Zizek: Há
mais do que fúria na Bósnia
Ao unirem
três etnias da ex-Iugoslávia, protestos retomam projeto emancipatória e
revelam: é possível enfrentar onda de fundamentalismo que atravessa o planeta
Semana
passada, cidades queimavam,[1] na Bósnia-Herzegovina. Tudo começou em
Tuzla, cidade de maioria muçulmana. Os protestos então se espalharam até a
capital, Sarajevo, e Zenica, mas também até Mostar, onde vive largo segmento da
população croata, e Banja Luka, capital da parte sérvia da Bósnia. Milhares de
manifestantes furiosos ocuparam e incendiaram prédios públicos. Embora a
situação já tenha se acalmado, persiste no ar uma atmosfera de alta tensão.
Os eventos
fizeram surgir teorias da conspiração (por exemplo, que o governo sérvio teria
organizado os protestos para derrubar o governo bósnio), mas é preciso
ignorá-las firmemente, porque, haja o que houver por trás das manifestações, o
desespero dos manifestantes é autêntico. Fica-se tentado a parafrasear aqui a
famosa frase de Mao Tse Tung: há caos na Bósnia, a situação é excelente![2]
Por quê?
Porque as exigências dos manifestantes são as mais simples que há – emprego,
uma chance de vida decente e o fim da corrupção – mas mobilizaram pessoas na
Bósnia, país que, nas últimas décadas, tornou-se sinônimo de feroz limpeza
étnica.
Antes
disso, os únicos protestos de massa na Bósnia e em outros estados
pós-Iugoslávia tinham a ver com paixões étnicas ou religiosas. Em meados de
2013, dois protestos públicos foram organizados na Croácia, país mergulhado em
profunda crise econômica, com desemprego alto e profundo sentimento de
desespero: os sindicatos uniram-se para organizar uma manifestação em apoio aos
direitos dos trabalhadores, ao mesmo tempo em que nacionalistas de
direita[3] iniciavam um movimento de protesto contra o uso do alfabeto cirílico
em prédios públicos em cidades de minoria sérvia. A primeira iniciativa levou
umas duas centenas de pessoas para uma praça em Zagreb; a segunda mobilizou
centenas de milhares, como, antes, acontecera num movimento fundamentalista
contra o casamento de homossexuais.[4]
A Croácia
está longe de ser exceção: dos Bálcãs à Escandinávia, dos EUA a Israel, da
África Central à Índia, está começando uma nova Idade das Trevas, com paixões
étnicas e religiosas explodindo, e com os valores das Luzes retrocedendo. Essas
paixões sempre arderam por trás de tudo, mas a novidade é que, hoje, aparecem
desavergonhadamente expostas.
Assim
sendo, o que fazer? Liberais dominantes nos dizem que, quando os valores
básicos da democracia são ameaçados por fundamentalistas étnicos ou religiosos,
temos todos de nos unir numa agenda liberal-democrática de tolerância cultural,
salvar o que possa ser salvo e deixar de lado todos os sonhos de transformação
social mais radical. Nossa tarefa, dizem eles, é clara: temos de escolher entre
a liberdade liberal e a opressão fundamentalista.
Porém,
quando nos fazem, em tom triunfalista, perguntas (exclusivamente retóricas!)
como “Você deseja que as mulheres sejam excluídas da vida pública?” ou “Você
deseja que todos os que critiquem a religião sejam condenados à morte?”, o que
mais nos deve fazer desconfiar da pergunta é a obviedade da resposta.
O problema
aí é que esse universalismo liberal simplório já perdeu a inocência, há muito
tempo. O conflito entre a permissividade liberal e o fundamentalismo é, na
verdade, um falso conflito – um círculo vicioso e viciado no qual os dois polos
pressupõem-se e geram-se mutuamente, um o outro.
O que Max
Horkheimer[5] disse sobre o fascismo e o capitalismo lá nos anos 1930s
(que os que não querem falar criticamente sobre o capitalismo devem também
calar sobre o fascismo) pode aplicar-se ao fundamentalismo de hoje: os que não
querem falar criticamente sobre a democracia liberal devem também calar a boca
sobre o fundamentalismo religioso.
Reagindo
contra caracterizar-se o marxismo como “o Islã do século 20”, Jean-Pierre
Taguieff escreveu que o Islã está em vias de mostrar-se como o “marxismo do
século 20” para prolongar o violento anticapitalismo do comunismo, depois do
declínio do comunismo.
Mas as recentes
vicissitudes do fundamentalismo muçulmano confirmam, pode-se dizer, o
antigo insight de Walter Benjamin, de que “cada ressurgimento do
fascismo dá testemunho de uma revolução fracassada”. O crescimento do fascismo
é, em outras palavras, o fracasso da esquerda e, simultaneamente, prova de que
subsiste um potencial revolucionário, uma insatisfação, que a esquerda não é
capaz de mobilizar. E não se pode dizer exatamente a mesma coisa do hoje
chamado “islamo-fascismo”? O surgimento do islamismo radical não é perfeito
correlato do desaparecimento da esquerda secular nos países muçulmanos?
Quando o
Afeganistão é apresentado como país fundamentalista islamista “típico”, quem
ainda lembra que, há 40 anos, foi o país de mais forte tradição secular,
incluindo um poderoso Partido Comunista que chegou ao poder no Afeganistão,
independente da União Soviética?
Esse é o
contexto no qual se tem de compreender os recentes eventos na Bósnia. Numa das
fotos dos protestos, veem-se os manifestantes exibindo três bandeiras lado a
lado: da Bósnia, da Sérvia e da Croácia, mostrando o desejo de ignorar todas as
diferenças étnicas. Para resumir, temos aqui uma rebelião contra elites
nacionalistas: o povo da Bósnia afinal compreendeu quem é o seu verdadeiro
inimigo: não outros grupos étnicos, mas os seus próprios “representantes”
políticos que fingem protegê-los contra os demais. É como se o velho e tantas
vezes mal usado lema titoísta[6] da “fraternidade e unidade” das nações
iugoslavas ganhasse nova atualidade.
Um dos
alvos dos manifestantes era o governo da União Europeia que supervisiona o
estado bósnio, forçando a paz entre as três nações e oferecendo considerável
ajuda financeira para ajudar no funcionamento do Estado. Pode parecer estranho,
porque os objetivos dos manifestantes são, nominalmente, os mesmos objetivos de
Bruxelas: prosperidade e o fim das tensões étnicas e da corrupção.
Contudo, o
modo como a União Europeia realmente governa a Bósnia cria divisões: a União
Europeia só vê, como suas parceiras privilegiadas, as elites nacionalistas,
entre as quais faz uma mediação.
O que as
explosões na Bósnia confirmam é que ninguém jamais conseguirá superar paixões
étnicas impondo a elas uma agenda liberal: o que uniu os manifestantes foi uma
mesma radical exigência de justiça.
O passo
seguinte e mais difícil será organizar os protestos num novo movimento social
que ignore as divisões étnicas; e organizar novos protestos – já imaginaram uma
cena, com bósnios e sérvios furiosos, reunidos num comício conjunto, em
Sarajevo?
Ainda que
os protestos percam gradualmente a força, ainda assim permanecerão como uma
fagulha de esperança, como soldados inimigos que se abraçavam nas trincheiras,
na primeira guerra mundial. Eventos autenticamente emancipatórios sempre
incluem ignorar identidades.
E vale o
mesmo para a recente visita de duas representantes do movimento Pussy Riot a
New York: num grande show de gala foram apresentadas por Madonna, na
presença de Bob Geldof, Richard Gere, etc., toda a gangue dos direitos humanos
de sempre. Deveriam ali, isso sim, manifestar solidariedade a Snowden, para
mostrar que o Pussy Riot e Snowden são parte do mesmo movimento global. Sem
esses gestos que aproximem o que, na nossa experiência ideológica diária,
parecem ser coisas incompatíveis (muçulmanos, sérvios e croatas na Bósnia;
secularistas turcos e muçulmanos anticapitalistas na Turquia, etc.), os
movimentos de protesto sempre serão manipulados por alguma superpotência, em
sua luta contra outra.
Fonte: http://outraspalavras.net/