quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Hobsbawm (1917 – 2012) - por Osvaldo Coggiola

Hobsbawm (1917 – 2012)
Que a morte de um historiador ocupe a primeira página de jornais do mundo inteiro não é coisa que ocorre todo dia. Marxista e vinculado ao Partido Comunista inglês (ou ao que dele sobrou) durante toda sua vida adulta, autor de uma obra monumental, política e intelectualmente ativo até sua morte aos 95 anos, professor universitário emérito, tudo isso foi assinalado pelas matérias necrológicas que lhe foram consagradas, sem falar da enorme quantidade de prêmios e reconhecimentos que obteve em vida, às vezes concedidos por representantes de instituições e governos que, com certeza, jamais tinham lido uma só das milhares de páginas que saíram de sua pena, e nem tinham proximidade alguma com a esquerda, com o marxismo ou coisa remotamente parecida. Até governos do tipo mais diverso emitiram notas de pesar e condolência por sua morte.

A imprensa de direita se encarregou de destacar sua fidelidade ao “totalitarismo comunista” e alguma imprensa de esquerda seu silêncio sobre o stalinismo e seus crimes. Ao se referir ao assunto, Hobsbawm disse que “para falar do gulag deveria ter escrito coisas difíceis de dizer para um comunista sem tocar minha militância ou a sensibilidade de meus companheiros”, uma afirmação que não caracteriza exatamente uma mente brilhante ou um historiador comprometido com a verdade. O crítico inglês Terry Eagleton apontou que, em sua última tentativa de revalorizar o marxismo para compreender a era contemporânea (Como Mudar o Mundo, uma coletânea de velhos e novos ensaios publicada em 2011), Hobsbawm, como sempre, evitou se confrontar com a crítica marxista ao stalinismo, ou seja, com Trotsky, cuja trajetória e obra tratou brevemente, com superficialidade, no livro A Era dos Extremos (1914-1991). Apesar da enorme quantidade de assuntos que abordou em seus livros e artigos sobre a era moderna e contemporânea, a Revolução de Outubro nunca esteve entre seus temas centrais (o pouco que disse a respeito, por outro lado, não se caracterizou pela riqueza ou originalidade).

A obra de Hobsbawn, por outro lado, é enorme e rica. Em parte inspirada pelo marxismo, em parte por sua própria trajetória de vida. Eric John Ernest Hobsbawm (Obstbaum) nasceu em Alexandria (Egito, então protetorado britânico) em 1917, em uma família de origem judia, e se educou na Áustria e Alemanha, onde, membro Sozialistischer Schülerbund, assistiu a ascensão e vitória do nazismo (1). Mudou-se pra Inglaterra com sua família para fugir da perseguição antissemita. Lá, se incorporou ao Partido Comunista em 1936 e manteve sua filiação muito depois de a burocracia russa massacrar o levante húngaro em 1956 (massacre que Hobsbawm recebeu de “coração pesado”) e a Primavera de Praga em 1968, ainda que tenha tomado distância das duas intervenções, sem romper com o partido, como fizeram muitos de seus colegas intelectuais comunistas (Cristopher Hill ou E. P. Thompson). A burocracia da URSS premiou a fidelidade de Hobsbawm não publicando, jamais, nenhuma de suas obras em russo (traduzidas a mais de 50 idiomas) ou sequer um mísero artigo.

Concluiu seus estudos em Cambridge, a cuja cátedra aspirou, sem jamais consegui-la (pelo boicote da direita acadêmica). A partir de 1947 se tornou professor conferencista de história no Birkbeck College, em Londres, onde permaneceu grande parte de sua vida. Foi membro criador do Grupo de Historiadores do Partido Comunista, com Cristopher Hill, Rodney Hilton, A. L. Morton, E. P. Thompson, John Saville e Raphael Samuel, entre outros, grupo que em 1952 fundou a revista Past & Present. Seu primeiro livro, Labour’s Turning Point (de 1948) foi uma coleção editada de documentos do socialismo fabiano; pouco depois foi publicado um debate famoso do qual participou sobre as conseqüências da Revolução Industrial, ao que se seguiu um sobre a transição do feudalismo ao capitalismo e outro sobre origens da Revolução Industrial. Sobre seus colegas ingleses, Hobsbawm possuía a vantagem, depois decisiva, de sua condição de poliglota e sua formação de base multicultural (seus anos egípcios e alemães, com a experiência decisiva do nazismo), que lhe deram uma “abertura ao mundo” que seus companheiros não conseguiram (às vezes, nem buscaram).

Nas décadas de 1950 e 1960, se dedicou a trabalhos sobre a classe e o movimento operários, em especial na Inglaterra, durante os séculos 18 e 19. Muito ricos e, até certo ponto, metodologicamente originais, seus trabalhos (artigos) dessa época foram reunidos depois em vários volumes de ampla difusão (Mundos do Trabalho, Trabalhadores e Revolucionários). À velha (e não acadêmica) história do movimento operário centrada sobre suas instituições (sindicatos, partidos, líderes, episódios marcantes – greves e insurreições) Hobsbawm e outros historiadores contrapunham um novo tipo de história operária e popular, inspirada nos avanços da historiografia acadêmica, baseada na pesquisa de fontes primárias de todo tipo, na qual as condições materiais de vida, as práticas cotidianas, hábitos, costumes e cultura ganhavam seu devido lugar, contribuindo para uma reconstrução histórica muito mais precisa, não dogmática ou hagiográfica (como era típico na historiografia social-democrata-trabalhista, ou pior ainda, stalinista) da história da classe operária.

O ponto máximo dessa nova historiografia, entretanto, não foram os trabalhos de Hobsbawm, mas a magna opus de Edward Palmer Thompson, The Making of the English Working Class, publicada em 1963. A obra alcançou difusão mundial na década seguinte, contribuindo, de modo involuntário (em especial na América Latina), ao ser interpretada unilateralmente, para a criação uma historiografia operária despolitizada, baseada em uma ridícula e cretina contraposição entre “cultura e política”, franca e estupidamente reacionária, e sempre pálida imitação (papagaiada) do modelo metropolitano. Os trabalhos paralelos de Hobsbawm, pelo contrário, se destacam pela constante preocupação política, a afirmação do enfrentamento (luta) de classes em cada aspecto da vida operária e suas conseqüências políticas.

Hobsbawm, por outro lado, ampliou consideravelmente, na década de 60, a pesquisa histórica das origens e manifestações da rebeldia social contemporânea, fazendo sua obra ganhar projeção mundial, com obras como Primitive Rebels (1959) ou Bandits (1968). Em Primitive Rebels, realizou um relato muito original das sociedades secretas e das culturas milenaristas do sul da Europa, retomando a questão em Captain Swing, um estudo detalhado do protesto rural no início do século 19 na Inglaterra, em coautoria com George Rudé. Em Bandidos, a síntese incluiu o “mundo periférico”, chegando a afirmações quase ingênuas (ou exageradas), ao atribuir caráter de “rebelião social” aos briganti italianos (os mesmos que Engels, em polêmica com Bakhunin, qualificava contemporaneamente de vulgares bandidos) ou, como foi recentemente bem pontuado por Luiz Bernardo Pericás, aos cangaceiros brasileiros (que Hobsbawm chegou quase a assimilar à rebelião dos “tenentes”). Simultaneamente, Labouring Men apareceu em 1964 (Worlds of Labour, outra compilação, seria publicado em 1984) e, principalmente, seu primeiro grande trabalho de síntese da história mundial, Industry and Empire, foi publicado em 1968.

Essa obra abriu o caminho para o grande trabalho de síntese da história contemporânea que fez de Hobsbawm mundialmente famoso, e leitura obrigatória desde a década de 1970, com os livros “A Era das Revoluções (1789-1848)”, “A Era do Capital (1848-1875)”, “A Era dos Impérios (1875-1914”) e “A Era dos Extremos (1914-1991)”. Para o muito conservador (pra não dizer direitista) historiador inglês Niall Ferguson, esses livros são “o melhor ponto de partida para qualquer pessoa que deseje começar a estudar a história moderna”. Como conciliar essa afirmação com o caráter supostamente marxista dessas obras? No obituário redigido por Martin Kettle e Dorothy Wedderburn, no Guardian, se lê: “Se Eric Hobsbwm tivesse morrido 25 anos atrás, as necrologias o descreveriam como o historiador marxista britânico mais notável e terminariam mais ou menos por aí. Mas ao morrer agora, aos 95 anos, alcançou uma posição única na vida intelectual do país. Nos últimos anos, era o historiador britânico mais respeitado de qualquer tipo, reconhecido (se não aprovado) tanto pela esquerda como pela direita” (itálico nosso).

A “quadrilogia” de Hobsbawm é um tour de force sem paralelos na historiografia contemporânea, marxista ou não. A agenda da obra, sua periodização do capitalismo, é claramente de inspiração marxista: a vitória, estabilização, expansão mundial e, finalmente, decadência do capitalismo, ocupando cada volume. A obra, no entanto, não é uma “vulgata” marxista (daí, entre outras virtudes, seu grande êxito), mas, como o próprio Hobsbawm definiu, haute vulgarisation. Hobsbawm partiu da tese do materialismo histórico (que dominava ampla e sofisticadamente, como demonstra, por exemplo, sua edição e introdução aos escritos de Marx sobre as sociedades pré-capitalistas) para confrontá-las e iluminá-las à luz de todos os avanços e trabalhos recentes da historiografia acadêmica (os quatro volumes são totalmente baseados em fontes secundárias), construindo um relato sintético magistral, de uma erudição sem precedentes em relação aos períodos considerados e de magnífica fluidez lógica e literária.

Nunca o “marxismo acadêmico” ou a síntese histórica contemporânea alcançaram esse nível. Assim, os textos sintéticos de Hobsbawm se transformaram em referência acadêmica obrigatória, em momentos em que as matrículas nas universidades batiam recordes no mundo inteiro, e se transformaram em manuais nos mais diversos países, em faculdades e até escolas secundárias (e inspirando, também, outros manuais de qualidade inferior, que em boa parte eram cópias dos textos de Hobsbawm): nunca um historiador acadêmico profissional havia alcançado tal grau de difusão escolar (e, com a expansão da escola, também de difusão popular). Hobsbawm continuou escrevendo (muito), cabendo mencionar, destacadamente, sua coordenação do monumental História do Marxismo, realizada inicialmente pela editora do PC italiano, em tempos de seu vínculo privilegiado (e esperançoso) com o efêmero “eurocomunismo”.

Cabe afirmar, então, como fazem os companheiros da Radical Socialist, que “a debilidade de Hobsbawm foi (só) sua ‘leitura’ sobre o século 20, a Revolução Russa e o stalinismo”? (2) Na realidade, para dar brilho acadêmico inédito ao marxismo, Hobsbawm pagou também um preço, que permeia toda a obra. Ao levar em conta a maior quantidade de interpretações possíveis para cada fenômeno ou processo, valorizando as virtudes de cada uma, Hobsbawm caiu com frequência em uma sorte de ecletismo teórico, às vezes raiando o relativismo. Isso é visível inclusive em sua interpretação das revoluções burguesas, ou da “dupla revolução” (econômica e política, inglesa e francesa) que deram origem à era contemporânea (capitalista).

Sua interpretação do imperialismo capitalista, por exemplo, partiu da “Grande Depressão” econômica do último quarto de século 19, que deu origem à exportação de capitais, mas concede a esse fator tanto peso quanto às questões de prestígio e orgulho nacional (obviamente existentes, e imprescindíveis em qualquer análise) que animaram as potências capitalistas na corrida colonial. Sua análise das causas “econômicas” do imperialismo é, por outro lado, basicamente descritiva (ou seja, não sequenciada lógica e casualmente). Tudo isso, e não só sua ruptura com o stalinismo, teve peso em sua análise do capitalismo no século 20.

Na Era dos Extremos, seu texto consagrado ao “Breve Século 20”, as limitações de Hobsbawm como marxista (e também como historiador) se manifestam mais abertamente, não somente em suas análises da Revolução Russa e do stalinismo. Em sua análise da Primeira Guerra Mundial, concedia preeminência causal a uma disseminação da “cultura da violência”, herança do período anterior. O século 20 não é o teatro histórico da decadência capitalista, mas, em concordância com o precedente, o século dos massacres e dos genocídios, executados em escala industrial, o que, sendo perfeitamente real, aparece separado da dinâmica histórica do capitalismo. Sua análise da crise de 1929 e da depressão da década de 1930 mescla todas as interpretações já realizadas, sem se fixar por nenhuma (nem superando qualquer uma delas).

Os acontecimentos de 1989-1991, que concluíram com o fim da URSS, e segundo Hobsbawm fecham o “Breve Século 20”, foram interpretados realmente por Hobsbawm como sendo o fim do socialismo (ou do comunismo) – ou seja, a vitória (histórica) do capitalismo. E se perguntou: “O que sobrou para os vencidos?” Em textos posteriores, incluindo um Manifesto pela História (obviamente contrapondo às teses do “Fim da História” de Fukuyama e outros pavões de menor valor que desfilaram durante o carnaval intelectual “neoliberal”) Hobsbawm concluiu reivindicando a tradição iluminista, e atribuindo o marxismo (ou o que dele sobrara) a esta tradição, como uma espécie de “avatar radical” dela. E nada havia de marxismo, no sentido estrito, em tudo isso, só uma vaga simpatia moral pelas lutas realizadas outrora em seu nome.

Era mais que uma manifestação tardia. Hobsbawm nunca abraçou o anticomunismo, porque se definia claramente como ex-comunista, “por lealdade a uma grande causa, por lealdade com todos os que por ele sacrificaram a própria vida, amigos e companheiros mortos, que sofreram cárceres e tortura, tanto nos regimes comunistas como nos capitalistas. Me arrependo? Não. Sei perfeitamente que a causa que abracei demonstrou que não funciona. Talvez não deveria ter abraçado. Mas, por outro lado, se os homens não nutrem um ideal de um mundo melhor, perdem algo. Eu acho que a humanidade não pode funcionar sem as grandes esperanças, sem as paixões absolutas”. Propor uma (falsa) ilusão poderia, talvez, alimentar uma atitude de revolta individual, mas não seria, com certeza, um meio para reconstruir um movimento histórico.

Hobsbawm, felizmente, viveu o suficiente para ver a explosão e o desenvolvimento de uma nova crise histórica e mundial do capitalismo, na primeira década do século 21, que se não o levou a corrigir suas afirmações precedentes, o levou a propor uma nova vigência do marxismo, embora de modo não claramente definido e sem ultrapassar as limitações já enunciadas: “O socialismo falhou. Agora o capitalismo está falindo. Então, o que vem depois?”, se perguntou. Não teve tempo ou forças suficientes para buscar uma resposta.

Poucas mentes do século XX mereceram, como a sua, viver mais de cem anos. Hobsbawm, bem ou mal, enfrentou todos os problemas de nossa era, deixando-nos uma obra ímpar, que deve, contudo, ser criticada e superada. Por historiadores, certamente, por direções políticas e culturais à altura das tarefas da nova fase histórica, pelas centenas de milhares de jovens que o lêem em todo o mundo, pelo movimento consciente e autêntico da crítica radical e incessante da realidade.

Notas:
(1) “Eu, que pertenço a um povo de refugiados, cuja experiência foi tamanha que ainda me sinto um pouco desconfortável se eu não tenho um passaporte válido e dinheiro suficiente para me transportar para o país mais próximo em um curto prazo, posso entender a situação dos quenianos asiáticos e tenho horror dos oficiais de imigração britânicos, de uma maneira muito mais profunda e visceral do que aqueles para quem a questão central é uma igualdade de direitos e liberdades civis em geral "(1969)

(2) “Tendeu a apresentar um pedido de desculpas objetivista, com o argumento essencial de que mesmo se o poder tivesse alguém menos cruel do que Stalin, as circunstâncias resultaram em similar violência de grande escala, empreendida em favor dos interesses da construção socialista. Isso implica, em primeiro lugar, que a avaliação das revoluções européias estavam fadadas ao fracasso. Segundo, isso significava não ver o stalinismo como um sistema de dominação burocrática do governo por estamento burocrático que tinha usurpado o poder, mas como características pessoais de Stalin".

Osvaldo Coggiola, historiador e economista, é professor do departamento de História da USP.

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