segunda-feira, 8 de abril de 2013

Não haverá tiros de misericórdia em Ruanda – por Flávio Ricardo Vassoler

Não haverá tiros de misericórdia em Ruanda
‘Tiros em Ruanda’ (2005), filme dirigido por Michael Caton-Jones, narra o caos legado pelos antigos colonizadores belgas. Consta que antes da chegada dos europeus, não havia hostilidade entre tutsis e hutus. Mas era preciso dividir para reinar.
“Ruanda, 1994. Durante 30 anos, o governo da maioria (étnica) hutu perseguiu a minoria tutsi. Sob pressão do Ocidente, o presidente hutu concordou, não sem relutância, em dividir o poder com os tutsis. A ONU enviou uma pequena força à capital Kigali para monitorar a frágil paz”.

Eis a epígrafe de Tiros em Ruanda (2005), filme dirigido por Michael Caton-Jones. Eis o caos legado pelos antigos colonizadores belgas. Consta que antes da chegada dos europeus, não havia hostilidade entre tutsis e hutus. Mas é preciso dividir para reinar. Assim, os belgas decidem arregimentar entre os nativos os negros com traços menos africanos para estabelecer um governo colonizador híbrido. Administração eugênica: os tutsis seriam mais altos, teriam narizes mais afilados. Segundo os parâmetros protonazistas dos colonizadores, não poderiam ser considerados europeus, mas tampouco seriam rebaixados a hutus. “Sub-humanos” elevados a cargos administrativos sob a tutela belga.

Com o processo de descolonização do continente africano após a Segunda Guerra, os belgas saíram de cena. A maioria hutu, então, começou a dar vazão ao ressentimento colonial. Já que os europeus não poderiam ser batidos, que tal aniquilar a minoria étnica que tratava os hutus como escravos? Outrora apêndices dos senhores brancos, os tutsis passaram a ser chamados de baratas. (No que os hutus se mostraram bons estudantes de história: afinal, o antissemitismo europeu não tratara os judeus como piolhos?) Que fazemos com as baratas? Os leitores de Franz Kafka bem conhecem as agruras pelas quais o jovem Gregor Samsa teve que passar após sofrer A metamorfose (1915) que o transformou em um inseto.

− Inseto tutsi! – arrematariam os genocidas hutus munidos de seus facões ensanguentados.

Em abril de 1994, um golpe de Estado hutu faz a paz se esgueirar entre os escombros. Os tutsis tentarão rezar, mas logo haverá bem mais do que choro e ranger de dentes. As comportas do caos serão abertas. Haverá o silêncio impassível de mais de 800 mil cadáveres étnicos.

Uma Escola Técnica Oficial (ETO) se transforma em base para os soldados da ONU e em inusitado campo de refugiados tutsis. Os soldados irão intervir no massacre? Corpos e mais corpos retalhados se amontoam ao redor da ETO. Os hutus desconhecem a matança clínica e industrial dos campos de concentração europeus. Os facões picam os corpos como outrora cortavam a relva pela mão dos escravos que agora só querem retaliação. Os soldados da ONU irão intervir no massacre?

− Não somos pacificadores, isto é, não estamos aqui para manter a paz. Estamos aqui para observá-la e monitorá-la. Só podemos disparar em legítima defesa. E a utilização das metralhadoras requer autorização prévia do comando subordinado ao Conselho de Segurança.

A Organização das Nações Unidas protege os direitos humanos: os 40 europeus que haviam se refugiado na ETO logo são levados ao aeroporto de Kigali sob forte escolta da Legião Francesa. A Organização das Nações Unidas vela os detritos humanos: os tutsis sitiados na ETO ficarão sob a proteção dos soldados até que o alto comando faça os militares bater em retirada. Então, os rebeldes poderão cruzar os portões para cumprir os desígnios da rádio hutu:

− Quem vai encher os túmulos vazios? As baratas estão escondidas nas igrejas! As baratas estão escondidas nas escolas!

Mas não, não: os soldados irão intervir no massacre. Os cachorros ruandeses – o manual do colonizador não especificou se os cães seriam tutsis ou hutus – começam a devorar os cadáveres. “Eis um risco gravíssimo de contaminação!” O capitão pede ao padre, o responsável pela ETO, que acalme os tutsis ainda vivos. “Vamos atirar nos cães. Eles não podem continuar a devorar os mortos. Para que não haja pânico, avise a todos que, por ora, os tiros serão amigos”. Enfurecido diante de um mundo que seu Deus parece ter abandonado, o padre prega ao capitão não o Sermão da Montanha, mas o Sermão da Estepe:

− Vocês não têm permissão para atirar apenas em legítima defesa? Por que então pretendem alvejar os cães? Acaso eles lhes fizeram algum mal? Os cadáveres não podem mais comer, mas os cachorros ainda sentem fome – os cães que vocês querem matar e os cachorros humanos. Os cães não sabem que estão comendo seres humanos. Mas os tutsis sabem que serão devorados.

O clérigo tenta romper a inércia da ONU de todas as formas. Jornalistas já não se interessam pelo destino dos tutsis. “Afinal, o que há de novo em uma guerra civil africana?” Mas as câmeras se põem a postos quando o padre revela que há europeus na ETO. Enquanto Ruanda sangra aos olhos indiferentes do Ocidente, a Bósnia ariana recebe as forças de intervenção das Nações Unidas. Uma jornalista inglesa apresenta o critério de seleção das notícias mundo afora:

− Sempre que eu via uma mulher bósnia, uma mulher branca, eu sentia que ela poderia ser minha mãe. Aqui em Ruanda são só africanos.

Mas a repórter ainda tem tempo para se armar com o microfone e transferir o ônus do genocídio para o capitão inerte da ONU:

REPÓRTER: O senhor qualificaria as ações da maioria étnica hutu como um genocídio?

CAPITÃO (belga) DA ONU: (Hesita e gagueja antes de falar): Não sei exatamente, seria preciso quantificar as mortes. De qualquer forma, estamos aqui para observar a paz.

A paz entre os cadáveres – e o cães.

REPÓRTER: Mas o senhor sabe que, se estivermos diante de um genocídio, a ONU tem a obrigação de intervir... (As reticências tentam apresentar ao leitor e potencial espectador de Tiros em Ruanda a interrupção abrupta da entrevista por conta do punho do capitão contra a câmera.)

Mas ainda há tempo para agir: enfim o capitão recebe ordens de seu alto comando. “É hora de partir, padre”. Se o militar se lembrasse das aulas de catecismo, teria uma citação evangélica na ponta da língua para fazer com que Jesus Cristo caminhasse não sobre as águas, mas sobre os corpos de Ruanda:

− É hora de partir, padre. Deixemos que os mortos enterrem os mortos.

Mas ainda há tempo para suplicar: um representante tutsi se dirige ao capitão da ONU com uma carta. “Um último pedido, capitão”.

− Nós, refugiados tutsis da Escola Técnica Oficial, suplicamos aos soldados das Nações Unidas que nos fuzilem. Será muito mais rápido e indolor do que morrer sob os facões hutus. Por favor, matem primeiro nossas crianças, poupem-nas do sofrimento!

A câmera dá um close no rosto do capitão belga.

Os tutsis revisitam a descoberta dos prisioneiros de Auschwitz: em campos de concentração e de refugiados, a morte deixa de ser uma temeridade. A morte redime.

A câmera continua a dar um close na máscara do capitão da ONU.

O último pedido dos condenados ruandeses não poderá ser realizado. Afinal, as Nações Unidas não empregam assassinos. Monitorar a paz implica não fazer a guerra. Monitorar a paz implica terceirizar a guerra. O capitão belga não fará as pazes com o passado imperialista de sua nação. Não haverá tiros de misericórdia em Ruanda.


*Flávio Ricardo Vassoler é mestre e doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP e escritor. Seu primeiro livro, O Evangelho segundo Talião (Editora nVersos), será lançado no dia 20 de abril, às 18h, na livraria Martins Fontes – Avenida Paulista, 509, ao lado da estação Brigadeiro do metrô. Link com mais informações: http://subsolodasmemorias.blogspot.com.br/2013/03/lancamento-do-livro-o-evangelho-segundo.html. Periodicamente, atualiza o Subsolo das Memórias, www.subsolodasmemorias.blogspot.com, página em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo.

Dedico este texto à minha querida amiga Vânya Tsutsui, que neste momento trabalha em Ruanda para que tutsis e hutus convivam pacificamente apesar da Lei de Talião que o colonizador europeu lhes legou. 

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