Ainda acerca da crise económica. 1) o declínio dos Estados Unidos
A administração Obama permanece de olhos postos nos principais países emergentes, especialmente na China. Porém, como esperar uma ajuda desse lado se a economia norte-americana e as novas economias em ascensão revelam não só situações distintas ou até opostas, mas tendências divergentes? Por João Bernardo
Em Fevereiro de 2009, aquando do lançamento deste site, publiquei o artigo Perspectivas do capitalismo na actual crise económica, que diferiu do que era então hábito escrever acerca desse tema na extrema-esquerda. Defendi que não se tratava de uma crise global do capitalismo mas de uma crise no interior do capitalismo, motivada por uma deslocação dos centros de hegemonia económica. Observando o que se passou no ano e meio seguinte, parece-me que a minha análise e as minhas previsões foram confirmadas. (Devo prevenir os leitores de que, consoante o uso português, chamo mil milhões ao que os brasileiros chamam bilhão, ou seja, 109, e bilião ao que no Brasil se chama trilhão, um milhão de milhões, ou seja, 1012.)
Crise no, e não do, capitalismo
É frequente que os jornalistas e mesmo alguns comentadores um pouco mais sérios comparem a recessão iniciada nos Estados Unidos em Dezembro de 2007 com a grande depressão da década de 1930. Enquanto de 1990 até 2006 o output [1] mundial cresceu a uma taxa anual de cerca de 3%, nos últimos meses de 2008 e em 2009 as principais instituições económicas emitiram uma sucessão de previsões cada uma mais pessimista do que a anterior. No final de 2008 o Fundo Monetário Internacional previu que a economia mundial cresceria 2,2% em 2009, o que equivale a menos de metade da taxa de crescimento de 2007, e em Janeiro de 2009 o prognóstico baixou para um crescimento de 0,5%, o número mais baixo nos últimos sessenta anos. Em Abril, porém, já não foi um crescimento reduzido que o Fundo anunciou para o ano de 2009, mas uma diminuição de 1,3% do output global, enquanto a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) preveniu, na mesma ocasião, que a economia mundial se contrairia 2,7% em 2009. O optimismo, aliás muito relativo, regressou em 2010, com as previsões sucessivamente corrigidas num sentido mais elevado ao longo do primeiro semestre do ano, e em Abril o Fundo Monetário Internacional noticiou que o output global atingira o nível em que se havia situado antes do início da recessão. Em Julho o Fundo, que antes considerara que a economia mundial cresceria 4,2% em 2010, passou a admitir um crescimento de 4,6%.
«A crise mata-nos»
De 1990 até 2006 o volume do comércio mundial cresceu a uma taxa anual superior a 6%, mais do dobro do crescimento do output mundial. Depois, embora com um pequeno atraso, o comércio mundial acompanhou a crise. No primeiro semestre de 2008 o crescimento do comércio mundial obedeceu a uma taxa anualizada de 20%, em termos de dólar, mas a progressão foi menor no segundo semestre e, de acordo com o Fundo Monetário Internacional, em Setembro o comércio mundial entrara já em retracção. Tudo somado, em 2008 o comércio mundial declinou mais rapidamente do que o output mundial, e no começo de 2009 estava a contrair-se a um ritmo sem precedentes desde o pós-guerra. Segundo o Banco Mundial, o valor em dólares do comércio mundial em Maio de 2009 foi cerca de 1/3 inferior ao que havia sido um ano antes.
Mas esta perspectiva global é ilusória. A depressão da década de 1930 atingiu todo o planeta, salvo duas excepções: a Palestina, que de 1933 em diante a Agência Judaica inundou de capitais germânicos, devidos ao Acordo de Transferência que descrevi brevemente num artigo deste site; e a União Soviética, onde os planos quinquenais stalinianos se revelaram a fórmula adequada àquelas circunstâncias sociais e àquela situação económica, malgrado tudo o que posteriormente se pretendeu. A actual recessão, no entanto, não é mundial e, pelo contrário, dividiu os países num grupo declinante, que não consegue ultrapassar as dificuldades económicas, parecendo às vezes sair de uma situação grave para cair noutra pior; e num grupo em ascensão, no qual se depositam hoje as esperanças do capitalismo mundial. Esta crise consiste, antes de mais, numa reordenação interna dos centros de crescimento económico. Vejamos o declínio dos Estados Unidos.
A recessão
Formalmente, a recessão iniciou-se nos Estados Unidos no último mês de 2007 e terminou no segundo trimestre de 2010, mas, como sempre sucede nos processos económicos e sociais, as cadeias de causas e consequências impossibilitam o estabelecimento de limites rigorosos. Durante a década de 2000 o Produto Interno Bruto (PIB) real norte-americano cresceu a uma taxa média anual de 1,9%, enquanto havia crescido a uma taxa média anual de 3,9% ao longo das seis décadas anteriores. Pior do que a década de 2000 só a famigerada década de 1930, quando o crescimento médio anual foi 0,9%. E, para me reportar ao plano em que a crise se desencadeou, as dívidas das firmas financeiras norte-americanas aumentaram continuamente durante as duas décadas anteriores a 2008, passando de 39% do PIB para 111%. Os acontecimentos de 2007 e 2008 vinham já a ser preparados desde há algum tempo.
«Redução de preço. Execução de hipoteca. Propriedade do banco»
E foram preparados igualmente no mercado imobiliário. De 1965 até 1997 a percentagem de famílias norte-americanas proprietárias da sua residência mantivera-se em 64%. A taxa máxima foi atingida em 2006, com 69%, e ainda no final de 2008 67,5% das famílias eram proprietárias das suas casas. Mas a posse das residências serviu para aumentar as dívidas. Em 1989, 47% dos agregados familiares de «classe média» contraíram uma hipoteca, e a percentagem passou para cerca de 60% em 2007. Nestas circunstâncias, qualquer variação no preço das habitações teria efeitos ampliados sobre o endividamento e a capacidade de consumo das famílias e, por aí, sobre o ritmo de crescimento de toda a economia. Até que o desastre aconteceu. Os preços das habitações caíram tanto e tão depressa que, segundo estimativas do Deutsche Bank, no final do primeiro trimestre de 2009, 27% dos agregados familiares com hipotecas tinham dívidas hipotecárias superiores ao valor da residência.
Precipitada pela crise das hipotecas, a crise financeira norte-americana provocou, por seu turno, uma crise na construção de casas. Todavia, o facto de os preços das casas em Janeiro de 2009 estarem 29% abaixo do nível máximo que antes haviam atingido levou a uma reanimação do mercado imobiliário. A construção de casas subiu à taxa anual de 23,4% no terceiro trimestre de 2009, ajudada por um crédito fiscal de 8.000 dólares concedido pelo governo a quem comprasse casa nova. Porém, a venda de casas novas caiu 3,6% em Setembro de 2009 e, após ter subido 6,2% em Outubro, desceu 11,3% em Novembro e de novo 11% em Janeiro de 2010, continuando a descer em seguida, o que revela a fragilidade do actual mercado imobiliário norte-americano, incapaz de se sustentar depois de terminado o prazo para beneficiar daquele crédito fiscal. Em Maio de 2010 a compra de casas novas caiu 33% relativamente ao mês anterior.
Ao mesmo tempo, e dado o facto de os departamentos de crédito ao consumidor serem os mais rentáveis, quando não os únicos rentáveis, das três empresas automobilísticas norte-americanas, a crise financeira acarretou uma crise no fabrico de automóveis. Como tive ocasião de indicar em Perspectivas do capitalismo na actual crise económica, os departamentos de crédito ao consumidor da General Motors e da Ford colocavam estas companhias industriais entre as maiores instituições financeiras do país, o que contribuiu para contagiar alguns ramos cruciais da indústria com as calamidades do sector financeiro. No primeiro trimestre de 2009 a produção industrial caiu a uma taxa anualizada superior a 20%, mas no segundo trimestre houve uma relativa melhoria nas despesas das empresas, que desceram só 8,9% em comparação com uma queda de 39,2% no primeiro trimestre. Afinal, em Setembro de 2009 o output industrial estava 15% mais baixo do que no começo da recessão, em Dezembro de 2007.
Do mesmo modo que a data inicial da recessão não pode ser assinalada com precisão, também o seu termo estatístico não corresponde a qualquer robustecimento efectivo da economia dos Estados Unidos. Durante uma crise, com o declínio da actividade produtiva os stocks vão-se esgotando, e o final da crise ocorre com a reposição dos stocks. Ora, já em meados de 2009 os indicadores económicos haviam apontado para uma estabilização da situação e no final de Setembro desse ano a Reserva Federal declarou que estava a ocorrer a retoma [recuperação] da economia do país. Com efeito, o crescimento recomeçou nos meados de 2009 e acelerou-se bastante nos últimos meses do ano. Tudo somado, de acordo com os dados oficiais, o PIB cresceu apenas 0,4% em 2008 e o seu declínio acumulado foi de 3,7% desde o final de 2007. Em 2009 a economia retraiu-se 2,4%, embora com uma melhoria no segundo trimestre, quando se contraiu a uma taxa anualizada de 1%. Porém, no terceiro trimestre de 2009 o PIB já cresceu a uma taxa anualizada de 3,5% relativamente ao trimestre anterior, sendo o primeiro aumento desde o segundo trimestre de 2008; e no último trimestre o output cresceu a uma taxa anualizada de 5,7%. Em Maio de 2010 a OCDE pôde prever para esse ano um crescimento de 3,2%, o que mostra que os negócios haviam corrido melhor do que se esperara, porque em Março do ano anterior a OCDE havia previsto um declínio de 4% da economia norte-americana em 2009 e um crescimento zero em 2010.
No entanto, a retoma da actividade económica nos Estados Unidos sustenta-se em bases precárias, que em boa medida decorrem de fragilidades mais antigas.
O desemprego
A taxa de desemprego é um indicador crucial, porque revela a relação entre a actividade das empresas e o comportamento do consumo particular. Não só os desempregados ganham menos, ou não ganham nada, como o desemprego pressiona à baixa dos salários dos que estão empregados. Nos Estados Unidos, entre o terceiro trimestre de 2008 e idêntico período de 2009 as remunerações dos trabalhadores aumentaram apenas 1,6%, a taxa mais baixa desde que este dado começou a ser corigido.
Ora, entre 1940 e 1999 o número de norte-americanos empregados fora do sector agrícola cresceu a uma taxa média decenal de 27%, mas na década de 2000 caiu 0,8% e em 2009 caiu 3,6%. Isto significa que, enquanto entre Dezembro de 1999 e Dezembro de 2009 a população dos Estados Unidos aumentou cerca de 30 milhões, surgiram só 400.000 novos empregos. E apesar de a economia se ter expandido na segunda metade de 2009, perderam-se nesse período 800.000 postos de trabalho. Em Setembro de 2009 o emprego era 15% inferior ao que fora em Dezembro de 2007, no início da recessão. Aliás, a taxa de 10,2% de desempregados em Novembro de 2009 chegaria quase aos 18% se fosse levado em conta o subemprego. Por cada novo emprego que se oferece há mais de seis desempregados a candidatar-se, e em Março de 2010, além dos 15 milhões de norte-americanos sem trabalho, outros 9 milhões laboravam contra a vontade em part-time. Além disto, a taxa de 9,5% de desempregados em Junho de 2010 deveu-se sobretudo ao facto de muita gente ter desistido definitivamente de procurar emprego e, assim, desaparecer das estatísticas.
Apercebemo-nos melhor da gravidade da situação ao sabermos que as empresas com menos de 500 empregados foram responsáveis por 64% dos novos postos de trabalho criados entre 1993 e o terceiro trimestre de 2008. Mas enquanto as grandes empresas obtêm só 30% do seu financiamento a partir dos bancos, as pequenas empresas obtêm 90%, sendo elas as que mais sofrem com a redução do crédito e mais dificuldades sentem nas actuais circunstâncias. No começo de 2010 a administração Obama anunciou que, de acordo com as suas previsões, durante este ano seriam criados apenas 95.000 postos de trabalho mensalmente e a taxa de desemprego permaneceria em 2011 acima dos 9%.
Ao invés do que imaginam os revolucionários de campus universitário, não é nos períodos de crise económica que se geram e alastram grandes lutas, porque a subida do desemprego, aumentando a concorrência dos trabalhadores no mercado de trabalho, refreia a contestação. A tal ponto os administradores das empresas conhecem este efeito suscitado pelo medo de perder o emprego, que muitas vezes despedem [demitem] mais pessoal do que seria estritamente necessário. Apesar disto, fico perplexo ao saber que, segundo o FBI, a venda de armas de fogo subiu 31% no período entre Novembro de 2008 e Janeiro de 2009 relativamente a igual período um ano antes. Quem estava a ter medo de quem?
Limitando-me ao plano estritamente económico, uma parcela do desemprego, denominada friccional, é pouco significativa porque resulta da mobilidade da força de trabalho e da deslocação de empresas de um lugar para outro, fazendo-se sentir apenas a curto prazo. Verdadeiramente grave é o desemprego a longo prazo porque, além de reflectir uma crise séria na actividade produtiva e de ter efeitos especialmente negativos sobre os rendimentos familiares, leva o desempregado a esquecer gradualmente muitas das suas qualificações e impede-o de adquirir qualificações novas. Se uma crise consiste numa destruição de capital, então o desemprego a longo prazo consiste numa destruição das qualificações do trabalhador, com efeito de ricochete sobre a produtividade geral. É preferível para o capitalismo reduzir as horas de trabalho do que reduzir os postos de trabalho. Nesta perspectiva é especialmente grave o facto de no final de 2009 cerca de 6 milhões de norte-americanos, o que correspondia a 40% dos cerca de 15 milhões de desempregados, estarem sem trabalho há 27 semanas ou mais, a mais alta taxa desde 1948, quando começou a ser elaborado este tipo de estatística. E o record foi batido em meados de 2010, com um período médio de desemprego de mais de 35 semanas. Ultrapassado um certo limite, muitos desempregados desistem e deixam de procurar trabalho, sendo então esquecidos pela estatística oficial que, se os incluísse, apresentaria uma taxa de desemprego muito superior. Eles representam uma perda absoluta na produtividade geral.
Contrariamente ao que é comum pensar na extrema-esquerda, o crescimento da produtividade leva ao aumento do emprego. É certo que, por um lado, as inovações tecnológicas deixam sem ocupação muitos profissionais ligados às tecnologias caducas e fazem com que se percam postos de trabalho nos ramos que expandiram a automatização. Por outro lado, todavia, o aumento da produtividade suscita o desenvolvimento económico e a criação de novas oportunidades de investimento e de novos ramos de actividade, com a consequente multiplicação do emprego. Dois séculos de história do capitalismo demonstram que o crescimento da produtividade gera muitíssimo mais empregos do que aqueles que destrói. No entanto, esta compensação pode demorar. Durante algum tempo o acréscimo da produtividade pode conviver com uma redução do emprego, e o desfasamento [a defasagem] será tanto mais prolongado quanto mais lento for o ritmo daquele acréscimo. Ora, não parece que os Estados Unidos estejam aptos a conseguir um arranque da produtividade tal que absorva a enorme quantidade de desempregados.
O consumo particular e o endividamento
O desemprego elevado e persistente somou-se à crise das hipotecas desencadeada em 2007, tendo como resultado uma redução do consumo particular. Esta situação é especialmente grave porque desde há bastante tempo o consumo particular tem sido o motor da economia norte-americana. As despesas de consumo e os investimentos em habitação aumentaram de 67% do PIB em 1980 para 75% em 2007 e foram responsáveis, logo antes da recessão, por mais de 70% das despesas totais, e por 77% do crescimento económico entre 2000 e 2007.
Ora, o salário mediano dos trabalhadores norte-americanos, avaliado em termos reais, manteve-se praticamente sem alterações desde a década de 1970, por isso o nível de consumo elevado implicou uma alta taxa de endividamento. O aumento salarial que deve acompanhar o crescimento da produtividade assumiu a forma perversa de um aumento do crédito. Em 1945 o crédito ao consumo nos Estados Unidos aproximou-se de 5,7 milhares de milhões de dólares, subindo para cerca de 43 milhares de milhões de dólares em 1955 e chegando a 100 milhares de milhões em 1966, 500 milhares de milhões em 1984 e 1 bilião em 1994. O crédito ao consumo atingiu o nível máximo em Julho de 2008, alcançando quase 2,6 biliões de dólares.
Em 2007 a dívida dos agregados familiares aproximava-se de 100% do PIB. Isto significa que a taxa de poupança dos agregados familiares, que em 1980 havia sido de 10% do rendimento disponível, caiu para próximo de zero em 2007, enquanto a taxa de endividamento familiar subiu de 67% do rendimento disponível para 138%. Richard Berner, um dos directores e dos principais economistas da firma financeira Morgan Stanley, calculou que nos dez anos anteriores a 2009 a proporção dos rendimentos familiares destinada ao serviço da dívida aumentou de 12% para 14%.
«Liquidação. Tudo a 5 dólares»
A situação atingiu um ponto crítico durante o ano de 2008, quando a riqueza líquida dos agregados familiares caiu 18%, uma descida sem precedentes, correspondente a uma perda de 11,2 biliões de dólares. Nestas condições, o volume do crédito ao consumo diminuiu 4,4% em 2009 e, correlativamente, a taxa de poupança familiar subiu, passando para 5% do rendimento disponível no segundo trimestre de 2009, uma mudança considerável depois de ter estado próxima de zero. Mas note-se que esta taxa mantinha-se ainda abaixo da média de 7% posterior à segunda guerra mundial. Importa, no entanto, considerar que, como cada aumento de 1% na taxa de poupança corresponde a uma redução anual da procura no montante aproximado de 109 milhares de milhões de dólares, as despesas de consumo desceram em 2008 para 70% do PIB. É significativo também saber que o número de cartões de crédito em circulação diminuiu de quase 1/5 no primeiro trimestre de 2010, enquanto o não pagamento das dívidas em cartão de crédito atingiu o nível sem precedentes de 13%.
A maior parte do endividamento nos Estados Unidos é interna, quer dizer, cidadãos do país devem a outros cidadãos, o que não evita riscos elevados, porque se as dívidas internas não forem respeitadas isto provoca reacções negativas em cadeia. No entanto, como a crise do sistema financeiro norte-americano teve repercussões em todo o mundo, os problemas mais graves devem-se ao endividamento externo.
O endividamento externo
Além do endividamento dos agregados familiares, há que considerar o endividamento das empresas e a dívida pública. Nos Estados Unidos as dívidas do sector privado, que em 1950 equivaliam a cerca de 50% do PIB, atingiram quase 300% no auge anterior à crise, e a dívida pública federal bruta corresponde a 85% do PIB. Usando outro critério e excluindo as instituições financeiras e o governo federal, a dívida norte-americana no começo de 2009 correspondeu a cerca de 190% do PIB, a taxa mais elevada desde a década de 1930.
A balança de conta corrente, que mede o equilíbrio entre o que um país recebe do estrangeiro e os pagamentos que efectua ao exterior, tivera um excedente de 0,4% do PIB em 1980, mas entrou em défice em 1992 e o saldo negativo acentuou-se especialmente a partir de 1997, atingindo em 2006 um máximo de 804 milhares de milhões de dólares, correspondente a 6% do PIB. Apesar do declínio gradual do dólar a partir de 2002, o défice em conta corrente continuara a aumentar. Este défice destinou-se sobretudo a financiar o consumo e não o investimento produtivo interno, ou seja, não reflectiu qualquer aumento da taxa de investimento, mas uma descida da taxa de poupança. Em vez de servir directamente para as empresas norte-americanas expandirem as suas operações, o afluxo de capitais estrangeiros serviu, em boa medida, para a população do país ampliar o seu consumo, e só por aí se activou a economia, o que indica uma estrangulação da produtividade.
Ora, como é o sistema bancário a converter o afluxo das poupanças externas em crédito aos consumidores privados, a partir de certo ponto o endividamento destes consumidores pôs em risco o valor das suas garantias e, por aí, acarretou a crise do sistema bancário, o que não aconteceria se tivesse sido maior a percentagem do crédito dirigido para o investimento produtivo interno. E apesar de o Fundo Monetário Internacional ter previsto, em meados de 2009, que nesse ano e em 2010 o défice em conta corrente seria inferior a 3% do PIB, o certo é que no final de 2009 ele atingira já os 12%, a percentagem máxima desde a segunda guerra mundial, e era ainda de cerca de 9% nos meados de 2010. Nessa ocasião previa-se que em 2010 o défice chegasse a 1,3 biliões de dólares.
As hesitações da administração Obama
Chegou-se assim a uma situação duplamente grave, porque as despesas particulares diminuíram mas o défice em conta corrente permanece elevado. A administração Obama hesita perante esta contradição.
Por um lado, a administração continua a estimular o consumo, e as despesas de consumo subiram 3,4% no terceiro trimestre de 2009, em boa medida graças aos subsídios governamentais para a compra de automóveis novos. Nesse mesmo período a taxa global de poupança caiu para 10% do PIB, metade do que havia sido dez anos antes, porque embora os agregados familiares passassem a poupar mais, as despesas governamentais actuaram em sentido contrário. De qualquer modo, no final de 2009 a dívida dos agregados familiares, avaliada em percentagem dos rendimentos familiares, mantinha-se 30% acima do que fora uma década antes. Mas a fragilidade da retoma do consumo fica ilustrada ao verificarmos, como já referi, a persistente queda da compra de casas novas depois de encerrado o crédito fiscal destinado a estimular este tipo de aquisições.
O comércio externo poderia compensar a redução do mercado interno e contribuir para reequilibrar a balança de pagamentos, mas não é isto que acontece. No começo da década de 1950 os Estados Unidos foram responsáveis por 18% das exportações mundiais, e esta percentagem caiu para 8% em 2009. Simetricamente, a percentagem do consumo industrial interno satisfeita por importações, que fora de 31% em 1998, aumentou para 37% em 2008, segundo Dan Meckstroth, economista-chefe da Manufacturers Alliance, uma organização de pesquisa económica sustentada por médias e grandes companhias.
E assim, enquanto, por um lado, toma medidas de estímulo do consumo, a administração Obama pretende, por outro lado, aumentar as exportações do país. Larry Summers, director do Conselho Económico Nacional (o gabinete económico do presidente), declarou em Julho de 2009 que «a reconstrução da economia americana deve orientar-se mais para as exportações e menos para o consumo» e, no seu discurso sobre o Estado da União em Janeiro de 2010, o presidente Obama fixou o objectivo de duplicar as exportações norte-americanas nos próximos cinco anos.
Estas intenções não têm correspondido à realidade porque, se o défice dos Estados Unidos passou de 6% do PIB em 2006 para cerca de 2,8% no segundo trimestre de 2009 (numa taxa anualizada), isto não se deveu a qualquer aumento das exportações, que entre o último trimestre de 2007 e o segundo trimestre de 2009 caíram 215 milhares de milhões de dólares (a uma taxa anualizada e em dólares de 2005), mas ao facto de as importações terem descido mais ainda, num montante de 440 milhares de milhões de dólares. Para ultrapassar estas dificuldades, a administração Obama parece contar mais com as pressões diplomáticas exercidas sobre a China do que com uma reanimação da actividade industrial e um aumento da produtividade. Essas pressões batem à porta errada, todavia, porque enquanto para o Canadá e o México, que são os dois maiores mercados de exportação dos Estados Unidos, as exportações desceram 14% entre Outubro de 2008 e Outubro de 2009, cresceram 13% para a China, que é o terceiro maior mercado das exportações norte-americanas. No final de 2007, pela primeira vez mais de 50% das exportações dirigiram-se para os países emergentes e a percentagem tem vindo a aumentar. De qualquer modo, Mohamed El-Erian, da PIMCO, uma empresa de gestão de fundos, observou que a transição de uma expansão económica baseada no consumo para outra baseada na exportação levaria a uma taxa de crescimento baixa durante um longo período, acompanhada por um desemprego elevado.
Não parece desenhar-se uma saída clara, e embora a situação dos Estados Unidos tenha melhorado, não creio que esteja a edificar uma base sólida para retomar o crescimento. A administração Obama permanece de olhos postos nos principais países emergentes, especialmente na China. Porém, como esperar uma ajuda desse lado se a economia norte-americana e as novas economias em ascensão revelam não só situações distintas, mas tendências divergentes? Ultimamente, nos debates económicos em língua inglesa tem-se falado muito de decoupling, a acção de desenganchar ou desengatar, como quando se separam dois vagões de caminhos-de-ferro [estradas de ferro], por exemplo. Será que os países emergentes com maior taxa de crescimento seguirão velozmente pela via principal enquanto os Estados Unidos se encaminham para uma via de garagem?
Nota
[1] Em economia, o termo output denota o conjunto dos bens e serviços produzidos numa empresa, num país ou num grupo de países.
Esta série inclui os seguintes artigos
1) O declínio dos Estados Unidos
2) A nova hegemonia
3) A China em primeiro plano
4) O problema da produtividade
5) Transnacionalização e espaços nacionais
6) A crise do neoliberalismo
7) Uma crise de regulação
8) A crise de regulação na zona do euro
Fonte: http://passapalavra.info/
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