Cultura Digital, janela pra a pós-massificação?
Pela primeira vez na história, é possível superar indivíduo e homem-massa, construindo o comum. Seria trágico desperdiçar tal oportunidade
Em 2020, o mundo deverá ter mais de 24 bilhões de dispositivos conectados em rede, como apontam pesquisas da empresa Machina Research, especializada no tema. Com isso, haverá uma média de três aparelhos conectados por pessoa, incluindo celulares, eletrodomésticos, tablets e até computadores. Eles poderão ser utilizados heteronomamente. Ou de modo um pouco mais autônomo. Se de maneira heterônoma, continuarão gerando massificação, mesmo que venha a ser um tipo customizado de massificação. Se de forma mais autônoma, poderemos ver a emergência de indivíduos-redes desmassificados?
Certamente que os atuais avanços da era digital podem, se bem aproveitados, gerar um ambiente menos favorável à homogeneização cultural e à vigência do comportamento do que Ortega chamou de homem-massa – este produto da técnica da era industrial que se desenvolveu na virada do século XIX para o século XX. Agora, em pleno século XXI, mais uma vez o desenvolvimento técnico vem trazer questões importantes para se pensar sobre como o ser humano se comporta em relação à tecnologia que ele mesmo desenvolve.
Diferentemente do homem-massa delineado por Ortega na década de 30 do século XX, os seres humanos atuais, do ponto de vista tecnológico, têm abundantes condições de viver numa multidimensionalidade da cultura. Há mais acesso à diversidade cultural e às condições de se fazer as recombinações de elementos, processos e visões de mundo, muito mais do que em qualquer outro momento da humanidade. Portanto, em se tratando de cultura, essa palavra cujo sentido em muito tem a ver com modos de fazer, de técnicas e interação de indivíduos entre si e destes com a natureza, uma cultura ligada ao ambiente digital não pode ser desconsiderada numa leitura mais plena de nosso tempo.
A cultura digital e seus rebatimentos estéticos (diversidade cultural e recombinações), éticos (ética do compartilhamento) e políticos (ação cidadã em rede, descentralizada e com menos mediação de estruturas verticais) são, em termos mais amplos, um importante tema de nuestro tiempo. Não se trata mais da perda da aura da arte na época de sua reprodutibilidade técnica – como assinalava Walter Benjamin – mas, devido à desmaterialização dos suportes ocorrida nas últimas décadas, trata-se da perda da aura da obra de arte na época de sua infinita reprodutibilidade técnica. Há mais condições de heterogeneidade, diversidade, inter e transculturalidade, portanto mais condições (e responsabilidades) dos sujeitos contemporâneos fazerem a si próprios.
Foram décadas de unidimensionalidade (O homem unidimensional, de Herbert Marcuse). Nelas, a sociedade industrial impunha quase que uma única dimensão da vida: uma racionalidade “tecnológica” (físico-matemática, para Ortega) de mão única. Ela dominava e oprimia por meio de aparatos de controle das consciências humanas, meios de entretenimento e comunicação de massa que hiperdimensionavam em todos a pulsão de vida (sexo, jogos, entretenimento) e a pulsão de morte (violência urbana e sensação de insegurança extrema). O resultado eram homens e mulheres autômatos, incapazes de se opor ao sistema, pois vivendo a mecânica do conformismo, dentro das benesses do conforto.
Agora, com as novas condições, não há também mais desculpas: o homem-massa, paciente e agente de sua condição de massa, invertebrado habitante do ambiente técnico-consumista do século XX, dominado pelo mercado, por partidos, sindicatos e estados ortopédicos, de cima para baixo, não tem mais a quem jogar a responsabilidade. Ele pode recuperar sua autenticidade, como em nenhum outro momento da Humanidade. A técnica do século XIX engendrava o homem-massa, dizia Ortega. A técnica do século XXI pode engendrar o pós-homem-massa. Se para os frankfurtianos e para a teoria crítica, o comportamento heterônomo era inculcado pela indústria cultural nas cabeças das pessoas, hoje este elemento se fragmenta. Desaparecem dia a dia os mediadores e as indústrias de fabricação de suportes materiais da arte e, de todo lado, movimentos de indivíduos em rede trazem as visões da periferia para o centro do debate sobre cultura. Com tudo isso, é possível dizer que estão dadas as condições técnicas para a superação tanto do homem massificado quanto do homem atomizado, fechado em si, solipsista, consumista individualizado e não participante de sua circunstância?
II.
Pós-homens-massa
Aqui e ali já se notam as estratégias das empresas na internet para gerar comportamentos massivos através de ambientes pós-massivos. São espécies de homens- massa customizados, a parecerem indivíduos autônomos, mas no fundo não só seguem como aprofundam os padrões de consumo da era industrial. Um perigo é que, com as novas tecnologias de produção pós-industriais, a produção capitalista atual sabe que não precisa mais fazer nada em série, nem seres humanos em série. Hoje , trabalhando com a tática de criar – eles dizem “descobrir” – nichos de mercado, ela amplia seu poder ao fazer homens-massa customizados, com aparência de autônomos. As roupas e os cabelos parecem diferentes entre si, mas este tipo de homem-massa customizado segue o mesmo por dentro: inautêntico e diminuído ao elemento fundamental do consumidor, em vez de responsável por fazer sua própria vida. Mesmo no ambiente pós-massivo, este tipo massificado pelo mercado continua massa, pois segue sendo educado pelo mercado e pelos usos da sociedade desvitalizada pelo pragmatismo utilitarista, materialista e agora pela internet para se comportar como massa, invertebrada e vaga.
Em sentido contrário, nunca se teve tantas condições de se hackear, fazer truques, implantes, rachas no sistema. A articulação da cultura colaborativa digital com a economia solidária tem revelado um potencial gigantesco de revitalização cultural, em todo o mundo onde ela se desenvolve. Uma das razões é que ela é capaz de “destampar” culturas populares rurais, urbanas, suburbanas, antes invisibilizadas, por sua capacidade de descentralizar e multidirecionar os fluxos de informação e de recursos, antes unidirecionalmente ativados desde um centro industrial para o consumo de massas.
Sua capacidade de transversalidade e transdisciplinariedade permite que se gerem soluções e alternativas, convergências entre futuro e passado, de saberes e fazeres tradicionais com as inovações de ponta, sem no entanto isso significar homogeneização, mas mistura, diversidade, amálgama ou síntese. E como seria este pós-homem-massa? De maneira dialética, é preciso procurar a virtuosa posição de convergência, como Aristóteles ensina com o seu certeiro meio-termo justo. Com as condições atuais, ele pode sair do binarismo. Pode não ser nem horizontalidade nem verticalidade somente. Pode deixar para trás a infértil ideia de não-sujeito da pós-modernidade, da quase anulação da possibilidade de agir esteticamente, politicamente e eticamente da pós-modernidade, mas não precisa retornar ao indivíduo solipsista cartesiano, cheio de uma moral e de uma razão mortas, como alertava o filósofo espanhol. Nos dias de hoje, começamos a ter a convivência de indivíduos solipsistas, homens-massa, homens-massa customizados e pós-homens-massa.
III.
Em vez de massa, o comum
Pelo menos há mais condições de surgirem pessoas conscientes desta circunstância e que se conectam a outros, em rede, para gerar capacidade de influir e de produzir narrativas novas, mais autônomas que heterônomas. É também outra ideia de coletivo, não a que Ortega criticava, em cujo interior as ideologias das grandes narrativas achatavam as consciências. Trata-se de uma ideia de coletivo em que ponto a ponto, pessoa a pessoa, os sujeitos que o compõem têm liberdade de ser e de pensar por si próprios. Em vez de massa, poderemos falar em “comum”, em que os indivíduos, com mais liberdade do que antes se reúnem livremente, autonomamente, para colaborar, para trabalhar em conjunto. A massa é passiva, o comum é ativo. Estão dadas condições para um pós-homem-massa, integrante de uma humanidade-rede, diversa, amalgamada, em que aos traços da homogeneização cultural são acrescentados uma heterogeneidade viva de indivíduos em rede, formando coletivos que pensam o comum a partir da contribuição efetiva, ativa e crítica de seus integrantes.
A esses está colocado o problema de saber a que se ater e compreender o “tema de nosso tempo”. Também se pode falar na necessidade de construção de uma outra ideia de Estado, de partidos e ideologias, não ortopédicas (como criticava Ortega), mas também não ausentes a ponto de permitir o laissez-faire do século XIX, o liberalismo econômico (que ele também criticava pela substituição que este fazia dos valores, por preços) tomar conta da cultura. É tempo de falar sobre as condições de possibilidades da superação da dicotomia massa-minoria abordada por Ortega pois, como as condições da análise de Ortega mudaram – as circunstâncias técnicas se transformaram – a pedagogia social e o papel das minorias mudam também.
Precisamos de uma síntese nem horizontalista (massa) nem verticalista (minoria), mas uma espécie de diagonal provocadora de sínteses e convergências: é a era do “e”, das conjunções. O desafio é similar ao que Ortega colocou-se: o de não ser binário, idealista ou realista, nem racionalista nem vitalista, nem eu nem circunstância, mas amálgama de um e outro. Dessa maneira, a tensão massa-minoria das sociedades, pela descentralização dos meios de produção e reprodução da cultura, traz outro sentido: a pedagogia necessária não é aquela de poucos homens autênticos, nobres, seletos e esnobes do início do século XX, atuando sobre a massa, mas uma vanguarda formada por pessoas conectadas em rede no mundo todo, capazes de liderar processos locais e globais de combate à unidimensionalização do mundo, à massificação e à homogeneização cultural.
Autênticos, pode-se dizer, por professarem e viverem valores vitais, colaborativos, por trabalharem com uma razão com mais substância que a razão instrumental, físico-matemática. Não sabemos o que Ortega pensaria disso, hoje. Talvez não concordasse com estas conclusões. Mas, como pensar era, para ele, aventura de entusiasmo raciovital, assumimos seu raciovitalismo como ponto de partida para a aventura da razão. Não como ponto de chegada, o que seria também um ortopedismo que, seguramente, Ortega desaprovaria. Assim, tendo como base o “nem racionalismo, nem vitalismo: raciovitalismo”, de Ortega y Gasset, temos a possibilidade de pensar em um programa raciovitalista para a superação do problema da massificação nos tempos de hoje. Tempos em que vivemos um híbrido de era pré, industrial, e pós-industrial, e em que a homogeneização cultural e a padronização de comportamentos começam a ser contestadas em todos os cantos do mundo onde haja acesso à internet e sua consequente possibilidade de ação em rede, não do ponto de vista utilitário e consumista, mas cultural: a cultura digital.
Neste sentido, mais que a conexão física, obviamente fundamental, o que importa é a cultura de rede, a cultura colaborativa, pós-industrial e pós- massificante que vem sendo construída, pessoa a pessoa, nessas conexões. Em nosso entendimento ela, a cultura digital, é condição para revitalizar a própria ideia de cultura, pesadamente homogeneizada. Ela é condição de possibilidade de se desmassificar, “destampar” o vital da diversidade cultural, das culturas populares, do interior dos países (e seu conteúdo extremamente valioso do ponto de vista de uma metáfora daquilo que se tem dentro, que tem entranha, que tem conteúdo, em vez do superficial, ostentatório, distintivo ou apenas mercadológico da cultura de produção fordista para consumo de homens-massa).
Há uma razão sendo produzida nas redes, que não é apenas técnica nem puro vitalismo irracionalista, mas uma razão que vem da vida (de milhões de vidas de indivíduos eu-circunstâncias em rede), com um potencial enorme de trazer novos valores à tona. Se, como disse Ortega y Gasset no início do século XX, o sujeito é um eu-circunstância, devemos considerar a circunstância atual de intensa conectividade ponto a ponto. Nessa, não mais pela pedagogia social de minorias, mas pela exemplaridade da participação ponto a ponto, o homem-massa da sociedade massificada tem condições de se tornar um pós-homem-massa, desde que utilize as novas tecnologias para gerar autonomia, em vez de se utilizar dos mesmos para gerar heteronomia, homogeneização e consumo massificado.
O ambiente digital provoca, com suas possibilidades, o homem a fazer novas narrativas de si próprio, em termos de valores, propriedades, ideia de si e da sociedade etc. O digital é uma nova circunstância. Se o homem-massa é produto da era industrial que gerou o chamado “fenômeno do pleno”, o consumo em massa e a homogeneização da cultura, é preciso pensar se as mudanças tecnológicas do nosso tempo, com a emergência da internet e das redes também não dão condições para uma superação do problema criado pela relação desresponsabilizada do homem com os produtos da técnica daquela época, bárbaros a colherem seus produtos, como em estado de natureza. Conseguirão os sujeitos de hoje utilizar estes ambientes de rede de forma a gerar autonomia e sujeitos-redes, indivíduos-redes, eu-circunstâncias-redes, ou, ao contrário, o rearranjo do mercado conseguirá repor o quanto de elemento homogeneizador necessita para a sociedade continuar sendo massificada?
Jéferson Assumção é escritor gaúcho, autor de 17 livros, entre eles Máquina de Destruir Leitores (Sulina), O Mundo das Alternativas (Veraz) e A Vaca Azul é Ninja. Doutor em Filosofia pela Universidade de León, Espanha. Foi secretário municipal de cultura de Canoas-RS e coordenador-geral de Livro e Leitura do ministério da Cultura. Atualmente é diretor-geral e secretário adjunto de Cultura do Estado do Rio Grande do Sul. Mantém um blog.
Imagem: Bansky
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