As elites e os Estados árabes, um modelo em crise
Para EUA e aliados, a Arábia Saudita é a última fortaleza a ser preservada da “contaminação revolucionária”. Porém, se levarmos em consideração as recentes atitudes do monarca saudita, as fissuras já aparecem. Após passar meses hospitalizado, o monarca foi tomado por um verdadeiro surto humanitário e prometeu despejar US$ 37 bilhões em medidas de seguridade social, habitação e emprego. Como lembrou Robert Fisk, a revolta árabe, que deu início à derrota do império otomano começou nos desertos da Arábia. Resta ver se a história se repete, mas não como farsa.
O que aconteceu na Tunísia, Egito, Iemen e Líbia pode ainda acontecer em todo o mundo árabe revelando o colapso de uma ordem pós colonial que há muito tempo perdeu a sua legitimidade. Provavelmente, se não tivesse ocorrido a invasão militar, o Iraque também estaria nessa lista. Inspirados pelas rebeliões que ocorrem em todo o mundo árabe milhares de iraquianos, de várias regiões saíram às ruas nessa semana para protestar de forma pacífica contra a corrupção e a falta de serviços básicos. Oito anos após a invasão liderada pelos EUA que derrubou o ditador Saddam Hussein há falta de comida, água, eletricidade e empregos.
As rebeliões aparecem, cada vez mais, como um reflexo da falência não apenas do desempenho de seus líderes, da forma de governo adotada (repúblicas ou monarquias) ou do projeto nacionalista iniciado na década de 50, mas sim da essência desses Estados. O Islamismo e o nacionalismo árabe sempre competiram em torno de qual deveria ser o verdadeiro fator de substituição do imperialismo e de unificação das diversidades étnicas, tribais e religiosas nas sociedades árabes. As facções militares, portadoras de um nacionalismo secular, substituíram a velha oligarquia como uma panacéia para todos os males árabes, incluindo o subdesenvolvimento.
Tanto o islamismo como o nacionalismo secular procuraram construir sua legitimidade quase que, exclusivamente, numa postura antiimperialista que se articulou à rejeição do Estado de Israel, mas era desprovida de programas de reformas econômicas, mecanismos de participação política e de integração que permitissem integrar suas respectivas sociedades ou de solidificar o sentimento de uma comunidade árabe de caráter transnacional.
Sem qualquer sinal de rejeição da presença islâmica, mas com uma ênfase na reivindicação de liberdade de expressão, direitos humanos e melhorias socioeconômicas os novos movimentos são, provavelmente, o melhor antídoto às identificações sectárias. Apesar de desvinculado do antigo projeto nacionalista, o imaginário de uma identidade árabe continua com vigor e pode ser o unificador potencial contra possíveis tendências de desintegração e de intervenção estrangeira na região. Essas perspectivas promissoras de democratização na sociedade civil com sua atenção voltada para o bem-estar das massas são fortes, apesar da permanência das elites no processo de transição.
O desafio maior é mudar o perfil desses “Estados rentistas” cujo funcionamento do sistema político e parte substancial das suas receitas provêm de rendas derivadas dos recursos naturais, especialmente petróleo. Além disso, ultimamente, esses Estados também têm se sustentado fortemente em pagamentos multilaterais de ajuda externa, ajuda ao desenvolvimento ou de assistência militar, agora denominadas “rendas estratégicas”. O nível elevado da renda nacional e a ausência de distribuição de renda nesses “Estados rentistas” têm como base um contrato social implícito entre as elites ( locais e internacionais) que só pode ser sustentável, desde que haja recursos suficientes para ser distribuído em uma ampla coalizão de interesses constituída por empresas petrolíferas, indústrias de defesa e empresas de lobby. (ver excelente matéria no HUFFPOST Marcus Baram Libyan Opposition Leaders Slam U.S. Business Lobby's Deals With Gaddafi, traduzida e publicada aqui na Carta Maior).
Existe uma forte correlação positiva entre a renda real e a força do sistema do Estado. A noção de "comprar" o consentimento popular que, por sua vez, concede legitimidade ao regime é pedra angular desse sistema. O Estado dirige a sociedade e cria um sistema de inclusão/exclusão construindo uma relação clientelista entre a classe rentista (não produtivos, considerados como cidadãos) e todo o resto da sociedade que não se beneficia da renda (parte da população que não desfruta de uma plena cidadania).
A tão alardeada paz e estabilidade nos Estados do Golfo (Qatar, Kuwait, Bahrein, Arábia Saudita e Emirados Árabes ) está alicerçada numa distinção muito clara entre os membros da sociedade. Lealdade para com a elite dominante local é aceita na medida em que os indivíduos encontram seus interesses econômicos adquiridos diretamente no Estado. Assim “sair” da comunidade local ou nacional se traduz em enormes custos econômicos. Além disso, a distribuição das receitas petrolíferas também é usada como uma ferramenta para policiamento por meio da deportação ou privação de cidadania contra aqueles que se opõem à elite dominante.
Para os EUA e aliados, a Arábia Saudita é a última fortaleza a ser preservada da “contaminação revolucionária”. Entretanto se levarmos em consideração as recentes atitudes do monarca saudita, as fissuras já começaram aparecer. Após passar meses hospitalizado, o monarca, em seu retorno, foi tomado por um verdadeiro surto humanitário e prometeu despejar 37 bilhões de dólares em medidas de seguridade social, habitação e emprego. Como lembrou apropriadamente Robert Fisk a revolta árabe, que deu início à derrota do império otomano começou nos desertos da Arábia. Resta ver se a história se repete, mas não como farsa.
(*) Professor de Relações Internacionais da PUC/SP)
Fonte: Carta Maior
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