quinta-feira, 4 de outubro de 2012

O alcance da ética e o especismo: a denúncia da Filosofia e da Literatura - Ellen Augusta Valer de Freitas

O alcance da ética e o especismo: a denúncia da Filosofia e da Literatura
Este ensaio foi publicado no livro Visão Abolicionista: ética e direitos animais, organizado por Silvana Andrade da ANDA em 2010, pela editora Libra Três.

Os animais são a última instância, em se tratando de ética e respeito aos seres vivos. Agora que já não é mais aceitável escravizar índios, negros, pobres ou oprimir as mulheres (pelo menos não abertamente), ainda é possível e até mesmo incentivado que o mesmo seja feito aos animais.

Mesmo a Natureza – esta entidade genérica que é tema de Bioética e ética – é algo que preocupa muitas pessoas e provoca atitudes em outras. Curiosamente, os animais são os menos valorizados neste teatro que é a preservação ambiental. Fora os animais raros e ameaçados de extinção (mas não todos), o restante é enfaticamente ignorado pela mente humana.

Há diversas espécies de anfíbios e peixes que estão quase extintos, só para exemplificar, que não são sequer lembrados ou são consumidos avidamente mesmo estando ameaçados – é o caso de muitas espécies de bacalhau.

Resta-nos saber o porquê de tanto cinismo, ou irresponsabilidade. O porquê de se considerar por muitos séculos os animais como seres que não tem valor em si, e além disso, mesmo com tanto conhecimento sobre a senciência dos animais e sobre sua inteligência, ainda insistir na crença tola de que eles não têm nada.

Desde a origem da humanidade até os nossos dias, os animais sempre foram um mistério, motivo de admiração e ódio pelos seres humanos. Excluir animais da esfera de consideração de interesses não apenas ameaça a economia baseada no consumo de animais, ameaça ainda o ego de uma humanidade que pensa ser a única no mundo, a melhor e a que pode usar e abusar de toda a natureza em seu benefício.

Para todas as religiões, o homem é o bem maior e todo o mais é servido a ele para seu propósito. Não é permitido se sentir culpado frente ao abuso que cometemos com todos os seres e de modo específico com os animais. Mesmo diante de catástrofes planetárias de óbvia causa humana como o aquecimento global, as tentativas de auto-defesa  logo são postas em jogo e o ser humano rapidamente esquece de sua responsabilidade frente ao mundo artificial que ele criou.

Quem outorga-se o direito de usar os recursos infinitamente e os seres vivos como se fossem coisas, deve também assumir a culpa e a responsabilidade por seus atos.  Pelo menos dentro da coerência do pensamento ético. Fora disso a humanidade vem fazendo o que bem entende e a natureza, regida por causas e efeitos, vem espelhando nossa brutalidade.

Só que os animais são as vítimas silenciosas, os inocentes que não têm voz neste mundo. O ativismo pelos animais é muito importante para estes seres, que estão submetidos aos mais diversos tormentos e sequer podem ser ouvidos, pois ninguém se dá conta de tamanha barbárie.

Fritjof Capra defende em alguns de seus livros que tratam: entre outras coisas, de ecologia profunda, física quântica e holística; que a mentalidade mecanicista da Física clássica exerceu influência em praticamente todas as áreas da ciência e ainda à própria sociedade. Vemos até hoje as idéias de Descartes, mesmo em face de descobertas mais complexas, serem o norte do pensamento científico e geral.

A dificuldade é mudar os paradigmas, o que Capra define bem em “O ponto de Mutação”.  É impressionante que com tantas descobertas e o aumento do conhecimento, a humanidade ainda siga no paradigma do machismo, da exploração invasiva da natureza e na segmentação da ciência. Neste ponto específico, ele fala de como a Biologia se ateve nas idéias de cartesianas a ponto de até hoje encarar a vida pela sua visão mecanicista. Todas as descobertas da Biologia Molecular, aliadas às idéias de Darwin, pode nos dar uma visão muito diferente da natureza e dos animais do que aquela visão antiga de um mundo mecânico e disposto ao nosso bel prazer e curiosidade pura.

A visão mecanicista da vida e de toda a natureza pode ser fruto da mentalidade egoísta e violenta, característica da humanidade. Não afirmado constantemente, muitos estudos corroboram a afirmação de que o ser humano é violento por natureza, embora tenha obviamente sentimentos bons e compassivos. O ser humano não tem sido ético com a natureza, especificamente com os animais, por se aferrar à crença de que é o centro do universo. Essa crença é reforçada por todas as religiões e prontamente aceita pela população em geral.  Embora difícil de afirmar, pois fazer julgamentos acerca de nós mesmos é sempre uma tarefa que pode gerar distorções, esta mentalidade é um tanto perigosa para animais e humanos, pois a partir de tal pensamento muitos outros surgiram com o intuito de desqualificar os animais da esfera moral. Só que seguindo este raciocínio, também pode-se desqualificar seres humanos que não tenham “as condições” tais que possam ser considerados. Vejamos alguns exemplos:

Em seu livro Ética e Experimentação Animal – Fundamentos Abolicionistas, Sonia Teresinha Felipe lista alguns argumentos que são contra os animais de uma forma muito enfática, autores que consideram os animais “ferramentas” para o nosso uso. Alegando que os animais não possuem sentimentos, ou que estes sentimentos são “incompletos”, desconsideram pesquisas importantes de realizadas por etólogos sobre o sentimento de dor e o comportamento dos animais. Mais parecem falar sozinhos, pois embora argumentem, só conseguem ver o seu ponto de vista e desconsideram que a ciência possa ter uma alternativa ao uso de animais.

Estar agarrado ao conceito de que os animais devem ser usados como ferramentas, objetos, utensílios, é o que faz estes pensadores e muitos pesquisadores a imaginar que a ciência não pode existir sem animais, que não poderá nunca haver alternativas e isto é um grande erro.

Chamaria de uma ignorância muito grande o fato da humanidade seguir usando e explorando os animais, desta forma tirana sem nem mesmo cogitar um mundo com outras possibilidades.
Um dos trechos do livro fala dos argumentos de Carl Cohen:

“Ao raciocinar conforme o critério utilitarista clássico, Cohen parece esquecer que a perspectiva utilitarista preferencial, adotada por seus colegas Richard M. Hare e Peter Singer, ordena levar em conta, no cálculo dos interesses, todos os afetados pelas decisões e ações. O cálculo dos benefícios e custos de uma ação, proposto pelos utilitaristas clássicos, não é mera ostentação de poder daquele que pretende obter benefícios para si, de uma decisão que a sua autoridade lhe confere o poder de tomar, subtraindo-os do bem estar alheio. (…) Ao defender seus próprios interesses, o sujeito moral racional não admite ser a vítima dos sacrifícios. Mas, esse mesmo sujeito aprecia que outros sejam sacrificados para atender seus interesses. Egoísmo e pleonexia  são termos que designam bem tal gosto, não ética, nem justiça.”

No capítulo 2 (Controvérsia Filosófica. O estatuto moral dos animais) de seu livro, Sonia Felipe mostra-nos alguns autores e seus pensamentos contrários aos animais. Carl Cohen é professor de Filosofia da University of Michigan, o adversário mais respeitado da posição de Tom Regan, que defende direitos morais para animais, caso insistamos em defender direitos morais para humanos não paradigmáticos.

Jan Naverson, no exemplo do livro, justifica sua recusa em atribuir direitos aos animais, afirmando que estes não podem firmar contratos.

Argumentos deste tipo, na explicação da escritora, cria o problema lógico e ético de se dever traçar uma linha divisória que separa seres dignos de consideração moral dos demais, indignos desta, já no âmbito da própria comunidade humana. Isso, em vez de favorecer a igualdade, cria condições morais para que se pratique a discriminação, velada é claro, atrás de declarações de igualdade que os próprios sujeitos morais, os dotados de uma suposta racionalidade plena, sabem muito bem não poder ser correspondida por parte dos deficientes morais.

“Naverson apela ao fato de haver, via de regra, quem se interesse pelo bem-estar de humanos marginais. Esse interesse alheio basta para que, no seu entender, não façamos àqueles algo que faríamos a quaisquer seres, caso não houvesse ninguém manifestamente interessado em seu bem estar. Conclui-se, do raciocínio de Naverson, que é do interesse de um terceiro, portanto, de uma espécie de dever indireto, que a obrigação de abster-se de atos cruéis contra o primeiro deriva. Com a defesa da posição de Naverson surge o problema de se garantir a moralidade do sujeito, quando não existe ninguém interessado no bem-estar de um determinado indivíduo, humano ou não humano. Neste caso, cessa o constrangimento moral naqueles que sabem da vulnerabilidade dos outros. Em outras palavras, se não temos deveres morais diretos para com humanos marginais, se o bem que lhes fazemos se deve apenas ao respeito que temos pelos sentimentos de outros seres humanos que os protegem, tudo é permitido quando esses não têm quem os acolha, proteja ou socorra. Este raciocínio incorre no risco de acabar por autorizar todo abuso contra seres sem tutores, sejam eles humanos ou não humanos.”

Podemos analisar tais argumentos e logo estabelecer em cada um deles, algo que não fecha. Por ter sempre um peso e duas medidas. Um favorecimento de nossa espécie, e o desprezo pelos demais. Na tentativa de favorecer em demasia o uso de animais em funções de interesses diversos, o próprio argumento se volta contra aqueles seres humanos mais fragilizados.

“Uma tal forma de argumento legitima o abandono de seres vivos em estado de necessidade, portanto, fragilizados e ameaçados pelo ambiente natural e social no qual têm de viver. Ao discutirmos a relatividade moral da condição animal, acabamos por tocar na relatividade da argumentação moral tradicional, que expõe, igualmente, humanos e não humanos ao abuso e à exploração, quando não há autoridade alguma que se interesse por seu bem estar ou pela preservação de sua vida. O contratualismo clássico acaba por prestar um desserviço à defesa dos direitos humanos, às dos animais,  e à do meio ambiente, quando esses não têm tutores que os protejam com cláusulas e leis específicas. O que Naverson não declara, mas evidencia em sua tese, é que só há dois conceitos possíveis na moralidade tradicional: o de sujeitos de direitos e o de coisas.  Para se ter proteção moral, há que se ter a  proteção de um senhor, um proprietário.”

Na literatura em geral temos muitos exemplos de denúncias contra a frieza humana em relação aos animais. A crítica de que defensores de animais não estão fazendo nada pelas crianças famintas, ou velhos doentes, geralmente é feita por pessoas que nada fazem nem pelas crianças, nem pelos idosos, mas acha pertinente apontar o dedo para aqueles que estão fazendo algo pelos animais. Como se um ato repelisse o outro ato. Muitas pessoas que ajudam animais são extremamente humanas e compassivas. Muitos dos que maltratam animais normalmente podem vir a fazer o mesmo com seres humanos.

Esta frieza e indiferença aos animais, os usados como fornecedores de partes e carcaças, por exemplo, é algo que choca, por ser tão arraigado nos costumes humanos. E fazem, conforme podemos pesquisar na literatura sobre a violência no mundo.

A banalização da violência começa quando, se normatiza a crueldade com os animais, alegando-se que foram feitos para isto. Confirmando os preconceitos mais antigos e seculares.

A ética começa quando decidimos revisar estes conceitos e adotar uma postura radical de mudança.

Apenas o vegetarianismo radical – veganismo – isto é, a abstenção total do consumo de produtos de origem animal, por sua coerência, é a atitude de proteção dos interesses animais digna de respeito.

Ser vegetariano e consumir avidamente ovos e leite como é comumente observado no Brasil, é uma atitude que prejudica os animais. Pois sabemos que animais utilizados como fábricas de ovos e leite têm vidas miseráveis, seus filhotes no caso das vacas são separados da mãe para virarem vitela ou algo do tipo e todos eles tem mortes tão cruéis como os outros animais de consumo.
Esta consciência ainda não foi despertada em muitos vegetarianos, mas aqui neste texto falamos da consciência da maioria das pessoas, que sequer lembram que aquele pedaço de carne vem de algum animal.

Nos livros do escritor e psicólogo Ezio Flávio Bazzo, temos alguns exemplos de denúncias de como a mentalidade social funciona:

“(…) Preste atenção, dizia-me uma delas, como quem não gosta de animais é mau caráter. E acrescentou: se existir o tal céu e o tal castigo que dizem todos aqueles que em vida mataram galinhas, vacas, peixes ou outros animais para devorá-los – seja lá na santidade do lar, aqui na ignomínia do puteiro, ou em qualquer outro antro de bruxaria – irão diretamente para o inferno.”

Nota de rodapé do livro “Prostitutas, bruxas e donas de casa: Notícias do Éden e do calvário feminino”.

Em outro livro, podemos verificar semelhante visão realidade na frase:

“Ah criadorzinho de vacas que destróis uma floresta secular para plantar soja ou para criar rebanhos!. É sintomático que em teu país haja mais vacas de que gente. E que tua nação seja um imenso e cruel matadouro. Tu que acreditas piamente num céu após a morte, podes estar certo de que quando chegares lá darás de cara com milhões de vacas, em fila, todas esperando avidamente para enfiar-te os cornos no rabo.”

Trecho do livro “Manifesto aberto à estupidez humana”.

Os livros deste autor, embora falem de assuntos diversos, possuem ótimas referências de filósofos e outros bons escritores e servem de base para questionarmos a realidade em que vivemos. Totalmente separada, esquizóide, uma realidade onde temos a espiritualidade totalmente independente da compaixão com os animais.

Boa parte das religiões ignoram os animais ou mesmo contribuem de forma enfática para reforçar o especismo. As religiões que defendem os animais, sempre o fazem de forma indireta, em benefício do homem, colocando-o acima de todos os seres. Não temos nada real.
A filosofia é o que resta-nos se quisermos usar um norte real e racional para defender os animais. Mesmo assim, estabelece-se essas divisões de pensamentos, naturais do próprio processo de pensar.

No livro Toaletes e guilhotinas, o escritor Ezio Flávio Bazzo comenta uma antiga imagem de abatedouro de cavalos:
“Mercado de Paris, 1900 _ Abatedouro de cavalos

Sem nenhum tipo de deboche, olhem atentamente para a boca, as narinas, as orelhas e o corpo inteiro do cavalo: ele emana mais (luz) e mais simpatia que todos os (matadores) que o distraem, que lhe tapam os olhos e que no momento seguinte arremessarão contra sua cabeça o golpe da marreta. Diante de uma dessas cenas, quem é que em sã consciência, consegue seguir confiando nos homens? Acreditando em suas leis? Dormindo a seu lado? Apesar de toda a demagogia humanista, não resta dúvidas de que os crimes cometidos nos abatedouros contra as aves, os porcos, as vacas e outros animais, é o mesmo que se comete sobre o cadafalso, nas cadeiras elétricas, nos postes e nos paredões contra os homens. A única aparente diferença está na racionalização que se desenvolveu sobre o assunto e na necessidade doentia e criminosa da humanidade em seguir massacrando as outras espécies”.

Com estas frases espirituosas, convido o leitor a refletir e aprofundar suas leituras e também suas atitudes sobre a libertação animal. Não podemos mais esperar por decisões que partam de fora ou somente das entidades. A humanidade encontra-se completamente dividida no que se refere aos animais e como todo preconceito, o especismo é muito difícil de ser percebido, pois estamos imersos nele.

Assim como os visionários que rapidamente perceberam preconceitos como o machismo, para dar um exemplo, hoje temos outros visionários que estão denunciando esta forma de preconceito chamada especismo – que é o desprezo, a falta de consideração com os seres que não pertencem à nossa espécie.

É muito terrível perceber este tipo de preconceito em praticamente todas as nossas relações, mas é bastante libertador para o nosso intelecto e principalmente para os animais estarmos atentos a estes comportamentos e tentarmos mudar nosso contexto.

A libertação definitiva dos animais é um ideal, uma utopia. Como tal, se coloca como um norte, mesmo que seja difícil de alcançar a curto e médio prazo. Todos que lutam por ideais, sabem que muito provavelmente não verão em suas vidas, alguma mudança substancial. Mas é importante lembrar que estas pessoas fazem a sua parte e colaboram para que o mundo sofra mudanças necessárias. A História nos mostra isso. Em sua época, muitos visionários sofreram preconceitos e até morte para que suas idéias sequer fossem mencionadas. E hoje, as colaborações destes pensadores nos garantem uma vida melhor. Da mesma forma, acreditamos que os animais precisam de pessoas com coragem de abrir a boca, escrever, lutar e tentar mudar as coisas aqui no presente. Mesmo que aparentemente as mudanças sejam lentas, elas ocorrerão, se soubermos como informar a todos e encorajar novas atitudes.

Bibliografia
Bazzo, Ezio Flavio. Toaletes e guilhotinas, uma epistemologia da merda e da vingança/ Brasília: Ed. LGE, 2008. 420 p. Primeira edição em 1995. Citações deste artigo nas páginas: 95, 128, 171, 208 e 306.
Bazzo, Ezio Flavio. Manifesto aberto à estupidez humana/ Brasília: Ed. LGE, 2007. 143p. Primeira edição em 1977/78, publicado em castelhano no México em 1979.
Bazzo, Ezio Flavio. Ecce Bestia – Libertinagem com animais/ Brasília: Narcisus publicadora & Cia, 2001. 163p.
Bazzo, Ezio Flavio. Prostitutas, Bruxas e Donas de casa – notícias do Éden e do calvário feminino/Brasília: LGE, 2009.
Capra, Fritjof. O Ponto de Mutação, Ed. Cultrix, 1992.
Capra, Fritjof. Sabedoria Incomum, Círculo do Livro, 1992.
Capra, Fritjof. O Tao da Física, Ed. Cultrix, 1995.
FELIPE, Sônia T. Ética e experimentação animal: fundamentos abolicionistas. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2007. 351p.
WRANGHAM, R., PETERSON, D. O Macho Demoníaco: As Origens da Agressividade Humana. Comportamento, 1998.

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