Vida e morte Pastrana
Quantas mulheres escravizadas sexualmente são passadas de mão em mão, de dono para dono e expostas em vitrines? E os índios, com terras a demarcar e jogados daqui pra lá como se pertencessem à outra espécie?
Assim que os tambores silenciaram, após o carnaval de 2013, foi finalmente enterrado em Sinaloa, México, o corpo de Julia Pastrana, morta em 1860. Julia fez sucesso numa carreira bastante infame: peluda feito um macaco, foi exibida em circos de horrores por toda a sua vida. Se preparem, porque é uma saga de tirar o fôlego.
Julia trabalhava como serviçal do governador de Sinaloa quando um tal senhor Rates resolveu levá-la a Nova Iorque para mostrá-la a amigos cientistas e jornalistas. Acredita-se hoje que Julia sofresse de duas doenças distintas: hipertricose lanuginosa (que lhe conferia abundância de pelos no corpo e no rosto) e de hiperplasia gengival (responsável por suas feições simiescas).
Sob a tutela de Rates, Julia se apresentava em shows, onde expunha sua aparência monstruosa, mas também demonstrava sua inteligência, delicadeza e voz belíssima. Não demorou muito para que outro senhor se interessasse pelo “espécime” e comprasse o passe de Julia: J. W. Beach passou a mostrá-la como um híbrido de mulher e orangotango, com o aval de um doutor Brainerd, que a reputou pertencente a uma espécie distinta.
Após várias viagens pelos Estados Unidos, Pastrana caiu nas mãos de Theodore Lent, que a levou para uma turnê na Europa, com enorme sucesso. O público se impressionava com a cultura e boas maneiras de Pastrana, além de sua voz de cantora. Julia foi até escalada para um trabalho “sério” em teatro, em Leipzig, onde interpretava uma mulher de voz linda, coberta sob um véu, que se revelava no final da peça. O próprio Charles Darwin se encantou com Pastrana, agradecendo-a no prefácio de “Variação de Animais e Plantas Domesticados”: “Uma mulher admirável, com uma barba grossa e masculina.”
Aproveitando o sucesso de público e mídia, Lent lançou uma campanha para arranjar um marido para Julia. Apareceram muitos pretendentes, mas ela rejeitou todos, dizendo (sob orientação de Lent) que queria um marido rico. No final, temendo perder o controle sobre sua tutelada, Lent casou-se com Pastrana. Meses depois, ela engravidou e deu à luz a um bebê peludo. O bebê viveu apenas 35 horas e Pastrana, mais cinco dias.
Após sua morte, Lent vendeu os corpos da esposa e filho ao professor Sukolov, da Universidade de Moscou, que os mumificou, deixando-os à mostra no Museu de Anatomia. Ao saber que o russo lucrava com os corpos embalsamados, Lent reclamou-os de volta e conseguiu recuperá-los. Aí a história se repete: Lent circulou com os corpos embalsamados, o interesse minguou e ele os alugou para um circo de horrores da Noruega. Em 1943, durante a ocupação nazista, o circo foi poupado pelos nazistas, e o corpo de Pastrana circulou nas cidades ocupadas pelo Reich. Em 1953, o dono do circo em Oslo trancou todas as suas maravilhas num galpão, e lá ficou o corpo de Julia, até 2013.
Em 2012, a artista mexicana Laura Barbata, cuja irmã escreveu uma peça de teatro sobre Pastrana, iniciou uma campanha para recuperar o corpo de Julia e enterrá-lo com todas as honras em sua cidade natal. Finalmente, Pastrana foi sepultada (do filho, não se sabe o paradeiro). Sua vida de “animal especial”, exibida em vida e após a morte como um monstro-maravilha, só escancara preconceitos e iniquidades atuais. Você acha que não existem Julias Pastranas hoje em dia? Quantas mulheres escravizadas sexualmente são passadas de mão em mão, de dono para dono e expostas em vitrines? Quantos trabalhadores escravizados? E os índios, com terras a demarcar e jogados daqui pra lá como se pertencessem à outra espécie? Pensem. Há muitas Pastranas por aí.
Fonte: http://revistaforum.com.br/
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