mais o carro para realizar suas viagens na Grande São Paulo. Na outra, ponta, famílias com renda mais alta estão usando mais o transporte público [...] O comportamento das classes mais altas sugere uma tendência mundial de cada vez mais se libertar do transporte individual para realizar as viagens de ida e de volta ao trabalho. Nos grandes centros urbanos, os carros são incompatíveis com a qualidade de vida.”

E os mecanismos adotados pelo estado com vistas a aumentar esse número de passageiros ricos são muito interessantes. O principal é construir metrô apenas nos bairros nobres. Há anos que o metrô só se expande no Quadrante Sudoeste da cidade (Av. Paulista e, sobretudo, Av. Berrini). Que esta orientação é elitista, Flávio Villaça já demonstrou:

“A Região de Grande Concentração das Camadas de Mais Alta Renda da Região Metropolitana, (situada dentro do Quadrante Sudoeste) tem o melhor sistema viário da metrópole, não só em termos de vias expressas, semi-expressas e avenidas, mas também em termos de túneis, viadutos, vias perimetrais, etc.. Ao produzir o sistema de transportes sobre trilhos o poder público vem prosseguindo nesse favorecimento da minoria mais rica em detrimento da maioria mais pobre.”
O segundo mecanismo mais importante é construir metrô a ritmo de tartaruga. A implantação de metrôs, já lembrou o professor Csaba Deák, pode ser um importante instrumento para combater a especulação imobiliária, desde que feita rapidamente e em várias direções da cidade. A estratégia utilizada pelo Governo do Estado é a oposta da levantada pelo professor da USP. E ela pode significar que o poder público esteja indo deliberadamente devagar com as obras para possibilitar que o mercado imobiliário se adeque e tenha tempo para construir nos arredores. Logo, se grandes torres de apartamentos forem construídas em torno das novas estações, mais pessoas afluirão para o sistema. Mas esta não é uma política adequada porque:

O estado cria uma extrema valorização destes imóveis e, por conseguinte, o público-alvo de tais empreendimentos é previsto, ou seja, faz parte de um projeto de gentrificação;
a malha se concentra onde o mercado possui interesse; e
explicaria o lento ritmo de expansão da rede metroferroviária nas duas últimas décadas.
Isso sem falar nas denúncias de corrupção que, se confirmadas, significariam um modelo de “rouba, mas não faz”, numa esdrúxula comparação com outro político paulista.

Por fim, o discurso de comemoração acerca da alta de usuários no sistema contrasta com as reiteradas afirmações de que aquelas mesmas pessoas causaram as panes do metrô no mês passado. Em entrevista à TV Globo, ele afirmou:

“Algumas pessoas incitaram, com palavras de ordem, que as pessoas pulassem nas linhas. Inclusive tocaram fogo entre a estação Sé e Parque Dom Pedro. Para que? Queriam inviabilizar o metrô no dia seguinte.”

Além de acusar de que houve uma orquestração dos protestos, o Secretário afirmou ainda que “safados” causaram um incêndio e teriam desligado a energia das vias. Sobre as duas primeiras acusações, nenhuma prova foi apresentada. Sobre o corte de energia, ele foi realizado por funcionários do Metrô para poderem descer com segurança aos trilhos. Isto foi comprovado por um documento da Comissão Interna de Prevenção de Acidentes.

A demanda por transportes no Brasil é altamente reprimida e milhões de pessoas andam a pé por não terem dinheiro para pagar a tarifa. Portanto, se os ricos estão usando mais o sistema, isto só significa que eles têm muito mais liberdade de escolha do que os pobres. E se o sistema está mais cheio, há que se verificar as razões. Aqui procuramos ter um início de conversa.

Fonte: http://outraspalavras.net/blog

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