Teoria do caos
As
multidões contêm pessoas violentas, mas a nossa pesquisa indica que a melhor
maneira de controlar essas pessoas é criando ambientes em que elas fiquem
isoladas. Por Clifford Stott, Stephen Reicher e John Drury
O Passa
Palavra publicou há poucos dias um artigo, «Autodefesa em manifestações, para
quê?», em que as
manifestações e outras ações de contestação são vistas na perspectiva dos
manifestantes. Divulgamos agora um artigo, publicado originariamente
na Police Review em 24 de Abril de 2009, que revela o ponto de vista
da polícia. Acreditamos que a sua leitura atenta será muito instrutiva.
A contenção
massiva das multidões durante perturbações da ordem pública pode ser legalmente
justificável, mas permanece ainda em questão saber o quanto é efetiva no
controle das dinâmicas de multidão. Na Suprema Corte de 23 de Março de 2005, o
juiz Tugendhat concluiu que a tática policial de cercar e conter grandes
multidões era legal quando surgissem motivos para presumir que houvesse riscos
de violência ou de danos à propriedade (PR, 1 de Abril de 2005). Esta sentença
foi fundamental porque abriu caminho para que o Met [Metropolitan Police
Service, Serviço de Polícia Metropolitana de Londres] utilizasse a contenção de
massa como uma parte formalizada do planejamento tático para futuras
ocorrências, incluindo os protestos contra o G20 daquele mês.
Táticas no
G20
Uma vez que
se recebeu informações de que haveria uma ameaça à ordem pública durante o G20,
se tornou quase inevitável que ocorresse alguma forma de encurralamento em
massa. Apesar das previsões generalizadas do caos que se aproximava, não houve
grandes revoltas violentas e os danos criminosos contra propriedades foram
relativamente pequenos. Havia até mesmo a sensação inicial de que a tática da
contenção enérgica fora muito bem sucedida. Mas, passados poucos dias, a forma
como a polícia tratou os protestos no G20 foi sujeita a notícias negativas em
todos os destaques nacionais.
Quando
a Police Review dava entrada na tipografia, o uso da força por
agentes policiais foi considerada responsável pela morte de uma pessoa, e dois
agentes do destacamento de apoio territorial foram suspensos e podem ser
passivos de indiciamento criminal. A mídia também começou a questionar a
relação entre o serviço policial e a sociedade. Uma Comissão Independente de
Reclamações sobre a Polícia [Independent Police Complaints Commission] foi
instalada e foi pedido que o Inspetorado Real da Polícia [HM Inspectorate of
Constabulary] procedesse a uma revisão das táticas de manutenção da ordem
pública. Ficou claro que o policiamento de um grande evento em Londres se
convertera em mais uma ocorrência crítica para a polícia, enquanto os aspectos
mais positivos da operação serão amplamente ignorados. Assim, apesar da sua
legalidade, permanecem em aberto questões importantes sobre a proporcionalidade
e a efetividade geral na contenção enérgica de massas. Segundo as palavras de
Sir Paul Stepehenson, comissário do Met, ele pediu a intervenção do Inspetorado
Real de Polícia precisamente porque quer “ter certeza de que o uso dessa tática
permanece apropriado e proporcional”.
Mas
proporcionalidade em policiamento de ordem pública é uma questão complexa; ela
tem que ser medida em comparação com o uso potencial de alternativas que
poderiam alcançar resultados similares, mas que comprometeriam em menor grau a
liberdade cívica. Apesar da contenção de massa ter se tornado proeminente
depois dos protestos do Primeiro de Maio de 2001 em Londres, táticas similares
são utilizadas quase semanalmente por agentes da polícia da Inglaterra e no
País de Gales para fragmentar grandes multidões de fãs de futebol durante as
suas deslocações. E as revelações referentes ao comportamento agressivo de
alguns agentes individuais não serão surpresa alguma para quem assista
regularmente a jogos de times cuja base de fãs seja considerada “de alto
risco”. De fato, o pedido de Sir Paul foi anunciado no mesmo dia em que a
sociedade britânica recordava os erros que levaram à tragédia de Hillsboroough.
O que esses
exemplos têm em comum é que todos eles refletem uma abordagem baseada na visão
da multidão como inerentemente perigosa; como consequência, uma visão em que a
contenção ou dispersão são a maneira preferencial de controlar a presumível
ameaça à ordem pública.
Ciclo de
violência
Nos últimos
30 anos, a equipe de psicólogos sociais a que pertencem os autores deste artigo
vem juntando dados científicos sobre a psicologia da violência em multidões e
as consequências dessa teoria para o policiamento de ordem pública.
Central na
nossa abordagem é uma rejeição às ideias tradicionais sobre como e por que as
multidões se tornam desordeiras. Tornou-se arcaica a noção de que as multidões
são propensas a atos de violência aleatórios e imprevisíveis porque, dentro delas,
as pessoas comuns perdem o controle racional do seu próprio comportamento.
Esta visão
é endossada por alguns cientistas sociais desde o século XIX e figura no
projeto de texto para a versão de 2006 do curso para oficiais de comando da
Agência Nacional de Qualificação do Policiamento [National Policing Improvement
Agency], que afirma que “uma multidão é um instrumento para entrarmos em um
tipo de insanidade temporária em que todos ficamos loucos juntos”. Adicionada a
essa percepção de perigo está a ideia de que “baderneiros” conseguem então
manipular as multidões, transformando-as em turbas perigosas e enlouquecidas
independentemente das circunstâncias.
Nossa
pesquisa tem mostrado que essa visão tradicional das multidões é atualmente
insustentável cientificamente, além de ser perigosa e extremamente
contraprodutiva, entre outras razões porque leva a práticas policiais que podem
não-intencionalmente iniciar desordens generalizadas. Por exemplo, durante a
manifestação contra a Poll Tax na área central de Londres em
31 de Março de 1990, um pequeno bloqueio de ruas com alguns pequenos confrontos
fora da Downing Street [rua onde reside o primeiro-ministro] levou muito
rapidamente a uma intervenção policial com uso da força contra grandes setores
de manifestantes.
Os dados
indicam que a decisão dos agentes policiais de utilizar a força dessa maneira
deveu-se à visão tradicional da dinâmica de multidões. Na nossa pesquisa,
porém, descobrimos que a multidão não se apercebia de nenhuma ameaça à ordem
pública, apenas de uma desobediência civil legítima contra o que era
considerado como um sistema de impostos injusto.
Consequentemente,
um grande número de manifestantes considerou a utilização da força pelos
agentes de polícia como um ataque aos direitos democráticos. Em termos
técnicos, as pessoas na multidão começaram a considerar sua relação com os
oficiais como ilegítima. Dado o uso relativamente indiscriminado da força,
emergiu uma unidade psicológica – consequência natural desse tipo de
intervenção policial – que também deixou as pessoas na multidão se sentindo
poderosas o suficiente para lutar de volta contra a polícia. Essa mudança na
psicologia da multidão também aumentou a capacidade dos “baderneiros” para
influenciarem e encontrarem apoio entre manifestantes comuns.
Portanto, a
sensação de ação policial ilegítima combinada com a percepção de empoderamento
entre a multidão foi a base psicológica a partir da qual muitos que haviam
rejeitado a violência anteriormente começaram a se tornar violentos e através
da qual ocorreu o aumento da desordem coletiva.
Tal
hostilidade emergente confirmou a visão dos agentes de polícia de que essa
multidão estava se tornando desordeira, o que causou um aumento na escala e na
intensidade da intervenção com uso da força. Essa interação reiniciou o ciclo
novamente, até que culminou em um dos maiores motins já vistos na área central
de Londres.
O que fica
claro com esta e outras pesquisas nossas é que a desordem generalizada pode
ocorrer, e de fato ocorre, durante um evento de multidões não porque as
multidões sejam inerentemente perigosas, mas sim como uma consequência
não-intencional do uso indiscriminado da força pela polícia.
Resposta
efetiva
Esta tese
não constitui uma tentativa de culpar agentes policias. Ela baseia-se em dados
que mostram como tais processos surgem por conta de problemas estruturais no
policiamento da ordem pública. O maior desses problemas é o fato de que a atual
abordagem tática e estratégica está baseada em visões ultrapassadas do perigo
inerente às multidões. Como resultado de uma pesquisa de doutorado financiada
pela Unidade de Policiamento de Futebol do Reino Unido [UK Football Policing
Unit], entre junho e setembro de 2007, nossa equipe conduziu uma série de
estudos sobre o treinamento em nível de comando para questões de ordem pública
na Inglaterra e no País de Gales. Graças a essa pesquisa começamos a demonstrar
que o atual treinamento policial para manutenção da ordem pública é problemático
porque lhe falta qualquer referência às teorias e pesquisas modernas sobre a
multidão.
Isso é de
importância fundamental. Se a polícia pretende gerir multidões, a maneira mais
efetiva de fazê-lo é entender e explorar os processos que baseiam o comportamento
delas. O que a nossa pesquisa indica é que a falta de um conhecimento exato
sobre a dinâmica das multidões também está levando à perda de oportunidades
para o desenvolvimento de táticas e decisões em nível de comando mais efetivas
durante eventos de ordem pública.
Também
temos explorado as consequências da nossa compreensão das dinâmicas de multidão
para o comando da polícia e as estruturas de controle, abordagens quanto à
inteligência, responsabilização e cooperação entre departamentos. Essa nova
abordagem teórica significa que é possível começar a fazer as perguntas certas
sobre como construir respostas mais efetivas e proporcionais a eventos de alto
risco com multidões.
Isso foi
demonstrado mais efetivamente no policiamento internacional de jogos de futebol.
Experiência-piloto
em Portugal
No período
até o Campeonato Europeu de Futebol de 2004, em Portugal, o Ministério do
Interior [Home Office] nos ofereceu financiamento para conduzir uma pesquisa
sobre o controle efetivo dos fãs ingleses viajando na Europa continental.
Baseados nessa pesquisa, desenvolvemos um modelo dinâmico de avaliação de risco
e intervenção tática gradual. Por meio da colaboração com a Polícia de
Segurança Pública portuguesa, esse modelo foi implementado em todas as grandes
cidades de Portugal.
Uma
característica central da abordagem portuguesa foi a facilitação estratégica do
comportamento ordeiro. O modelo de tática gradual que surgiu dessa estratégia
começou com os agentes em uniforme normal. A tropa de choque estava disponível,
mas foi deliberadamente mantida fora de vista. Agentes da linha de frente
penetravam então no interior das multidões (mesmo durante eventos categorizados
como de alto risco), trabalhando em duplas, interagindo e encorajando o
comportamento legítimo.
Como resultado,
os agentes de polícia foram capazes de obter informações, monitorar
permanentemente e reagir então rapidamente a riscos emergentes. Ao utilizar
dessa maneira a teoria e os princípios mais modernos sobre multidões, a polícia
foi capaz de evitar intervenções indiscriminadas contra grandes multidões,
apesar de ainda manter essa possibilidade como uma opção tática.
Outra
questão evidenciada foi que, nesse contexto de percepção da legitimidade da
ação policial, os fãs começaram a se “autopoliciar” ao ativamente impedirem
aqueles que tentavam causar problemas ou, pelo menos, tornando mais fácil para
a polícia lidar com esses elementos. Mas, o mais importante de tudo, houve uma
ausência quase total de desordem nas cidades com jogos.
O sucesso
de Estocolmo
O sucesso
dessa abordagem vem agora sendo reconhecido internacionalmente. O modelo
direcionado pela pesquisa foi adotado pelo Grupo de Trabalho sobre Cooperação
Internacional das Polícias do Conselho da Europa e continua a ser utilizado em
toda a Europa. Abordagens similares estão sendo desenvolvidas por oficiais
comandantes de operações em jogos de futebol na Inglaterra de Stoke até
Plymouth. O mesmo modelo também está orientando o treinamento e as respostas
policiais no futebol na Suécia, Dinamarca e Escócia e também está sendo a base
teórica de um programa financiada pela Comissão Europeia de treinamento
internacional para comandantes de policiamento em jogos de futebol, esforço
esse coordenado pela Unidade de Policiamento de Futebol do Reino Unido. Mas a
abordagem tem implicações bem mais amplas do que futebol. O Departamento
Policial de Estocolmo vem utilizando essa teoria para desenvolver suas táticas
de controle da ordem pública após as desordens generalizadas e a morte de um
manifestante durante um encontro de cúpula em Gothenburg em 2001.
Ao invés de
focar nas técnicas de encurralamento de multidões, a sua abordagem tática
utiliza uma unidade de “policiais do diálogo” em que, antes, durante e após
eventos de alto risco, os agentes procuram se comunicar com grupos radicais. O
que eles descobriram é que essa opção tática contribui para reduzir a
necessidade de utilizar a força e promove uma cultura de autopoliciamento em
multidões de alto risco.
Essa
unidade já está alcançando bastante sucesso. Ela foi utilizada, por exemplo,
durante os últimos protestos antiguerra em Estocolmo, após o ataque de Israel a
Gaza em Janeiro. Essa manifestação tensa ocorreu sem nenhum grande incidente e
a tática promete bons frutos para qualquer futuro encontro internacional de
cúpula na cidade.
Perspectivas
futuras
Nossa
equipe também começou a explorar as implicações dessa teoria na reação a
emergências e desastres de massas. Os resultados já estão levando a importantes
modificações no policiamento, tais como alterações no Centro de treinamento e
documentação política QBRN (químicos, biológicos, radiológicos e nucleares) da
Polícia Nacional e nas novas orientações da OTAN sobre ajuda psicossocial para
pessoas afetadas por desastres, além de existirem oportunidades para avançar
com formas de policiamento da ordem pública em caso de ataques QBRN.
Dado que já
estão ocorrendo essa pesquisa, teoria, processo educativo e prática, nossa
questão é a seguinte: o que pode ser feito no sentido de utilizar esse
conhecimento para fazer progredir a maneira como a nossa sociedade responde ao
desafio de controlar a ordem pública, protegendo ao mesmo tempo os direitos
democráticos fundamentais?
Nossa
análise sugere que enquanto a contenção enérgica consegue controlar uma minoria
violenta, ela o faz com o custo de iniciar dinâmicas intergrupais que arrastam
para confrontos manifestantes comuns e policiais. Se essa abordagem fosse
utilizada novamente, seria necessário desenvolver maneiras mais eficazes de
filtrar os diferentes grupos e pessoas na multidão e de comunicar com eles. Mas
para conseguir esse objetivo será possivelmente necessária uma reformulação
radical nos padrões mínimos nacionais de policiamento de ordem pública.
As
manifestações do G20 mostram a necessidade de abandonar a ideia de que a
maneira de controlar multidões é reprimi-las. As multidões podem conter e
contêm pessoas que querem ser violentas e quebrar a lei. Mas a nossa pesquisa
indica que a melhor maneira de controlar essas pessoas é criando ambientes em
que elas fiquem isoladas, porque a maioria da multidão se identifica com os
objetivos policiais. Para conseguir isso, será necessário que o policiamento de
ordem pública se afaste de uma visão da multidão como inerentemente perigosa e
desenvolva formas que diminuam a possibilidade do uso indiscriminado da força
ao invés de o aumentar.
Nossa
pesquisa demonstrou que existem meios alternativos com os quais a
proporcionalidade da contenção de massas deve ser comparada. É importante
considerar que aquela última ocorrência crítica não representa apenas um
problema para os agentes de polícia, mas serve para catalisar modificações
muito necessárias nessa área. Quaisquer modificações devem caminhar juntas com
um entendimento mais preciso, e baseado em dados concretos, das dinâmicas de multidão
e da sua relação com as táticas policiais.
Fonte: http://passapalavra.info/
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