Valor à Vida: O preço e o custo da comida pra cachorro
“O costume é capaz de justificar as pessoas em qualquer atrocidade.” George Bernard Shaw
A questão do confinamento de cães e gatos nas cidades é um tema recorrente, que temos debatido aqui na ANDA entre os colunistas, pelos pressupostos abolicionistas veganos. Não vou abordar aqui o que já está bem trabalhado, como a situação em que os cães e gatos são submetidos nas pequenas e grandes cidades, a sua falta de liberdade e o sofrimento decorrente disso, principalmente nos abrigos, que confinam dezenas e às vezes centenas de animais, enquanto o comércio de “pets” corre solto.
Trago à tona a questão sobre o que pode ser feito diante dos cães condenados ao confinamento até o resto de suas vidas, nos abrigos formais e informais. Ao nos depararmos com um ser que precisa de socorro, as reações variam desde a predominante indiferença até as gradações do que arrisco denominar de compaixão. Alguns olham, lamentam, e vão embora, outros sentem em si a dor do outro e buscam o socorro. Destes, alguns assumem o ser como cidadãos cientes do tamanho da problemática, outros fazem de tudo para repassar o problema para terceiros pelo preço de um saco de ração por mês. Reside aí a interface entre “proteção” e defesa de direitos, já discorrida aqui por colunistas da ANDA. Mas sejam os cães abandonados, comunitários (atendidos por “cuidadores”) ou confinados em correntes, canis ou grandes quintais, todos tem uma necessidade básica: precisam se alimentar. Mas quanto custa alimentar um cão?
Vivemos hoje no império da ração, onde existe uma infinidade de opções de marcas e valores nutricionais e monetários. O custo ético de alimentar cães é um debate dramático, pois a cada tentativa de discussão ressurge a justificativa de muitos de que a ração é comprada e fornecida para salvar uma vida (a do cão com fome). O ato de alimentar um ou vários cães torna-se tão automático quanto o de nos alimentarmos. Veganos já transcenderam essa questão, pois dizem não a várias opções de consumo que nos são enfiadas goela abaixo. Cospem na cara do mercado da exploração de animais. Diante da situação dos inúmeros cães abrigados por socorristas, é preciso refletir também sobre o quanto custa em vidas, em trabalho e em tempo fazer uma comida pra cachorro. Se fôssemos nós os responsáveis por matar animais para fazer a ração de cada dia, nós o faríamos? Nós pagamos para a indústria agropecuária fazer isso por nós.
Uma leitura rápida em artigos da área da indústria de ração e nutrição animal deixa qualquer abolicionista vegano tonto. Com linguagem técnica, fica clara a realidade de filhotes e fêmeas de animais convertidos em matéria prima para a ração “pet”, além dos restos de animais que não encontram mercado na alimentação humana. A isso podemos somar uma quantidade de grãos, que também obedecem às tendências de mercado associadas à produção de ração para animais “de consumo”. Enfim, mesmo com todo o mérito de um socorrista, carregamos um fardo pesado, ao alimentarmos cães com pintinhos, vitelos, vacas, cordeiros, porcas e tantos outros animais vítimas da pecuária. Mas esta questão pode ser enfrentada, pois podemos amenizar o ônus moral nos abrigos parando de alimentar os cães com a indústria da morte de animais. Estou falando da dieta vegetariana para os cães. Nós podemos, basta saber se queremos. É como na adoção do veganismo como modo de vida.
Todo trabalho da produção de ração é industrializado, a ração é fabricada em grandes máquinas as extrusoras, misturadoras, empacotadoras, etc. A matéria prima provém da monocultura, que gera os grãos (principalmente milho e soja) e dos frigoríficos e graxarias, onde os restos de animais são convertidos em farinhas de ossos, de vísceras, de carne.
Sim, o abolicionismo vegano aponta para a necessidade de começarmos a cozinhar para os cães. Já existem inúmeras experiências de tutores e seus cães vegetarianos. E não é uma questão, ainda, que pode ser resolvida de forma simples, com ração vegetariana, pois a única marca brasileira de ração que alega ser vegetariana possui ingredientes de origem animal, de acordo com investigações de ativistas. E mesmo que fosse, seria uma marca de ração produzida na mesma indústria que produz os 99% de ração de origem animal.
Se quisermos realmente encarar esse dilema ético é preciso ser vegano e cozinhar. Se cada tutor ou socorrista de cães tivesse que preparar a comida para os seus socorridos, tenho certeza que não haveriam tantos abrigos com centenas de cães por aí. Porque cozinhar é um ato de amor e cuidado. Requer atenção, reflexão e algo muito caro nos dias de hoje, o nosso tempo. Vai contra o nosso modelo maluco de sociedade.
Escolher os vegetais, planejar as proporções, processar os alimentos (bem picados ou moídos para facilitar a digestão), cozinhá-los, adicionar ingredientes crus, armazenar, oferecer, avaliar a aceitação e assimilação, variar cardápio, são tarefas de um tutor de cães abolicionista vegano. O livro Cães Veganos, de James O’heare, disponível aqui na ANDA, traz mais informações sobre o tema.
É um trabalho necessário, se queremos aliviar um pouco o ônus moral dessa loucura que é confinar os cães em quintais, pois os muros dos abrigos não são de vidro. Mesmo os tutores de um ou dois cães, se precisassem cozinhar (com carinho) para eles, repensariam o fato de comprar “pets” ou até mesmo de adotar vários animais.
Convido a todos os tutores de cães, que façam a experiência de abolir a ração, mesmo que gradativamente, e comecem a estudar e praticar a alimentação vegetariana para cães. Convido também os responsáveis por abrigos a pensarem no assunto com uma calculadora na mão, não para fazer as contas somente do custo monetário, de tempo ou de trabalho, mas de vidas. Mas para isso é preciso antes repensar a sua própria alimentação, humana, pelo viés ético, social e ambiental. É preciso ser vegano.
Muitos dilemas podem ser reavaliados a partir dessa reflexão, e um cão perambulando na rua não será mais considerado o maior dilema do mundo, se ele estiver em boas condições de saúde. E se for realmente necessário o recolhimento e o confinamento, diante de limitações que impeçam este cão de viver de forma autônoma, que pelo menos façamos o exercício moral de cozinhar para ele. Assim teremos uma medida do quanto somos dependentes dessa sociedade industrial especista e quem sabe canalizemos nossos esforços para lutarmos não por abrigos maiores, mas por abrigos vazios e pela liberdade de ir e vir dos cães comunitários.
Por hora, sinto-me um pouco mais aliviada por cozinhar para os cães que tutelo. E sonho que um dia resgatemos o direito de ir e vir dos cães, como seres sencientes, e que eu possa, ao ser visitada por um cão, lhe oferecer uma comida vegetariana, um pote de água, um afago, um canto macio e um portão aberto. Enquanto esse dia não chega, por mais que trabalhemos para isso, que eu consiga alimentá-los sem gerar a morte de outros.
Fonte: http://www.anda.jor.br/
2 comentários:
Mto bem. É isso mesmo.
No momento, ainda faço parte dos que alimentam seus cães (e os de rua) com ração contendo outros animais mortos.
Estou no caminhho de produzir os alimentos das nossas (9) e dos de rua (13, por enqto), com ingredientes 100% vegetais.
Grata pelo incentivo. Em breve, se Deus quiser, volto pra dizer que já ficaram todos livres do consume de cadáveres.
Boa sorte na luta.
Que bom Júnia...
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