Um jogo de comadres sem rumo
Fernando Henrique Cardoso e revista “Época” protagonizam mais uma página desconcertante do jornalismo brasileiro
Em 22 de Março de 2013, foi publicada pela revista Época uma entrevista com o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. A entrevista é uma pérola de contradições e frases sem sentido, com o objetivo de caracterizar a situação atual do Brasil como ruim. Nada surpreendente, tendo em vista a natureza do entrevistador e do entrevistado, mas vale a pena revelar os problemas desta empreitada mútua, a qual provavelmente será bastante divulgada pelos grupos conservadores deste país.
Em relação ao entrevistador, trata-se de um veículo de mídia que – como os demais que integram o oligopólio privado da mídia brasileira – é escancaradamente simpático ao PSDB e adversário do PT. A simpatia de Época por FHC já fica clara na apresentação da entrevista, quando ele é caracterizado como “uma das cabeças mais privilegiadas do país” dotada de “inesgotável curiosidade para perscrutar o que pode vir por aí”. Duvido que achem tratamento tão afável da Época ao Lula (em relação a qualquer de suas qualidades).
Em relação ao entrevistado, trata-se de um ex-presidente cuja atuação depois do mandato resumiu-se a um contorcionismo intelectual. Ao avaliar seu próprio governo, FHC culpa crises internacionais pelo que deu errado e toma para si o mérito pelo que deu certo. Já ao avaliar os governos de Lula e Dilma, FHC culpa o PT pelo que deu errado e toma para si e para um cenário internacional favorável o mérito pelo que deu certo. Um peso, duas medidas. Para os que quiserem conhecer o contorcionismo intelectual de FHC frente à sua própria teoria da dependência, vale ler Revisitando a obra Dependência e Desenvolvimento na América Latina, escrito pelo professor José Maurício Domingues e publicado em 2010 pela FLACSO.
Sobre a situação do país e as eleições vindouras, FHC afirma que “Há um sentimento mudancista, mas ainda sem dar conteúdo à mudança. Não sei se no povo. Mas entre as pessoas que leem jornal, sim. Inclusive empresários.” Pasmem, FHC fala isso dois dias depois de 63% dos brasileiros considerarem a gestão de Dilma boa ou ótima (aprovação recorde). Pelo menos, teve a lucidez de notar que o sentimento de mudança não está “no povo”, apenas nas pessoas que “leem jornal” (provavelmente pessoas que leem entrevistas deste tipo em Época e Veja). FHC utiliza artifícios retóricos interessantes para tentar convencer o público de que o Brasil vai mal sob os governos do PT e o povo quer mudança. Em 2008, FHC usou a expressão francesa malaise para se referir ao que agora chama de “sentimento mudancista” e acabou passando vergonha (diante do entrevistador da BBC, que o contrariou, e do povo brasileiro, que elegeu Dilma em 2010).
Aí, Época responde ao ex-presidente dizendo que “O povo sente que o desemprego está em baixa, e a renda aumentou. Não há sensação de crise.” Para o que FHC diz: “Nem sei se é necessário crise. De vez em quando, as pessoas querem aerar. Querem mudar. Meio irracionalmente. Quando tem uma basezinha que não é irracional, o problema se agudiza.” Por um momento pensei que eram Caetano ou Gil sendo entrevistados, de tão confuso. Como pode um ex-presidente que, segundo Época, possui um “arsenal teórico de cientista social”, explicar a mudança política em escala nacional com base em pessoas que “irracionalmente” querem “aerar”?
Em seguida, FHC diz que Dilma toca uma política industrial anacrônica de “apoiar certas empresas” e “certas áreas”. Aqui concordo parcialmente com ele, pois também sou crítico de se proteger indústrias tradicionais de manufatura ou oligopólios transnacionais instalados no país sem que haja uma política forte de incentivo à inovação tecnológica, à formação de capital humano e de defesa da concorrência (vide meu artigo de crítica à estratégia neo-desenvolvimentista lula-dilmista, publicada em Outras Palavras em agosto de 2012). Porém, discordo desta rejeição tout court da política industrial como ferramenta para o desenvolvimento. Não é isto que nos sugere a experiência do Leste Asiático (ou mesmo a dos EUA).
Então Época pergunta, em referência a um suposto retorno ao velho desenvolvimentismo durante o governo Dilma: “Mas há duas maneiras de o Estado intervir. No desenvolvimentismo, ele subsidia empresas e cria estatais. A partir dos anos 1990, o Estado passou a tratar mais de saúde, educação e políticas sociais. Essa mudança é inexorável ou voltaremos ao passado?” Acho tragicômico. O repórter tenta associar o desenvolvimentismo com algo ruim, do passado, dependente de subsídios e de estatais e apresenta os anos 1990 (do governo FHC) como os anos dourados da saúde, educação e políticas sociais. É só pegar dados sobre investimento público em saúde, educação e políticas sociais pra concluir que aumento substancial não houve nos anos 1990, mas sim nos anos 2000, sob o governo de Lula.
FHC também afirma que, no governo Dilma, “A política fiscal foi abandonada, como se fosse uma persistência do que eles chamavam de neoliberalismo”. Ainda bem que temos a mídia alternativa com vozes de lucidez para contrariar inverdades. Em artigo publicado por Carta Capital (25/02/2013), o economista João Sicsú mostrou que os indicadores de “gasto social per capita” e “dívida líquida do setor público” tiveram desempenho substancialmente melhor nos governos Lula e Dilma do que durante o governo FHC.
A entrevista continua com pérolas como “É de espantar que o Congresso jamais tenha discutido o pré-sal. Quando fiz a quebra do monopólio, houve um debate imenso. Agora, tudo foi feito a frio.” Não só houve debate como, não sendo suficiente, a batalha dos royalties agora chegou ao Supremo Tribunal Federal. Para ser justo, FHC também fez afirmações interessantes, por exemplo, quando defendeu a meritocracia nas universidades ou que o meio-ambiente não seja deixado de lado numa estratégia de desenvolvimento. Todavia, ao final, perguntado sobre que estratégia o Brasil deveria adotar, FHC – “uma das cabeças mais privilegiadas do país” – responde “É difícil imaginar, assim, de repente.”
Da minha parte, ao neoliberalismo de FHC e aos anos 1990, requiescat in pace.
Felipe Amin Filomeno é economista, doutor em Sociologia pela Johns Hopkins University e professor adjunto do Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina
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