quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Uma população esquecida: 2012, a primavera sangrenta em São Paulo - Por Ronan

Uma população esquecida: 2012, a primavera sangrenta em São Paulo
O fato de um dos responsáveis pelo massacre do Carandiru, homem que responde por mais de 70 mortes, ter sido promovido a comandante da ROTA, elucida tudo. Por Ronan
A gestão de qualquer área ou instituição depende de uma série de acordos. Seja uma penitenciária, escola, manicômio ou centro cultural, há sempre uma previsão sobre como as coisas ocorrerão. Não se trata puramente de acordos explícitos. Na maioria dos casos o que ocorre é um acordo tácito, algo dado sem ser dito, sobre quais são as regras do jogo, como agirão os protagonistas. A atual guerra particular entre policiais e criminosos em São Paulo faz recordar essa observação básica. Se de uma hora para outra há um surto de violência, tendemos a especular sobre o que mudou nos procedimentos que envolvem a gestão da segurança pública e que servem para manter a relação entre policiais e bandidos num nível menos sangrento e mais racional.
Nem mesmo os jornalistas que cobrem a área, cheios de informantes e dados que os comuns não possuem, não conseguiram chegar a um entendimento exato do que se passa hoje. O governo Alckmin se recusa a dar esclarecimentos dignos desse nome, cobre os fatos com retóricas do dia, algumas tão estapafúrdias, que o governador chegou a declarar que o PCC [Primeiro Comando da Capital] era uma lenda. Apesar disso, a guerra segue e os efeitos são nefastos para toda a população. Um dado que explicita que há uma guerra particular com a polícia é que, diferentemente dos ataques do PCC de 2006, os agentes penitenciários não foram inclusos no alvo dos criminosos. Embora sejam muito mais fáceis de serem atingidos, não são eles o foco. Também não estão sendo atacados bombeiros, nem forças municipais. O que evidencia que não é um quadro de enfrentamento do Estado em si, mas um conflito realmente focado e com motivações circunstanciais.
Diante do que dispomos é preciso pontuar que o atual cenário está ligado ao fato de homens truculentos da polícia militar terem chegado ao alto escalão da segurança pública, o que levou à ascensão da ROTA (Rondas Ostensivas Tobias Aguiar) e à apologia de uma política mais letal, isso tudo num contexto de policialização da política (coronéis como subprefeitos de 30 das 31 subprefeituras, militares eleitos como vereadores). O atual secretário de segurança, Antônio Ferreira Pinto, principal dos secretários de Serra a prosseguir no governo Alckmin, é homem de carreira da polícia militar e abertamente defensor de métodos duros. Conforme André Caramante, sua assunção do cargo significou uma centralidade para a ROTA na estratégia de controle das ruas. Houve promoção de homens que, ou são diretamente da ROTA, ou possuem ligação estreita com a mesma e com o ideário que ela representa. O fato de um dos responsáveis pelo massacre do Carandiru, homem que responde por mais de 70 mortes, ter sido promovido a comandante da ROTA, elucida tudo.
Um quadro como esse nos faria supor que, com tantos homens duros no comando, a criminalidade esteja, enfim, recuando. Ao contrário da retórica dos durões, nem uma palha sequer foi movida na economia criminal. Os pontos de venda de drogas permanecem funcionando, com o devido pagamento aos policiais, o Estado está recheado de bares com máquinas caça-níqueis, o jogo do bicho tem tanta liberdade que já cobra com máquinas eletrônicas, os bingos e casas de jogos clandestinos pipocam por toda São Paulo, permanecem os roubos de carros, roubos em restaurantes, assaltos a condomínios, assaltos a carros fortes, assaltos a empresas de transporte de valores, explosão de caixas eletrônicos e roubo de cargas. A situação é tal que uma carga da Apple de 3,9 milhões de reais foi levada do aeroporto de Campinas num dia em que havia operação especial da polícia na cidade. Em muitos dos crimes há comprovada participação de policiais, ou como homens de ação ou como recebedores de propina.
Se a economia criminal não foi tocada em nada, qual a razão da primavera sangrenta, o que a justifica? Foram mais de 85 policiais mortos até agora, a maioria fora do serviço. A quantidade de criminosos mortos é bem maior e de civis vitimados também. Acompanhando pelos jornais, a guerra começou depois que a ROTA passou a emboscar criminosos, assassinando-os em sequência (não se sabe qual o critério de seleção). Com dados colhidos via investigação e bandidos cooptados, descobrem um plano de assalto, uma reunião de bandidos e os emboscam, levando-os à morte. Diante da fatalidade da morte, sem oportunidade do processo legal, os criminosos começaram a reagir e iniciou-se a matança de policiais. Toda uma guerra foi deflagrada por conta da aplicação de métodos particulares, inconstitucionais e sangrentos, caros a um batalhão da polícia e apoiados pelo secretário. Com a explosão dos homicídios, sem resultados efetivos quanto à queda da criminalidade, a população está pagando um preço muito alto para atender aos preceitos de uma parcela da PM. Talvez à visão particular de uns poucos.
A guerra, como não poderia deixar de ser, tem resultado em danos para a população, expectadora e vítima dos acontecimentos. A polícia, obviamente, não prende nem assassina os mais de 40 milhões que vivem no Estado de São Paulo, mas de acordo com a forma como atua impõe maior ou menor medo aos populares. Iniciada a guerra, virou padrão que logo após o assassinato de um policial ocorram vários homicídios na localidade em que o militar foi morto. Policiais à paisana, em carros, em motos, alguns encapuzados, saem logo em seguida matando pessoas para vingar a morte do colega tombado. Nesse processo, não são poucos os civis vitimados, logo taxados como bandidos pela mídia apressada e cínica. Quem não leva tiro tem a liberdade tolhida. Quando não há toque de recolher imposto pelos policiais, a própria sensação de medo se encarrega de manter todos em casa. Em vários cantos, basta estar em um bar depois de certas horas para se tornar um possível alvo.
Até o momento, o atual secretário de segurança, Antônio Ferreira Pinto, ficou imune às críticas e notícias veiculadas pelos jornais. Ao contrário, a queda veio do lado dos críticos. Um jornalista da Folha de São Paulo, André Caramante, foi obrigado a se exilar do país por conta das ameaças recebidas depois que publicou matéria a respeito da truculência do Coronel Telhada no Facebook – há mesmo todo um debate feito nos bastidores sobre se o governador não se tornou refém do secretário herdado de Serra e da ala dura que o cerca. Se um jornalista da Folha de São Paulo é obrigado a se exilar, podemos imaginar o que ocorre com o jovem da periferia que encara a brutalidade policial fora dos holofotes.
O caso tem servido, dentre outras coisas, para demonstrar na prática como os freios constitucionais contra a violência policial não funcionam no Estado de São Paulo. Defensoria pública, conselho tutelar, ouvidorias, nenhuma das instituições tem servido para parar a guerra que vitima pessoas alheias e amedronta a todos. São nas redes sociais, nos bares, nos bairros (quando há), nas organizações de vítimas da violência militar e nos saraus que se tem buscado dar uma resposta para a primavera sangrenta. No geral, como em tantas outras coisas, o povo teve que se virar e vai criando estratégias para sobreviver: voltando junto do trabalho, não saindo depois de tal horário, evitando dadas localidades.
Deve-se chamar a atenção para a forma como grossa parte da esquerda, meio artístico e intelectual, praticamente fugiu do assunto, fazendo de conta que não há uma guerra, com muitos inocentes vitimados e toda uma população afetada. De uma parte isto se deve ao distanciamento quanto ao cotidiano dos comuns, de outro, há mesmo certo elitismo que só pronuncia a palavra ditadura quando a vítima era um quadro, pessoa que ia ser alguém na vida. Mas, também, há o caso infeliz de a guerra se passar em ano eleitoral e o cabresto partidário da esquerda evitar que ela se pronuncie para não ser associada pelos opositores com o crime, não correr o risco de ser acusada de defender bandidos. Diante dos interesses eleitorais desta esquerda, os populares ficaram, mais uma vez, sozinhos.

Razões e estratégias do Ecossocialismo – Por Michael Löwy

Razões e estratégias do Ecossocialismo
Michael Löwy explica por que proposta diverge do “socialismo real”, vai além do ambientalismo e precisa de vitórias parciais
Por Michael Löwy | Imagem: Marc Chagall, Os Amantes de Vence (detalhe)
O famoso marxista italiano Antonio Gramsci dizia que o revolucionário socialista deve combinar o pessimismo da razão com o otimismo da vontade. Desse modo, dividirei em duas partes este artigo que discute as alternativas de desenvolvimento para superar o modelo produtivista-consumista. Em primeiro lugar, tratarei do pessimismo da razão: as coisas vão mal. E, em seguida, do otimismo da vontade: quem sabe, elas podem mudar, e um caminho para isso é o do ecossocialismo.
A primeira parte discorre, portanto, sobre o pessimismo da razão. Simplesmente somos obrigados a constatar que o atual modelo de desenvolvimento do capitalismo industrial moderno, particularmente em sua variante neoliberal, baseada no produtivismo e no consumismo, está conduzindo a humanidade – e não o planeta – a uma catástrofe ecológica ou ambiental sem precedentes em sua história.
Por que digo “a humanidade” e não “o planeta”? Porque o planeta, qualquer que seja o estrago que façamos, vai continuar tranquilo, girando. Ele não será atingido. Quem será afetada pelo desastre ecológico será a vida no planeta, serão as espécies vivas, dentre elas a nossa, o Homo sapiens. Esse é o âmago do problema, que serve para evitar discussões um pouco abstratas, como “temos que salvar o planeta”.
Porém, não é o planeta que está em perigo, somos nós e as outras espécies vivas. Isso porque a lógica atual do sistema, de expansão e crescimento ao infinito, e o atual modelo de desenvolvimento, que segue a lógica do produtivismo e do consumismo, conduzem, inexoravelmente – e independentemente da boa ou da má vontade de empresários ou governos – à degradação do meio ambiente e à destruição da natureza.
Isso se manifesta em vários aspectos, como no desaparecimento de algumas espécies. Já se calcula que, com o business as usual, como diz a expressão americana, daqui a algumas dezenas de anos não vão mais existir os peixes. São espécies que existem há milhões de anos e que a humanidade consome há dezenas de milhares de anos. E já estão desaparecendo.
Outro aspecto importante é o envenenamento, por meio da poluição, do ar das cidades, da terra, do solo, dos rios, do mar, ou seja, a degradação dos equilíbrios ecológicos. Uma série de aspectos que vão se acumulando, e, com todos esses elementos, o sinal vai passando do amarelo para o vermelho. No entanto, o mais grave de todos esses aspectos da destruição do meio ambiente e dos desequilíbrios ecológicos, o mais ameaçador e inquietante, é a mudança climática ou o aquecimento global.
Não farei aqui uma análise científica disso, suponho que já seja de conhecimento geral. A emissão de gases a partir da queima dos combustíveis fósseis (carvão, petróleo, gás) e sua acumulação na atmosfera produzem o efeito estufa e o aquecimento global. Esse processo, a partir de certo nível de aquecimento, por volta de dois ou três graus a mais, vai conhecer uma espécie de aceleração e crescimento descontrolado que pode chegar a quatro, cinco, seis ou mais graus. E o que vai acontecer com isso?
No livro Six Degrees: Our Future on Hotter Planet (Seis Graus: nosso futuro em um planeta mais quente), o especialista inglês Mark Lynas descreve como será o planeta quando a temperatura subir seis graus. Segundo ele, se compararmos o inferno de Dante com o planeta com seis graus a mais, o inferno de Dante vai parecer um passeio de fim de semana. O autor analisa as consequências disso, como o desaparecimento da água potável e a desertificação, dois fenômenos que estão interligados. Alguns pesquisadores já calcularam que o deserto do Saara pode atravessar o Mediterrâneo e chegar à Europa, às portas de Roma, dentro de uma longa lista de outros desastres.
Outro aspecto ainda mais inquietante é a subida do nível do mar, que resulta do derretimento do gelo dos Polos Norte e Sul, em particular da Groenlândia, um gelo que não está sobre a água, mas sim em cima da terra. Já se calculou que, se o nível do mar subir poucos metros — um, dois ou três —, várias das principais cidades da civilização humana, como Londres, Amsterdã, Hong Kong, Rio de Janeiro, ficarão debaixo d’água. Também boa parte do que é a orla marítima dos países desaparecerá. E o que acontece se derreter todo o gelo que está no Polo Norte e no Polo Sul? O mar pode subir até setenta metros, para se ter uma ideia da magnitude da ameaça.
Obviamente, isso não vai acontecer na próxima semana, mas esse processo de aquecimento global e de derretimento dos gelos está se acelerando. Há alguns anos, os especialistas diziam que esses processos estavam previstos para 2100, ou seja, para o fim do século XXI. Portanto, atingiria nossos bisnetos que ainda não nasceram, e precisamos pensar neles. Só que normalmente as pessoas não se preocupam com o que vai acontecer com os bisnetos que ainda não nasceram, não é uma prioridade. No entanto, os trabalhos mais avançados dos cientistas, os mais recentes, apontam para processos irreversíveis do aumento de temperatura, com todas as suas consequências, já nas próximas décadas, antes de 2100. Ninguém pode dizer se será daqui a vinte, trinta, quarenta ou cinquenta anos, mas a coisa está muito mais próxima.
Um exemplo disso são os escritos do cientista americano James Hansen, o principal climatólogo dos Estados Unidos, que trabalha para a NASA, e que não é um homem de esquerda, não tem nada a ver com o marxismo. Hansen é um cientista que há alguns anos vem tocando o sinal de alarme, mas durante o governo do presidente George W. Bush tentaram proibi-lo de falar. Mandaram para ele um recado dizendo que ele era um funcionário do governo americano e que o que ele estava dizendo sobre o perigo do aquecimento global não era a linha do governo, o qual considera tudo isso uma bobagem. Pediam, por favor, que ele calasse a boca, e, mais que isso, afirmavam que estava proibido de falar.
Um acontecimento sem precedente desde Galileu, quando a Inquisição ordenou a ele que não deveria dizer que a Terra se mexe, que estava proibido pela Igreja Católica. Desde essa época, não houve caso tão absurdo de um governo proibir um cientista de se manifestar. Obviamente ele não obedeceu, continua a protestar e a escrever sobre isso e é respeitado mundialmente como um grande climatólogo.
Ele afirma que o processo está se acelerando e que é uma questão de décadas. E os especialistas do gelo — os glaciólogos, que vão para o Polo Norte e para o Polo Sul e medem e calculam esses fenômenos — dizem que não estão entendendo nada do que está acontecendo. Está tudo indo muito mais depressa do que eles pensavam. Em 2010, fizeram um cálculo de como o gelo estava derretendo e, em 2011, viram que o cálculo estava errado, que o modelo utilizado não estava funcionando, que estava indo muito mais rápido. Portanto, são questões científicas e políticas que têm a ver com o futuro da humanidade.
De quem é a culpa dessa ameaça sem precedentes na história da humanidade? Os geólogos calculam que há 60 milhões de anos houve um processo de aquecimento global que matou quase tudo o que existia no planeta. Depois levou algumas dezenas de milhões de anos para a vida voltar ao planeta. Mas, desde que existe a humanidade, nunca existiu nada parecido, é algo sem precedentes. Os cientistas dizem que é culpa do ser humano, que o aquecimento global é resultado da ação humana. Os geólogos dizem que estamos entrando em uma nova era geológica chamada Antropoceno. Isto é, uma era geológica em que a situação do planeta, o clima, depende da ação humana e está sendo transformada por ela.
Essa explicação é cientificamente correta, mas eu diria que é um pouco limitada politicamente. Isso porque a humanidade já vive no planeta há algumas dezenas de milhares de anos, desde que apareceu o Homo sapiens, e o problema do aquecimento global, essa acumulação de gases na atmosfera, vem da Revolução Industrial. Começou em meados do século XVIII, quando esses gases foram se acumulando, e se intensificou enormemente nas últimas décadas, as décadas da globalização capitalista neoliberal. Portanto, o culpado dessa história não é o ser humano em geral, mas um modelo específico de desenvolvimento econômico, industrial, moderno, capitalista, globalizado, neoliberal: esse é o responsável pela atual crise ecológica e pela ameaça que pesa sobre a humanidade.
Quais são as soluções que propõem os representantes da ordem estabelecida? Há uma proposta que é a seguinte: as energias fósseis são as responsáveis pelo problema, por isso, vamos substituí-las por formas de energia limpas, que não produzem gases, e são seguras, como a energia nuclear. Está aí uma solução técnica e fácil para o problema: construir usinas nucleares. Isso foi feito em grande escala nas últimas décadas. Em 1986, houve um incidente desagradável, em Chernobyl, na União Soviética. Cientistas calculam que as vítimas de Chernobyl que foram morrendo no curso dos anos, resultado das irradiações, chegam a 800 mil mortos — mais do que todos os mortos de Hiroshima e Nagasaki, por decorrência da bomba atômica. O argumento dos responsáveis pela energia nuclear era de que isso aconteceu na União Soviética, um país totalitário, burocrático, com tecnologia e gestão atrasadas; no ocidente, com empresas privadas, isso não aconteceria. Esse discurso foi repetido muitas vezes até que ocorreu o acidente de Fukushima, no Japão, em 2011. A empresa responsável pela usina, Tokyo Electric Power Company (TEPCO), é a maior empresa privada de eletricidade do mundo. É a mais esplêndida manifestação do capitalismo privado no terreno da energia nuclear. Desse modo, fica claro que essa não é uma alternativa aos combustíveis fósseis, temos que procurar outras.
Há alguns anos, na época Bush, vazou para a imprensa um documento secreto do Pentágono sobre a questão do aquecimento global. O governo dizia que esse problema não existia, mas os cientistas do Pentágono sabiam que sim. Apresentaram um documento prevendo o que iriam fazer se o aquecimento global escapasse de qualquer controle e chegasse a seis graus, e a vida humana se tornasse impossível no planeta. Era uma possibilidade considerada pelos cientistas do Pentágono. A única proposta que conseguiram elaborar foi a de mandar um foguete para o planeta Marte. Eles inclusive detalham quem estaria nesse foguete: o presidente dos Estados Unidos, o Estado Maior do Exército, cientistas etc. Como não estamos convidados para essa viagem, não nos interessa a proposta. Esse é apenas um exemplo do tipo de solução considerada.
Obviamente, há tentativas mais sérias de solução, como a ideia de que precisamos desenvolver energias alternativas: hidrelétrica, eólica e solar. Com exceção da hidrelétrica, que já tem um desenvolvimento importante, em países como o Brasil, as outras são pouco desenvolvidas. E por uma razão bem simples: são menos rentáveis do que o petróleo e o carvão. Por isso, não interessa às empresas e aos Estados, com algumas exceções, investir maciçamente nessas energias. Em alguns países, chega a 10% o índice de energia produzida por fontes alternativas, mas o resto continua com o carvão e o petróleo. Seria necessária uma mudança em grande escala, acabar com os combustíveis fósseis e desenvolver energias alternativas. Por enquanto, nenhum governo está fazendo isso, embora os cientistas já tenham dado o recado: se não mudarmos drasticamente o padrão de matriz energética, nos próximos dez ou vinte anos a situação fugirá do controle. É uma questão de rentabilidade — que é o que conta — e de competitividade.
Outra tentativa mais interessante por parte dos governos foram os Acordos de Kyoto. Eles têm alguns aspectos positivos no sentido de serem acordos em que os governos se empenham em reduzir as emissões de gás. Só que isso não funcionou, por várias razões, dentre as quais o método utilizado, que é o mercado dos direitos de emissão, que não poderia conduzir a uma efetiva redução. Mesmo que o objetivo de Kyoto tenha sido muito pequeno — reduzir em 8% as emissões, enquanto os cientistas estão dizendo que precisamos reduzir em 40% nos próximos anos —, ele não foi alcançado. Além disso, os principais poluidores, os Estados Unidos, não assinaram Kyoto. E o país que está aparecendo como o segundo colocado nas emissões, a China, tampouco assinou.
Houve uma conferência em Copenhague, em 2009, para discutir esses problemas e o que fazer com as ameaças do aquecimento global. Os Estados Unidos utilizaram o argumento de que, embora sejam os maiores responsáveis pelas emissões de gases poluentes, a China está emitindo tanto quanto eles, e, se esse país não fizer nada, não serão eles que tomarão a iniciativa. A isso o governo chinês respondeu, com certa razão, que os Estados Unidos vêm emitindo gases há um século, têm uma responsabilidade histórica. Só agora que os chineses iniciaram, portanto, os Estados Unidos é que deveriam começar a reduzir suas emissões. Só depois disso, a China poderia discutir esse assunto. Ou seja, cada um jogou a peteca para o outro. E os governos europeus disseram que se os Estados Unidos e a China, que são os principais emissores, não fazem nada, não serão eles, os europeus, que irão resolver o problema. Dessa forma, todos os governos chegaram ao acordo de que era urgente não fazer nada, cada um com seus argumentos. O resultado da conferência de Copenhague foi praticamente zero. Isso ilustra, entre outras coisas, o poder da oligarquia fóssil, ou seja, os interesses do carvão, do petróleo, da indústria automobilística, enfim, de todo esse complexo gigantesco de que dependem as energias fósseis, que não tem a mínima vontade de mudar a matriz energética.
Outra coisa que se deve dizer é que mesmo se as energias fósseis fossem substituídas pelas energias renováveis, estas também têm seus probleminhas, como os impactos socioambientais da energia hidrelétrica. Portanto, é uma ilusão achar que é só uma questão técnica, de mudar a matriz energética, embora isso seja fundamental. De qualquer maneira, teremos de reduzir significativamente o consumo de energia e, consequentemente, a produção econômica e o consumo. O desenvolvimento alternativo ao produtivismo e ao consumismo implica uma redução da produção e do consumo, a começar pelos países capitalistas avançados, evidentemente, que são os principais responsáveis e os maiores produtivistas e consumistas.
Até aqui vai o pessimismo da razão. Agora, vamos começar com o otimismo da vontade, senão fica muito triste essa história. Vou iniciar com Copenhague, onde houve a conferência oficial, que não decidiu nada, mas que também foi palco de um protesto. Saíram às ruas 100 mil pessoas da Dinamarca e da Europa, protestando contra essa inércia das potências capitalistas, levando como palavra de ordem principal: “change the system, not the climate”, ou seja, “mudemos o sistema, não o clima” — o sistema capitalista, evidentemente. Essa é a esperança, a de uma luta por transformação sistêmica, por alternativas radicais. Radical vem do latim radix, que significa raiz. Se a raiz do problema é o sistema capitalista industrial, moderno, globalizado, neoliberal, então devemos atacar a raiz do problema. Essas seriam, portanto, as alternativas radicais pós-capitalistas. Aqui vem a proposta do ecossocialismo.
Por que ecossocialismo? Em que se distingue do socialismo tradicional? O ecossocialismo é uma crítica, por um lado, do socialismo não ecológico, que foi a experiência fracassada soviética e de outros países, que do ponto de vista ecológico não representou nenhuma alternativa ao modelo ocidental. Pelo contrário, tratou de copiar o modelo produtivo do capitalismo ocidental. Ecossocialismo é uma crítica desse socialismo — ou pseudossocialismo — não ecológico, soviético, etc.
Por outro lado, é uma crítica à ecologia não socialista, que acha que podemos ter um modelo alternativo de desenvolvimento nos quadros do capitalismo, do mercado capitalista. Do ponto de vista ecossocialista, achamos que isso é uma ilusão, pela própria dinâmica de expansão necessária ao capitalismo, de crescimento, que leva necessariamente a uma colisão com a natureza e com os equilíbrios ecológicos. O capitalismo sem crescimento, sem competição feroz entre empresas e países pelos mercados, é impossível e inimaginável. Temos no ecossocialismo, desse modo, uma crítica ao ecologismo de mercado.
É uma crítica também, ou autocrítica, a certas concepções tradicionais na esquerda em geral, e no marxismo em particular, sobre o que é uma transformação socialista. Há uma visão clássica de que é preciso mudar as relações de produção — propriedade coletiva, em vez da privada — para permitir que as forças produtivas se desenvolvam, já que as relações de produção são um obstáculo ao livre desenvolvimento das forças produtivas. Mas não passa por aí. Primeiro, porque não é possível o desenvolvimento ilimitado das forças produtivas. E, em segundo lugar, porque pensar em uma transformação e em um modelo alternativo de desenvolvimento implica questionar não só as formas de propriedade e as relações de produção, mas as próprias forças produtivas, o próprio aparelho produtivo.
Esse aparelho produtivo, criado pelo capitalismo ocidental, industrial, moderno, é incompatível com a preservação do meio ambiente, por sua matriz energética e por sua forma de funcionamento, que inclui o agronegócio, o uso de pesticidas, entre toda uma série de características que mostram que esse aparelho produtivo não serve. Temos que pensar em uma profunda transformação, não só das relações de produção, mas do aparelho produtivo.
Mas não é só isso: precisamos pensar em uma transformação do padrão de consumo. É insustentável o padrão de consumo do capitalismo moderno. Isso significa que seria necessária uma redução do consumo, mas para quem? Nem todo mundo tem que apertar o cinto, não é bem assim. Primeiro, é uma questão de desigualdade social. O consumo é dez ou cem vezes maior nos países avançados. Eles são os primeiros que têm que começar essa mudança. Segundo, há uma diferença enorme entre o consumo ostentatório das elites dominantes e o consumo das classes populares: uns comem feijão e milho e outros compram iates enormes, helicópteros, etc. Não é a mesma coisa. Não é o que come milho que vai ter que comer menos milho. É o que compra palácios de luxo que vai ter que reduzir drasticamente seu consumo ostentatório.
Além disso, existe no capitalismo algo que se chama obsolescência planificada dos objetos de consumo. Dentro do capitalismo, os objetos de consumo já têm, em sua própria concepção, sua obsolescência prevista para o mais rápido possível. Todo mundo sabe que a geladeira de quarenta anos atrás durava quarenta anos, e as geladeiras de agora duram três anos. Isso é necessário: para o capital vender mais e mais geladeiras, produzir mais e mais, precisa ter uma duração muito menor. É parte do padrão produtivista e consumista, e também precisa ser modificado.
Precisamos, portanto, de mudanças nas formas de propriedade, no aparelho produtivo, no padrão de consumo, no padrão de transporte. O atual modelo, baseado no carro individual para as pessoas e no caminhão para as mercadorias, é insustentável, até porque depende do petróleo. Por isso, precisamos pensar no desenvolvimento do transporte coletivo, no trem em vez do caminhão, entre outras medidas. Tudo isso vai configurando uma mudança bastante radical no padrão de civilização. Na verdade, a proposta ecossocialista, de um novo modelo de desenvolvimento mais além do produtivismo e do consumismo, coloca em questão o paradigma da civilização capitalista ocidental, industrial, moderna. É uma proposta bastante profunda. Precisamos pensar em um novo padrão de civilização, baseado em outras formas de produzir, consumir e viver. Essa é a discussão que está colocada.
É uma proposta revolucionária, mas talvez a revolução tenha que ser redefinida. Gosto muito de citar uma frase de Walter Benjamin. Em suas Teses sobre o conceito de história, ele diz: “Nós, marxistas, temos o hábito de dizer que as revoluções são a locomotiva da história. Mas talvez a coisa seja um pouco diferente. Talvez as revoluções sejam a humanidade puxando os freios de emergência para parar o trem.” É uma imagem bastante atual. Hoje em dia, somos todos passageiros de um trem, que é a civilização capitalista, industrial, ocidental, moderna. Esse trem está indo, com uma rapidez crescente, em direção ao abismo. Lá na frente há um buraco que se chama aquecimento global ou crise ecológica. Não se sabe a quantos anos de distância se encontra esse abismo, mas ele está lá. Portanto, a questão é parar esse trem suicida e mudar de direção. É o desafio colocado pela proposta ecossocialista.
Agora, muitos dirão, com razão, que é uma proposta simpática e até interessante, mas e daí, como é que vamos daqui até lá? Não basta ter uma bela utopia. Acho que temos que partir da ideia de que o ecossocialismo é algo para um futuro imaginário, mas que devemos começar aqui e agora. Começando, modestamente, com movimentações, lutas, em função da busca de alternativas. Essas alternativas já estão se construindo em movimentos, experiências e lutas atuais.
Um exemplo de uma luta desse gênero, de um brasileiro que é para mim o precursor do ecossocialismo: Chico Mendes, um socialista confesso e convicto, e ecológico. Chico Mendes organizou a Aliança dos Povos da Floresta para defender a floresta como patrimônio comum dos povos indígenas e camponeses, patrimônio do povo brasileiro em seu conjunto, e também da humanidade. A defesa da floresta é uma causa do conjunto da humanidade porque, como se sabe, as florestas — em particular a Amazônia — são os chamados “poços de carbono” que absorvem os gases que estão na atmosfera. Se não houvesse essas florestas tropicais, o processo de aquecimento global já teria escapado de qualquer controle e já estaríamos no meio da catástrofe. O que ainda breca um pouco o processo são as florestas tropicais. Na Aliança dos Povos da Floresta, Chico Mendes fez um primeiro movimento em direção ao ecossocialismo, com a ideia de propriedade comum, bem comum dos povos, bem comum da humanidade.
No Fórum Social Mundial de Belém, em 2009, por exemplo, houve uma convergência interessante entre movimentos indígenas, camponeses, ecologistas, de mulheres, entre outros, em torno de uma exigência concreta em relação à Amazônia, ao Brasil, ao Peru e a todos os países amazônicos: desmatamento zero já. É uma exigência imediata, que tem a ver com a perspectiva de salvar a floresta tropical.
Outro exemplo interessante na América Latina é o que se deu recentemente no Equador, onde há um governo de esquerda, o do presidente Rafael Correa. Nesse país, há uma região com um grande território de floresta tropical, onde vivem comunidades indígenas, chamada Parque Yasuní. Para desgraça dos indígenas, descobriram petróleo nessas terras. As multinacionais foram correndo para lá, pedindo autorização para cortar a mata e extrair petróleo. Os indígenas resistiram, protestaram, o protesto foi apoiado pela sociedade civil, pela opinião pública, pelos ecologistas, pela esquerda. O governo, que é progressista, aceitou a proposta dos indígenas e fez a proposição de deixar esse petróleo debaixo da terra, mas pedir aos governos dos países ricos, do Norte, que os indenizem em pelo menos metade do valor desse petróleo. Porque os países do Norte, da Europa, estão dizendo que querem reduzir a emissão de gases, e a melhor maneira de reduzir a emissão de gases é não queimar o petróleo e deixá-lo debaixo da terra.
Essa é a proposta para o Parque Yasuní. Há atualmente uma negociação entre o governo do Equador e outros governos, e pelo menos um deles — o da Noruega — prometeu dar o dinheiro. Já é uma vitória e um exemplo para outros países, como a Indonésia, onde já está havendo mobilizações nesse sentido.
Mencionei a manifestação de Copenhague, que também é um exemplo de esperança, de otimismo da vontade, com 100 mil pessoas nas ruas exigindo a mudança do sistema. E essa mobilização teve continuidade. De todos os governos que estavam em Copenhague, só um se solidarizou com o protesto, o governo da Bolívia. Evo Morales saiu da conferência e foi falar com os manifestantes, dizendo que eles tinham razão. E ele convocou, depois, uma conferência na Bolívia, em Cochabamba, chamada Conferência dos Povos contra o Aquecimento Global e em Defesa da Mãe Terra, que foi um evento importante, com a participação de 30 mil delegados de movimentos sociais, indígenas, camponeses, representantes da ecologia urbana, de sindicatos, de organizações de mulheres, etc. A partir daí se lançou uma campanha internacional. Esse tipo de mobilização e luta é a esperança de que a coisa possa mudar. Em cima dessas experiências é que podemos investir nosso otimismo da vontade.
Michael Löwy é sociólogo, filósofo e diretor emérito de pesquisas em Ciências Sociais no Centro Nacional de Pesquisas Científicas, da França (CNRS). É coautor, como Joel Kovel, do Manifesto Internacional Ecossocialista.
Este texto é a conferência de abertura do Seminário Abong 20 anos, intitulada “Uma nova concepção de desenvolvimento – Para superar o modelo produtivista-consumista”.
Imagem: Marc Chagall, Os Amantes de Vence (detalhe)
Fonte:http://www.outraspalavras.net/

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

SP: Linda Gata Persa para adoção!!!

Tem 2 anos e 6 meses, esta castrada, é muito carinhosa, esta com a moça da ONG aqui no bairro.

Agronegócio é Genocídio Guarani-Kaiowa no Brasil – por Latuff

Fonte: http://twitpic.com/photos/CarlosLatuff

Mobilização eficiente: Ativistas conseguem impedir realização de corrida de touros no Canadá - Por Amary Nicolau

Mobilização eficiente: Ativistas conseguem impedir realização de corrida de touros no Canadá
Corrida de touros na Espanha (Foto: Reproducão)
Enquanto a Espanha dribla ativistas do mundo todo para continuar com a horrível corrida de touros, o Canadá quer imitar e quase teve a primeira corrida de touros no próximo dia 30 de outubro em Toronto.
A corrida de touros estava prevista para marcar a abertura do Royal Agricultural Winter Fair (Feira de Agricultura de Inverno). A corrida estava planejada para acontecer bem no centro movimentado de Toronto.

Seis touros de aproximadamente 907 quilos deveriam participar do evento.
Foto: Reprodução
“Nós pensamos na corrida de touro da Espanha e sobre a emoção que o evento tem e atrai para as ruas da cidade,” disse Robbyn Walsh, um dos organizadores do evento.
Não demorou muito para os ativistas canadenses se mobilizarem contra o evento. No mesmo dia que a corrida de touros veio a conhecimento público, protesto e petições foram organizados. Organizadores do evento e o prefeito da cidade de Toronto foram bombardeados por e-mails e telefonemas de ativistas indignados.
No dia seguinte foi publicado que a autorização para a corrida de touros foi negada.
Essa é a 90ª edição da Royal Agriculture Fair, que vai do dia 2 a 11 de novembro. A feira é uma vitrine da agricultura “moderna”, com muitos animais em exposição e leilões.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Capivaras são alvos de maus tratos e caçadores na Baixada Santista – por Moésio Rebouças

Capivaras são alvos de maus tratos e caçadores na Baixada Santista
Quem costuma circular a pé ou de bicicleta (até de carro) no pé da Serra do Mar, já deve ter percebido a presença de dezenas de capivaras no trecho do Rio Perequê, em Cubatão, até o Vale do Quilombo, em Santos. Contudo, uma prática cada vez mais comum vem acontecendo nessas regiões, principalmente no Vale do Quilombo: maus tratos e a caça de capivaras.

Nas margens do Rio Perequê, onde elas são encontradas facilmente, constantemente eu vejo capivaras sofrendo ações de maus tratos, sendo atacadas com pedras por adolescentes e adultos “curiosos”.

No Vale do Quilombo, área pouco patrulhada pela Polícia Ambiental, diversas vezes eu já observei pessoas com espingardas caçando capivaras e outros bichos. Também já cheguei a ver caçadores levando os animais. Segundo eu apurei com alguns populares, a carne dos animais são usadas para consumo próprio e vendidas para “terceiros”.

Lei proíbe caça, mas...
A caça de qualquer animal é proibida pela Constituição do Estado de São Paulo. A lei federal de crimes ambientais prevê multa e pena de detenção de seis meses a um ano para quem caçar animais silvestres, como a capivara. Mas...
Em anexo uma imagem recente de capivaras que vivem às margens do Rio Perequê, em Cubatão.

Moésio Rebouças

Jejuvy: assim os guaranis recuperam a palavra – por Fabiane Borges e Verenilde Santos

Jejuvy: assim os guaranis recuperam a palavra
Viagem antropológica ao mundo guarani-kaiowa. Por que suicídios são protesto, ritual e porformance de cultura que sobrevive por um fio

Quando um grupo de guaranis-kaiowas anunciou, há semanas, que prefere a morte a ter de abandonar suas terras ancestrais reconquistadas, uma onda de alarme se espalhou entre parte da opinião pública. Para que ela não se dissipe, vale conhecer o drama e a cultura destes índios, que se suicidam diante do esvaziamento de seu mundo.

As escritoras Fabiane Borges e Verenilde Santos visitaram por meses os territórios guaranis-kaiowas no Mato Grosso do Sul em 2008. Um dos resultados de sua presença foi uma reportagem antropológica publicada no então “Caderno Brasil” do “Le Monde Diplomatique” — uma iniciativa de mídia livre que foi procursor de “Outras Palavras”. Tanto a relevância quanto a atualidade do texto são maiores que nunca. Por isso, ele está republicado a seguir (A.M.).

Performance ritual:

O dia amanhece com um índio guarani-kaiowa enforcado. Cadarço de tênis esticado da árvore. Banho tomado, perfumado, de joelhos.

A aldeia bororo sabe do que se trata: do jejuvy. Isso não é conforto, é ritual de morte. A palavra jejuvy na língua dos Guarani [1] tem uma carga semântica que significa aperto na garganta, voz aniquilada, impossibilidade de dizer, palavra sufocada, alma presa. É através do ritual do jejuvy que os kaiowas praticam o suicídio, por enforcamento ou ingestão de veneno. Apesar de ser reconhecido como prática ritual ancestral, nos últimos anos o jejuvy alastra-se pelas aldeias em escala epidêmica. São cerca de 50 suicídios por ano, envolvendo jovens de 9 a 14 anos de idade [2].

Segundo dados do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), o número de suicídios começou a aumentar nos anos 80, dobrou na década de 90 e bateu o recorde na virada do século 21, chegando aos mais de 50 por ano. Não são temas deste artigo as mortes por desnutrição, os homicídios entre os próprios indígenas ou as guerras incessantes entre indígenas e fazendeiros, fatos igualmente chocantes. [3]

Os suicídios (jejuvy) são efetuados basicamente por enforcamento (método antigo) e ingestão de venenos das monoculturas (método novo). Rejeita-se a “poluição” como derramamento de sangue ou cortes físicos, para que não se perca a palavra. Muitos guaranis consideram o suicídio uma doença produzida pela prisão da palavra (alma). É pela boca que a palavra se liberta. Se não há lugar para a palavra, não há vida. Por isso, na hora de morrer, não deve ser utilizado o corte contra si mesmo, pois a palavra se dispersaria. Sufocando-a, ela permaneceria como um aglomerado de energia e poderia voltar a vingar em algum outro momento.

Conforme narrativas dos próprios kaiowa sobre índios que cometeram suicídio, eles unificam elos que vão desde o ato individual inerente à condição humana e solitária de cada um, até o sentido político de coletividade, um “estar entre os outros”, produzindo simbologias-limites: os enforcamentos, os envenenamentos. Atos que condensam e apontam para o resgate, talvez impossível de uma “forma de ser”, como os kaiowas costumam falar. E se para eles a linguagem é uma das mais importantes formas de fazer o ser se manifestar, ao impedi-la, impede-se também os sujeitos de existirem. O suicídio epidêmico seria a resposta coletiva à imposibilidade de expressar a singularidade desse povo.

Ao invés das grandes habitações coletivas, casas de família, minúsculas, distantes da floresta. Sem ritos do plantio ou colheita e sagas da caça e pesca, vai se esvaindo a singularidade kaiowa

Se até cerca de 40 anos atrás, os kaiowa e nhandeva moravam em casas grandes denominadas ogajekutu-ogaguasu, reunindo até cem pessoas de uma mesma família, hoje vivem em casas minúsculas, muitas ainda feitas de barro, sem a proteção da floresta, abrigando apenas a família nuclear. A estrutura da família extensa, cuja chefia baseia-se no prestígio e religiosidade, desorganizou-se, visto que os indígenas não conseguiram substituir seu prestígio cultural pelo poder dos brancos. Com a dizimação de suas terras, sem os ritos do plantio, da colheita, das sagas coletivas de caça e pesca, eles não têm razões para continuar com seus ritos, e conforme perdem as práticas com a terra perdem também sua cultura. Mesmo que ainda subsista, de forma curiosa, a língua guarani, que é o maior foco de insistência e resistência dessa coletividade.

Muitos grupos indígenas, inclusive guarani kaiowa, vivem em acampamentos precários dentro das fazendas dos latifundiários, que em nome do expansionismo ou de mais alguma razão macha e injustificável, tomaram a força suas terras — e ainda tomam, com armas desiguais. Isso é um dos motivos mais apontados por indígenas, indigenistas e antropólogos para a causa da epidemia de suicídios entre os guaranis kaiowa: a perda da terra, da tekoha, o lugar onde “realizam seu modo de ser”.

Se por um lado os suicídios por enforcamento ou pela ingestão de veneno podem significar o sufocamento, também podem significar o desejo da libertação — e é nesse ponto que o suicídio ritual funciona como performance ética, estética e interventiva. Gestos de enunciação. O trágico funcionando como dispositivo de reversão sígnica sobre a questão indígena. Desde que a “epidemia suicida” começou a se alastrar nas aldeias, ativistas, estudantes, pesquisadores, pessoas ligadas à mídia independente passaram a olhar com mais atenção a essa situação, fazer alianças e se tornar cooperadores na luta pela terra guarani, de forma a amplificar esses sinais, até então emitidos em total invisibilidade. Há alguns grupos indígenas, principalmente professores indígenas ligados à universidade e lideranças locais, que dedicam sua vida a essa causa, sendo que o número de líderes mortos nessa empreitada supera nossa imaginação.

Apesar de muitos dos suicídios serem praticados em locais mais resguardados, existe um grande número de casos que ocorrem em lugares de perambulação, os lugares “públicos” da aldeia, como estradas, roças, áreas onde o corpo suicida pode ser visto sem muita dificuldade. São nuances que ajudam a esclarecer e também interrogar sobre essa forma de morrer. Não compactuar com a dizimação, com o genocídio, com o etnocídio. Não se acovardar diante do destino, ter o ato bravo e último como forma de amplificar os sinais da miserabilidade que foram submetidos. As árvores, os arbustos, as roças, qualquer lugar que tenha sido utilizado para o suicídio torna-se marco da aldeia e fica cravado no imaginário, na linguagem cotidiana e na sua luta contra o confinamento. Os mortos continuam falando especialmente para os corações sensíveis, ainda conectados em crenças de espíritos da natureza e nas emissões dos seus sinais.

Quando há mais que o apego a vida, há mídia tática, resistência, potência de protesto. Estes indigenas desejam mais que ser incluídos na pasmaceira da biopolítica globalizada, na miserabilidade neoliberal

Os ritos, as danças, os cantos as lutas sobrevivem por pura insistência. A sensação que tivemos ao estarmos na aldeia bororó é que essa cultura sobrevive por um fio muito tênue e belo. Como uma voz que se força a falar, mas já não soa como costumava. Mesmo afônica, agônica, gaga, insiste em se manifestar. Ritual de rememoração. Resíduo. Resistência de certos cantos e gestos. As danças de luta dos guaranis kaiowas lembram as lutas marciais, lutas de espadas. São feitas de pedaços de paus, facas, pedras assemelhando-se a lutas ninjas.

Dona Tereza Guarani é uma das últimas velhas da aldeia. Conduz os ritos na aldeia bororó com o rosto enrugado e concentrado, mãos fortes que movimentam o maracá, passos contundentes que provocam o som retumbante no chão de barro. No êxtase, provocado pelos cantos, que sentimos, nos perguntamos como é possível que ainda cantem e dancem e lutem dessa forma. Em nome de qual força? Dona Tereza faz um esforço explícito para que essa cultura kaiowa se mantenha, pois a grande maioria do seu povo não vê motivo para continuar os ritos. Muitos já não sabem mais como eram as danças e as batidas. A velha índia Tereza, a rezadeira, curandeira, a mulher compromissada com os rituais culturais da aldeia, toma para si o encargo de dar suporte de memória e sentido aos ritos dos antepassados. Coloca os filhos e netos e amigos para aprender os cantos e as danças, antes de morrer. Essa é a função para a qual dedica sua vida. Mesmo seu poder de xamã não a impediu de presenciar muitos suicídios em sua própria família.

Apego à vida é um imperativo da dominacão, do exercício de poder – e da inclusão. Quando há coisa mais intensa que o apego a vida, há mídia tática, há resistência, há potência de protesto. Porém o que é que os kaiowás amam mais do que a sobrevivência? É isto que grita de maneira abafada ainda pelo espaço público da aldeia, que é favela que é cidade que é campo. Tem alguma coisa que estes indígenas desejam mais do que serem incluídos na pasmaceira da biopolítica globalizada, na miserabilidade imposta pela política neoliberal. É uma forma de vida que não se contenta com a sobrevivência miserável do branco ou do índio. Nesse caso pensamos que não se trata de inclusão indígena na sociedade nacional, mas da mobilização da sociedade para a retomada das terras indígenas para colaborar no processo desse outro índio que o próprio índio não sabe e tem que devir.

A campanha reclama as 32 terras do povo guarani, e quer o respeito de um tempo que não precisa ser igual para todo mundo. Mas também o acesso ao que há de relevante na sociedade

As lutas de movimentos agrários no Brasil se intensificaram ao longo desses últimos 30 anos e cada vez ganham maior visibilidade mundial em função da sua extrema importância. A luta indígena é mais uma das lutas agrárias do pais, a mais antiga, a mais usurpada e dizimada. Os processos de homologação e assentamentos estão longe do seu fim e é com muito esforço, tensão e mortes que se efetivam suas realizações.

Nosso desafio em gerar uma rede de colaboração capaz de mudar a percepção social sobre pontos enredados da sociedade é urgente e de grande relevância. Mais do que mudança perceptiva, é necessário a ampliação do próprio espectro relacional dos movimentos sociais, para que ganhem possibilidades de ação diversas. O papel que a mídia tática, Greenpeace e CMI (centro de mídia independente) têm exercido nesses contextos é uma abertura para ajudar a pensar em como grupos autônomos, organizados ou não, podem atuar junto aos movimentos e às lutas sociais (nosso grande espaço público). Ainda são precárias suas atuações, mas sinalizam possibilidades. Para além da denúncia e do apoio, é preciso criar meios que se tornem mais incisivos na efetivação de certos projetos políticos dos movimentos da sociedade civil, como é o caso da campanha pró-guarani foi lançada em setembro de 2007 e que recém começa a aparecer para a sociedade geral [4].

Essa campanha mídica, ativista, feita na sua maioria por lideranças indígenas guaranis e apoiada pelo CIMI, reclama o reconhecimento das 32 terras indígenas do povo guarani, reclama o desaceleramento do mercado agropecuário na região do Mato Grosso do Sul, o reflorestamento das áreas dizimadas, o respeito e reconhecimento de um tempo que não precisa ser igual para todo mundo. Mas também reivindicam o acesso ao que há de relevante na sociedade (inter)nacional, levando em conta as conquistas da ciência e da tecnologia, etc.

Há muito o que pensar na intervenção desses suicídios no imaginário social branco, indígena, mestiço. Mas uma coisa é certa: essas mortes têm evidenciado o impasse que esses indíos vivem, e chegam até nós como sinalizadores dessa condição insuportável, indígna, vergonhosa que os ideais de civilização, de desenvolvimento e de crescimento econômico provocam. É preciso agir antes que toda diferença morra.

Outras fontes de pesquisa:

[1] Os índios guarani estão divididos em três grupos: guarani-nhendeva, guarani-kaiowá e guarani-mbyá. À época da chegada dos europeus, esses indígenas somavam cerca de quatro milhões de pessoas. Atualmente existem cerca de quarenta mil, espalhadas pelas regiões Sul e Centro-Oeste do Brasil. No Mato Grosso, calcula-se que existam cerca de 27.500, pessoas espalhadas em 22 pequena áreas. Sendo que a aldeia bororó, apresentada nesse texto, abriga 12 mil índios guaranis- kaiowas, comprimidos em 3.600 hectares de terra improdutiva e sem mata. Aí existem mais de 90 igrejas entre católicas, evangélicas e espíritas, que disputam os indígenas entre si conforme suas crenças e métodos de conversão.

O território dos índios guarani estendia-se ao Norte, até os rios Apa e dourados e ao Sul até a Serra de Maracaju e os afluentes do rio Jejuí, chegando a uma extensão Leste-Oeste de aproximadamente 100 quilômetros, em ambos os lados da serra de Amambai abrangendo uma extensão de terra de aproximadamente 40 mil km2, dividida pela fronteira Brasil-Paraguai.

[2] Este número cresceu após a reportagem. Entre 2003 e 2010 foram, segundo dados do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), 555 suicídios, ou mais de um a cada cinco dias.
[2] Ver mais em Ambiente em Foco
Fonte: http://www.outraspalavras.net/

26 de Outubro - Dia Nacional de Luta pela Passe Livre

Fonte: http://saopaulo.mpl.org.br/

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Escrita Libertária: “É apenas carne animal” – por Robson Fernando de Souza

Escrita Libertária: “É apenas carne animal”
É APENAS (sic) CARNE, É APENAS (sic) CARNE, EU JURO”. Reportagem do site Grist tenta suavizar venda de falsas carnes humanas dizendo que os pedaços são de “apenas” carne animal transformada em esculturas bizarras. Foto: Grist

Encontrei recentemente uma reportagem do site Grist, do final de setembro, relatando um açougue em Londres que vende carne humana falsa – tratando-se de carne de animais não humanos esculpida para parecerem pedaços de corpos humanos. A matéria mostra como seria cruel e repulsivo um açougue vender carne humana, de pessoas mortas e retalhadas para consumo por outros seres humanos, e tenta suavizar a crueza gráfica das carnes dizendo que é “apenas” carne “normal”.

Onívoros podem até se sentir aliviados ao saber que esses pedaços de corpos não são de seres humanos de verdade, mas veg(etari)anos certamente perceberão o apelo especista da reportagem. A estratégia para acalmar os leitores e convencê-los de que não está havendo um massacre humano canibal é dizer que é “apenas” carne de animais não humanos, como se de fato a vida animal não humana tivesse menos valor que a vida humana. São “apenas” animais mortos, é normal explorá-los e matá-los para consumo, ao mesmo tempo em que seria um absurdo explorar seres humanos – essa é a estrutura geral perceptível no apelo contido na página.

Em outras palavras, não há nenhum extermínio de pessoas por canibais sanguinários em andamento na Inglaterra até onde se sabe, mas está havendo sim um outro massacre. É de animais de outras espécies – bovinos, porcos, ovinos, caprinos, frangos, peixes… -, e o mundo vê isso como se fosse algo normal, talvez tão inocente e benéfico quanto o trabalho de uma entidade filantrópica ou uma reunião de amigos do peito. Afinal, para a ética especista-antropocêntrica, esses animais existem para isso mesmo – tanto como se dizia que mulheres existem para servir sexual e domesticamente aos homens – e suas vidas nada mais são do que mecanismos biológicos de produção de carne, leite e ovos.

Não há pessoas implorando pela vida perante um canibal que está prestes a fazê-las “produzir carne”, mas há operários armados com pistolas insensibilizadoras ou facões, a postos, prontos para matar o próximo animal que chegar, ignorando a vontade daqueles animais de continuarem vivendo e estarem inteiros. A partir desses funcionários de matadouros e frigoríficos – bastante explorados para além do limite de suas forças físicas e mentais em muitos desses lugares, a saber – não temos mãos humanas, tóraxes desmembrados e decapitados nem pênis de homens num balcão, mas temos pés de porcos e de bois e vacas, orelhas amputadas, pernas decepadas e desmembradas, corpos fatiados, além de acéns, picanhas, cupins… Mas calma, a notícia diz que são “apenas animais”, é “apenas carne”, por isso você pode ignorar que aqueles pedaços pertenceram um dia a seres sedentos de vida e comê-los com tranquilidade.

Quando a humanidade parar de distinguir moralmente a carne humana da não humana (a.k.a. “carne normal”) – aliás, quando parar de fazer essa separação moral entre as vítimas mortas em prol da obtenção desas carnes -, as carnes expostas no açougue da esquina serão tão repugnadas quanto as “carnes humanas” do açougue de Londres que os jornalistas do Grist visitaram. O “apenas” será riscado e a frase calmante “É apenas carne, eu juro!” vai virar o alerta “Acredite, isso é carne de verdade!”.

Eric Hobsbawm e o Futebol – por Raul Milliet Filho*

Eric Hobsbawm e o Futebol
Em um dos seus textos, Hobsbawm afirmou que um historiador social não podia negligenciar nem a economia nem Shakespeare. Deveria analisar não somente os aspectos econômicos da vida em sociedade como as idéias, a linguagem e o imaginário coletivo. Para ele, o futebol não era apenas um esporte. Era arte e paixão popular, ou culto proletário de massa.

Eric Hobsbawm, um dos maiores historiadores do século XX, falecido em 1º de outubro último, trilhou caminhos pouco frequentados pelo mundo acadêmico. Dentre tantos outros temas, conhecia jazz, artes plásticas e futebol, jogo que está, por exemplo, no seu A Era dos Extremos:

“O esporte que o mundo tornou seu foi o futebol de clubes, filho da presença global britânica... Esse jogo simples e elegante, não perturbado por regras e/ou equipamentos complexos, e que podia ser praticado em qualquer espaço aberto mais ou menos plano do tamanho exigido... tornou-se genuinamente universal.”

Tomei contato e conhecimento do interesse de Hobsbawm pelo futebol em 1976. Para minha alegria de botafoguense apaixonado e historiador recém-formado, soube do seu gosto pelo futebol. Torcedor do Arsenal, ele não só gostava como entendia do jogo. E isto era raro.

Afinal, como disse certa vez Edgar Morin: “o estudo dos fenômenos desacreditados é igualmente desacreditado”. E, naquela época, nos meios universitários do Brasil e de todo o mundo, nada mais desacreditado que o futebol. Os professores doutores, salvo raras exceções, eram típicos intelectuais de laranja, cunhados por Nelson Rodrigues, que não sabiam bater nem um reles escanteio. Olhavam o futebol com o nariz em pé.

Assim
que soube da novidade, recorri ao amigo e sociólogo Luciano Costa Neto, que começara a traduzir A Era do Capital para o português.
Encaminhei, por Luciano, algumas perguntas por escrito a Hobsbawm em um dos encontros que tiveram para ajustar pontos da tradução.

Na resposta, devidamente anotada por Luciano, Hobsbawm falava que não só o futebol era um assunto de relevo para os historiadores, mas contava da sua admiração pela seleção brasileira e por dois jogadores em particular: Gerson e Tostão. E ia além, relembrando dois jogos da Copa de 70: Brasil x Itália e Brasil x Inglaterra. Deste último jogo retinha na memória a trama do gol brasileiro feito por Jair.

E não foram citados apenas Tostão e Gerson. Hobsbawm disse a Luciano da sua decepção em nunca ter visto Garrincha atuar em campo.

Quase
20 anos mais tarde deixaria registrado: “...e quem, tendo visto a seleção brasileira em seus dias de glória, negará sua pretensão à condição de arte?...” ( A Era dos Extremos)

Para Hobsbawm, o futebol bem praticado não era apenas um esporte. Era arte e paixão popular, ou culto proletário de massa.

Autor de livros que inovaram a compreensão do mundo contemporâneo: A Era das Revoluções (1789–1848); A Era do Capital (1848–1875); A Era dos Impérios (1875–1914) e A Era dos Extremos (1914– 1991), encantou leitores e críticos de várias correntes do pensamento, independente de filiação ideológica ou político-partidária.

Marxista, avesso a análises reducionistas e dogmáticas, Hobsbawm foi um estilista erudito e original, senhor de uma narrativa leve e sofisticada, respeitado até mesmo por críticos contundentes, como Tony Judt.

Em um dos seus textos afirmou que um historiador social não podia negligenciar nem a economia nem Shakespeare. Deveria analisar não somente os aspectos econômicos da vida em sociedade como as idéias, a linguagem e o imaginário coletivo.

Foi exatamente isto que ele fez em seus escritos. O contraponto entre as relações econômicas e culturais está presente em sua vasta obra, inclusive quando aborda o futebol, como nesta passagem de Mundos do Trabalho, recuando ao período de profissionalização/popularização do futebol inglês.

“O futebol como esporte proletário de massa – quase uma religião leiga – foi produto da década de 1880, embora os jornais do norte já ao final da década de 1870 houvessem começado a observar que os resultados de jogos de futebol, que eles publicavam somente para preencher espaço, estavam na verdade atraindo leitores. O jogo foi profissionalizado em meados da década de 1880...”

O surgimento dos Esportes Modernos (dentre os quais o futebol) na segunda metade do século XIX foi analisado por Hobsbawm em sintonia à consolidação do Estado-Nação da era moderna.

Em A Invenção das Tradições (escrito com Terence Ranger), o futebol é identificado como uma entre muitas formas de expressão e símbolo da nacionalidade, como mais um modo de coesão necessário à nação moderna.
Discorrendo sobre as décadas de 1880 e 1890 na Inglaterra, Hobsbawm reafirma a importância do tema:

“Pela história das finais do campeonato britânico de futebol podem-se obter dados sobre o desenvolvimento de uma cultura urbana operária que não se conseguiram através de fontes mais convencionais.” (A Invenção das Tradições).

Ainda em A Invenção das Tradições, Eric Hobsbawm volta seu olhar para o vestuário operário, associando a utilização do boné como meio de identificação e expressão de classe fora do trabalho. E mais uma vez, o futebol é mencionado:

“Na Grã-Bretanha, ao menos, segundo indícios iconográficos, os proletários não eram universalmente relacionados ao boné antes da década de 1890, mas no fim do período eduardino – como provam fotos de multidões saindo de jogos de futebol ou de assembléias – tal identificação era quase completa. A ascensão do boné proletário ainda está à espera de um cronista. Ele ou ela, supostamente, descobrirá que sua história tem relação com a do desenvolvimento dos esportes de massa, uma vez que este tipo específico de chapéu surge a princípio como acessório esportivo entre as classes alta e média.” (A Invenção das Tradições)

O vínculo entre o boné, o futebol e o vestuário dos trabalhadores ingleses é ainda mais forte e estreito do que Hobsbawm supunha. Pelo regramento do futebol inglês, a presença do juiz data de 1863. Mas por 21 anos o poder do juiz ficaria subordinado aos capitães das equipes.

E os capitães ou “reclamadores” utilizavam um bonezinho para se diferenciarem dos demais. Boné que em inglês é cap. De cap para capitão foi um pulo. O fato é que o reclamador ficou conhecido como o capitão do time, produto deste antigo costume britânico.

Assim, é possível depreender que a utilização do boné (cap) pelo capitão (ou reclamador) no futebol foi um dos fatores que contribuiu para a disseminação do boné entre as classes populares inglesas e, posteriormente, em quase toda a Europa Ocidental.

Para Hobsbawm, não apenas a história do vestuário proletário não foi escrita mas também a da cultura do futebol na transição do século XIX para o século XX, na Inglaterra:

“A natureza da cultura do futebol neste período – antes de haver penetrado muito nas culturas urbanas e industriais de outros países – ainda não foi bem compreendida. Sua estrutura socioeconômica, porém, é mais compreensível. A princípio desenvolvido como esporte amador e modelador do caráter pelas classes médias da escola secundária particular, foi rapidamente (1885) proletarizado e portanto, profissionalizado; o momento decisivo simbólico – reconhecido como um confronto de classes – foi a derrota dos Old Etonians pelo Bolton Olympic na final do campeonato de 1883.” (A Invenção das Tradições).

Entre 1890 e 1914, a popularização do futebol inglês registrou um crescimento avassalador. Os jogadores de futebol eram oriundos das fábricas, escolhidos entre os operários mais habilidosos, ao contrário do que acontecia no boxe, onde o critério de escolha levava mais em conta a força e o tamanho dos futuros atletas.

Em A Era dos Impérios, Hobsbawm identifica a existência de cerca de 1 milhão de jogadores de futebol na Inglaterra antes de 1914 frente a uma população geral de cerca de 31 milhões de habitantes.

Abordando o período entre guerras (1918-1939), destaca o papel do esporte e do futebol em particular, representando cada vez com mais força uma expressão de luta nacional e identificação dos indivíduos com a nação, tendo como símbolos mais próximos os atletas:

“A imaginária comunidade de milhões parece mais real na forma de um time de onze pessoas com nome. O indivíduo, mesmo aquele que apenas torce, torna-se o próprio símbolo de sua nação.” (Nações e Nacionalismo desde 1870, p. 171).

Uma lembrança do então menino Eric Hobsbawm, é descrita:

“O autor se lembra quando ouvia, nervoso, à transmissão radiofônica da primeira partida internacional de futebol entre a Inglaterra e a Áustria, jogada em Viena em 1929, na casa de amigos que prometeram descontar nele se a Inglaterra ganhasse da Áustria, o que, pelos registros, parecia bastante provável. Como o único menino inglês presente, eu era Inglaterra, enquanto eles eram Áustria. (Por sorte a partida terminou empatada). Dessa maneira crianças de 12 anos ampliavam o conceito de lealdade ao time para a nação.” (Nações e Nacionalismo desde 1870).

Mas, para quem, como Hobsbawm, toda História é História contemporânea disfarçada, o futebol globalizado, controlado por empresas transnacionais não poderia ficar de fora do alcance de sua pena.

O intrincado jogo de interesses entre a FIFA e os grandes clubes internacionais, com seus conflitos de grandes proporções, à primeira vista inconciliáveis, foi abordado em Globalização, Democracia e Terrorismo:

“... a lógica transnacional da empresa de negócios entrou em conflito com o futebol como expressão de identidade nacional...

... Do ponto de vista dos clubes, provocaram um considerável enfraquecimento da posição de todos aqueles que não estão no circuito das superligas internacionais e dos supertorneios e em especial nos clubes dos países exportadores de jogadores, notadamente nas Américas e na África. A crise dos outrora altivos clubes de futebol do Brasil e da Argentina o comprova...” (Globalização, Democracia e Terrorismo).


Apesar da importância e da prevalência dos superjogadores e dos superclubes sobre os interesses nacionais, o historiador assinala que os objetivos de poder da FIFA têm tido força para manter, impor e ampliar a realização das Copas do Mundo como evento mais importante do futebol mundial.

Assinalaríamos apenas, aprofundando as conclusões de Hobsbawm, que a lógica econômico-financeira das Copas do Mundo acabou por entrelaçar-se com os objetivos do grande capital internacional. Isto foi possível graças à aliança da FIFA com os mesmos interesses que dirigem os superclubes, para a realização das Copas do Mundo. Até mesmo a escolha de países como a África do Sul , Brasil e Qatar, mais maleáveis a negócios extra-campo, demonstra isso.

Não se sabe até quando este equilíbrio instável e contraditório de forças no futebol mundial poderá ser mantido, tendo em vista que não está em jogo apenas a sobrevivência dos interesses nacionais e dos clubes, mas do próprio futebol como cultura popular.

Em a “História Social do Jazz”, talvez o seu melhor livro sobre cultura popular, Hobsbawm questiona a pasteurização da cultura pré-industrial pelo rolo compressor da sociedade contemporânea, citando o jazz como exemplo de resistência e manutenção de suas origens:

“O jazz é o mais importante desses exemplos. Se eu tivesse de fazer um resumo da sua evolução em uma só sentença eu diria: é o que acontece quando a música popular não sucumbe, mas se mantém no ambiente da civilização urbana e industrial”. (A História Social do Jazz).

Aqui cabem duas indagações: será que o futebol atual, em particular o brasileiro, tal como o jazz, também não sucumbiu diante das pressões da civilização urbana e industrial?

Ainda é possível falarmos do futebol como arte e cultura popular?

(*) Doutor em História pela USP, professor, especialista em projetos sociais na área pública.