“Estava amanhecendo o dia 24 de outubro. Eu ia de andar em andar, para não ficar quieto em um lugar, para ver se tudo estava em ordem e para levantar a moral de quem o necessitasse. Pelos intermináveis corredores ainda envoltos em sombras [do Smolny], ouvia-se rolarem as metralhadoras arrastadas valentemente pelos soldados, com um estrépito alegre e buliçoso. Era o novo destacamento que havia chamado. Pelas portas se assomavam, com cara de terror, os poucos socialistas revolucionários e mencheviques que haviam permanecido no Smolny. Aquela música não prenunciava nada bom para seus ouvidos. Pouco a pouco, um atrás do outro, se apressaram a deixar o Smolny. Ficávamos como donos absolutos daquele edifício que se dispunha a plantar a bandeira bolchevique na capital e em todo o país”.
Assim
iniciava Trotsky um dos capítulos de sua autobiografia, Minha Vida, dedicado a
recordar as noites decisivas em Outubro que antecederam a tomada do poder pelo
proletariado russo em Petrogrado, em 1917.
Este
episódio, que desencadeou sob diversos pontos de vista o evento mais importante
da história universal, dando nascimento ao primeiro Estado operário da história
– continuando a tradição da Comuna de Paris de 1871 que resistiu em Paris
durante dois meses – e que provaria a validez da teoria e da estratégia
marxista, muitas vezes se perde na rotina do dia que passa. Deve, em verdade,
ser lembrado como motivo de nossa paixão histórica e o sentido de existência
daqueles que militamos diariamente para por fim à sociedade de exploração e
opressão capitalista.
A
insurreição de Outubro não surgiu como desenlace automático da luta de classes,
nem como uma resposta espontânea dos trabalhadores russos à tirania da guerra e
da fome. Foi preparada e dirigida minuciosamente em seus mais sólidos detalhes
como movimento revolucionário das massas.
Uma
vez conquistada, com os testes de aço da revolução e da contrarrevolução, a
imensa maioria dos trabalhadores organizados nos sovietes – ou conselhos
operários e de soldados, principalmente dos dois mais importantes centros
industriais do país, Petrogrado e Moscou – para a idéia da tomada do poder da
classe operária como única forma de resolver os problemas imediatos impostos
pela história, a tarefa dos bolcheviques passava a ser “desencadear os
elementos ofensivos da defesa, transformar a defesa em ataque” e combinar a
conspiração como parte integrante da insurreição de massas.
A
estratégia revolucionária conduz à conclusão do momento insurrecional como
necessidade, como condição para desobstruir o desenvolvimento humano e de suas
forças criadoras interrompido pela burguesia. Isso não quer dizer que seja
automático encontrar o ponto em que se deva passar “das palavras aos fatos” e
transformar a energia e a vontade revolucionária de operários e soldados,
temperadas por anos, numa força ofensiva para destruir o Estado burguês. A
teoria e a estratégia dão a solidez de granito para a tarefa; mas esta
capacidade de percepção é uma arte. O homem – poderíamos chamar de artífice da
revolução – que arquitetou o plano de Outubro foi Leon Trotsky.
Segundo
as palavras do estudioso militar norteamericano Harold Walter Nelson, Trotsky
aproveitou brilhantemente uma combinação favorável das circunstâncias (a ira
das massas contra a guerra e contra o Governo Provisório de Kerensky que a
mantinha, a debilidade militar deste governo, a segregação no Exército russo e
a crescente disposição dos camponeses em por fim à guerra, a recém conquistada
hegemonia dos bolcheviques nos sovietes operários) para diminuir a quase zero a
possibilidade de fracasso da insurreição.
Esta
obra-prima de um verdadeiro gênio militar, que criaria anos depois das ruínas
do exército czarista derrotado na Primeira Guerra o poderoso Exército Vermelho,
mostra a importância de levantar um marxismo com predominância da estratégia e
orientado a fazer a revolução no século XXI. A “arte da insurreição” constitui
um elemento fundamental para a fusão da teoria marxista com as novas gerações
de trabalhadores e jovens que despertam depois da crise mundial.
A
arte da insurreição em 1917
A
grande lição da revolução russa é que a tomada do poder, a insurreição das
massas exploradas e oprimidas, libera uma enorme quantidade de energia social
que deve ser canalizada e conduzida pelos trilhos que levam ao triunfo da
revolução.
Cabe
destacar que Petrogrado era uma cidade ocidentalizada. Com pouco mais de 1
milhão de habitantes, uma quarta parte correspondia a trabalhadores
assalariados, em sua grande maioria industrial metalúrgicos – o complexo
metalúrgico de Putilov tinha entre 15 e 20 mil trabalhadores. Os bairros
operários de Ovukhovsky, Putilovsky, Baltiisky e Trubotchnyi, além do famoso
bairro de Viborg, evidenciavam uma genuína cidade capitalista moderna. De fato,
já em 1911, 54% dos trabalhadores russos trabalham em fábricas com mais de 500
assalariados, enquanto as cifras correspondentes nos Estados Unidos eram de
31%.
A
insurreição de Petrogrado, através da ocupação de todos os pontos estratégicos
de comunicação e abastecimento da capital e a posterior tomada do Palácio de
Inverno, constituiu a prova da necessidade de planificar com clarividência a
ofensiva para conseguir um objetivo determinado. A audácia de Trotsky residiu
em sua capacidade de aproveitar o Segundo Congresso dos Sovietes como antesala
preparatória da insurreição. Como afirmou Isaac Deutscher, a sutileza e a
perspicácia tática de Trotsky impedia que seus inimigos soubessem com certeza o
que sucederia nos dias seguintes.
Ante
o possível ataque alemão à cidade imperial, a 9 de outubro de 1917 se
constituiu o Comitê Militar Revolucionário, sob a iniciativa de um jovem
socialista revolucionário de esquerda, Lizimir. Este Comitê ficou sob as ordens
de Trotsky. A função deste organismo foi organizar a guarnição que tomaria
conta da capital, estabelecendo contatos com as tropas do Báltico, da fortaleza
de Kronstadt e a marinha finlandesa; contabilizar os recursos humanos
disponíveis e as munições; e elaborar um plano de defesa. Imediatamente gozou
da autoridade de ser um organismo do Soviete de Petrogrado.
Deste
modo, de 10 a 17 de outubro, Trotsky se encarregou de transformar a tarefa de
defesa da cidade na insurreição proletária. Ante a notícia de que o Governo
Provisório queria abandonar a cidade, o Comitê se pronunciou contrário à
decisão do governo e declarou a obrigação das tropas estacionadas na capital de
defender a cidade até as últimas conseqüências, exortando o Comitê Executivo a
convocar o II Congresso dos Sovietes. Trotsky fez um chamado a rádio a todos os
sovietes da Rússia para que enviassem delegados a Petrogrado. Se Kerensky era
impotente para garantir a realização do Congresso, isso seria feito pelo Comitê
Militar Revolucionário.
O
Comitê conquistou a confiança das guarnições de Petrogrado, incluindo os
reticentes soldados da Fortaleza de Pedro e Paulo, cárcere dos revolucionários
durante décadas. Finalmente, o Soviete deu instruções para que as guarnições
obedecessem exclusivamente as decisões do Comitê Militar. Os regimentos e as
guardas vermelhas ficaram sob a direção indiscutível de Trotsky.
Nas
vésperas da realização do II Congresso, a 23 de outubro o Comitê Militar
colocou em marcha o plano de defesa da cidade. Ocuparam-se na madrugada as
posições estratégicas da cidade, como a Central de Correios e Telégrafos. De
todos os distritos da cidade se lançam destacamentos armados, batendo às portas
ou entrando sem bater e ocupando militarmente os edifícios públicos. Em quase
toda a parte os trabalhadores os esperam ansiosos.
Nas
estações de trem, o Comitê Militar Revolucionário enviou comissários nomeados
especialmente para vigiar a chegada e partida de trens, principalmente os que
transportam soldados.
Enquanto
os periódicos burgueses clamavam furiosamente pela violência, os saques e rios
de sangue que correriam com a insurreição, os soldados, marinheiros e operários
das guardas vermelhas, executando as ordens vindas do Smolny, sem disparar um
tiro e sem derramamento de sangue, iam ocupando todos os prédios públicos.
Trotsky
propagandeou e “legalizou” o armamento das guardas vermelhas e da guarnição de
Petrogrado para defender a cidade de um possível ataque alemão e garantir a
realização do II Congresso dos Sovietes, a 24 de outubro de 1917. Com isso,
preparou as condições para transformar uma tática defensiva em uma manobra
ofensiva (um rápido golpe fulminante ao que restava do aparato estatal burguês)
o que lhe permitiu tomar o poder na capital imperial sem disparar um único
tiro. Dito de outra maneira, a insurreição de Petrogrado constituiu a expressão
máxima da combinação de manobras de posição (defesa) com a guerra de movimento
(ataque). Isto fez com que Harold Nelson definisse o plano de Trotsky como
“praticamente inexpugnável: por trás de uma defensiva tática, ele escondia uma
ofensiva estratégica”.
Entre
24 e 25 de outubro as guardas vermelhas e a guarnição de Petrogrado tomaram a
cidade. O único edifício que ainda não fora tomado era o Palácio de Inverno.
Enquanto os delegados debatiam e tomavam decisões no II Congresso, o cruzeiro
Aurora bombardeou o Palácio com balas de festim. A rendição das últimas sombras
políticas da burguesia encasteladas no velho prédio estava garantida. Os
bolcheviques contaram com 2/3 dos delegados no Congresso, que somados aos
socialistas revolucionários de esquerda resultavam 75% da representação
soviética.
"A
tomada do poder político estava consumada. Era o triunfo da revolução de
Outubro. Seu maestro, Trotsky. Segundo Deutscher, em seu retorno da
clandestinidade em Viborg, Lênin “reconheceu Trotsky, sem reservas, como um
companheiro monumental numa ação também monumental”.
Uma contribuição chave para o marxismo na época imperialista
Uma das maiores contribuições de Trotsky ao marxismo foi ser o teórico (e prático) da insurreição proletária, ou seja, da tomada do poder político. Seus escritos enfatizaram como as posições conquistadas da classe operária devem servir ao combate que – dirigido por um partido revolucionário – concentre num ponto determinado a tensão de todas as forças para desferir um golpe mortal no Estado burguês. Trotsky analisou caso a caso distintos processos revolucionários e os momentos históricos de desagregação do poder burguês, definindo as situações precisas da articulação entre a preparação defensiva e a ofensiva da classe operária, para tomada do poder ou para conquistar novas posições preparatórias visando a batalha decisiva: a insurreição revolucionária de massas e a tomada do poder.
A
não preparação e utilização das posições conquistadas para fortalecer a classe
trabalhadora como sujeito político independente para a revolução é a base do
fracasso de distintas correntes da esquerda que vislumbram posições na
democracia burguesa como “fins em si mesmas”. Enquanto revolucionários, devemos
pensar, pelo contrário, cada posição em função de sua utilidade para o combate
e no fragor das lutas atuais, em meio à crise mundial, desenvolver a tarefa
apaixonante de dotar os trabalhadores da ferramenta política que destruirá o
capitalismo.
Como
diz Trotsky, “O marxismo se considera como expressão consciente de um
processo histórico inconsciente. Mas o processo ‘inconsciente’ em sentido
histórico-filosófico só coincide com sua expressão consciente nos pontos
culminantes, quando as massas, pelo impulso de suas forças elementares,
arrebentam as comportas da rotina social e dão uma expressão vitoriosa às
necessidades mais profundas da evolução histórica. A consciência teórica mais
elevada que se tem de uma época, em um determinado momento, se funde com a ação
direta das camadas mais profundas das massas oprimidas, afastadas de toda
teoria. A fusão criadora do consciente com o inconsciente é o que se chama
comumente inspiração. A revolução é um momento de impetuosa inspiração da
história”.
Um comentário:
louco esse artigo
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