sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

O lobo só é mau porque as ovelhas são mansas – por Fagner Torres


O lobo só é mau porque as ovelhas são mansas

Enquanto parte da mídia massifica a ideia de criminalização sistemática dos movimentos sociais e seus aliados, o cenário para o povo que se desloca pela cidade continua um caos. Por Fagner Torres
Parece piada que a passagem de ônibus tenha ido a R$3 no último dia 8, e que pouco mais de uma semana depois a população do Rio de Janeiro tenha enfrentado, ao mesmo tempo, engarrafamentos em todas as principais vias do Centro, bem como a sobrecarga dos sistemas de trens e Metrô, que normalmente já funcionam precariamente. E agora falam em um novo aumento no preço desses meios, e também das barcas, sendo que esta deve ir para surreais R$4,80. Tudo isso, um mês após uma pane que paralisou todo o sistema da Supervia na região metropolitana, prejudicando a vida de milhares de trabalhadores, e de uma tragédia com cinco mortos, após caminhão derrubar uma passarela na Linha Amarela.

Para quem acha que tais fatos foram acidentes: não foram! A reincidência comprova que ambos estão relacionados à ausência de fiscalização de quem deveria gerir o sistema, aliada ao jogo de interesses existente entre contratantes e contratadas, nesses casos, as autoridades no âmbito municipal e estadual, e as concessionárias, como a Lamsa, entre outras.
Alguém já se esqueceu das gargalhadas do secretário estadual de Transportes Júlio Lopes, enquanto a população padecia de respostas da Supervia? E das declarações do vice-governador Luís Fernando Pezão, que demonstra estar “muito satisfeito” com a empresa que detém a concessão da linha férrea até 2048? Ou das acusações de que o caminhão que circulava em horário proibido na Linha Amarela prestava serviço para a Prefeitura de Eduardo Paes?

Enquanto parte da mídia, a serviço do estado, massifica a ideia de criminalização sistemática dos movimentos sociais e seus aliados, com base na fatalidade (ou seria armação?) ocorrida na Central do Brasil, que resultou na morte de Santiago Andrade, cinegrafista da TV Bandeirantes, o cenário para quem se desloca pela cidade, o povo, continua um caos.

Para além da incompetência e da má-fé de quem deveria gerir os transportes no Rio, a pergunta que fica é o que esse pessoal deseja? Testar a resistência da população ou simplesmente debochar da nossa cara, nos passando recibo de idiotas?

Devemos nos manter acordados. Nas ruas, combatendo os descalabros que nos maltratam e dificultam a nossa vida cotidiana. Afinal de contas, o lobo só é mau porque as ovelhas são mansas!

Nota sobre o autor
Fagner Torres é jornalista

Fonte: http://passapalavra.info 

Golpe de 1964: o fracasso de uma estratégia - por Emir Sader


Golpe de 1964: o fracasso de uma estratégia
O golpe de 1964 foi um momento marcante na historia do Brasil, mas também na historia da esquerda. O período fechou-se, com uma brutal derrota, marcado pela hegemonia da linha nacionalista, protagonizada pelo PCB em aliança com setores, considerados por ele “progressistas”, da burguesia nacional. Uma aliança subordinada, sob a direção de setores a burguesia industrial, que teriam contradições com o imperialismo e com o latifúndio.

Foi o fim da hegemonia do PCB na esquerda brasileira. O partido perdia, com o golpe, o espaço legal, mas sobretudo as bases sindicais, seu principal apoio de massas. Desatou-se um amplo debate interno, em que a direção do partido teve que arcar com o ônus de não haver previsto, menos ainda preparado os militantes e o povo para o golpe e a resistência.

De fato, o partido considerava que as condições estavam dadas para passar “do governo ao poder”, como declarou o Secretario Geral do partido, poucos dias antes do golpe, em reunião em Recife. Havia um risco de golpe, mas se confiava na força dos militares “patriotas” para resistir e derrotar as forças reacionárias.

Era o desenlace trágico das ilusões sobre uma burguesia progressista, com contradições com o imperialismo e com o latifúndio, disposta a comandar o processo de instalação plena do capitalismo no país, dirigindo o proletariado nessa luta, condição para colocar as bases históricas para a luta pelo socialismo. Era um transplante mecânico das condições que teriam ocorrido na Europa para toda a periferia do capitalismo.

Essa visão foi amplamente predominante na esquerda até o momento do golpe. O próprio PCB teve muita dificuldade para entender o nacionalismo no Brasil. Houve desencontros com o getulismo desde a própria revolução de 1930, que se projetou sobre o movimento de 1935. Foi somente depois que o PCB estabeleceu sua aliança estratégica com o getulismo.

Ainda assim, o PCB teve uma recaída feia quando aderiu ao denuncismo udenista e golpista contra o Getulio, que levou ao suicídio deste. A primeira reação do povão do Rio, ao sair à ruas, foi destruir a sede do jornal do PCB.

Mas foi o golpe de 1964 que fechou o período áureo do PCB. Dali para frente, pagando o preço das ilusões e do fracasso da sua estratégia equivocada, foi perdendo força e prestígio, a ponto de ser afetado pela vergonhosa operação do grupo do Roberto Freire de mudar o nome do partido e, como consequência óbvia, levá-lo para o bloco da direita no Brasil.

Desde então o nome PCB foi resgatado pelos que resistiram a essa operação, mas sem maior representatividade e peso politico, defendendo posições de ultra esquerda, sem tirar lições dos erros que cometem em relação ao Getulio, para reproduzi-los em relação ao Lula.
***

Emir Sader nasceu em São Paulo, em 1943. Formado em Filosofia pela Universidade de São Paulo, é cientista político e professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP). 

Fonte: http://blogdaboitempo.com.br/

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

A crueldade dos zoológicos: Leão Juba morre em santuário ecológico, após vida de maus-tratos – por ANDA


A crueldade dos zoológicos: Leão Juba morre em santuário ecológico, após vida de maus-tratos
(Foto: Eduardo Carvalho/G1)

O leão Juba, que ficou conhecido em todo país por ter sofrido maus-tratos no zoológico onde vivia em Fortaleza (CE), morreu na manhã da última terça-feira (25), na ONG Mata Ciliar, em Jundiaí. Ele estava no santuário desde junho de 2012. As informações são do G1 e Repórter Record.

O animal sofria de artrose devido à idade avançada e aos danos que sofreu durante a maior parte de sua vida. O leão estava muito magro e não conseguia se levantar. Ele tinha dificuldades para se alimentar e beber água normalmente, em consequência das dores nos ossos e articulações.

No sábado (22), Juba passou por um procedimento para aplicação de remédios que aliviariam as dores, realizado por uma equipe de 15 pessoas entre veterinários e biólogos. De acordo com os funcionários da Mata Ciliar, o animal, que tinha 20 anos, não conseguiu se recuperar e morreu. O corpo foi levado para uma universidade, em São Paulo.

Juba passou por muitas situações de maus-tratos. Quando mais jovem ele morava em um zoológico particular e de situação irregular no Rio de Janeiro, desativado pelo Ibama em 2001. Depois disso, o leão foi transferido para outro zoológico, desta vez em Fortaleza, e novamente sofreu maus-tratos até o dia em que o local foi fechado. Em 2006, Juba foi para o Centro de Triagem de Animais Silvestres (CETAS) do Ibama no Ceará, mas era um local provisório.
Juba em lugar provisório do Ibama, antes de ser transferido para Mata Ciliar

A vida de torturas do leão o deixou com uma aparência “fora dos padrões” aceitos pelos zoológicos. Ao saber de sua história, a Associação Mata Ciliar se ofereceu para cuidar do animal de maneira definitiva. Em junho de 2012, o felino foi transferido para o santuário, onde ele passou o resto de sua sofrida vida com dignidade.

Juba vivia em um recinto construído especialmente pela Mata Ciliar. O cercado custou R$ 30 mil e o valor foi obtido com campanhas de arrecadação em todo o país.

Fonte: http://www.anda.jor.br/

A história do ódio no Brasil - Por Fred Di Giacomo, do Gluck Project


A história do ódio no Brasil

Se tivesse nascido no Brasil, Gandhi não seria um homem sábio, mas um “bundão” ou um “otário”.
As decapitações que chocam nos presídios eram moda há séculos e foram aplicadas em praça pública para servir de exemplo nos casos de Tiradentes e Zumbi (Reprodução/Gluck Project)

“Achamos que somos um bando de gente pacífica cercados por pessoas violentas”. A frase que bem define o brasileiro e o ódio no qual estamos imersos é do historiador Leandro Karnal. A ideia de que nós, nossas famílias ou nossa cidade são um poço de civilidade em meio a um país bárbaro é comum no Brasil. O “mito do homem cordial”, costumeiramente mal interpretado, acabou virando o mito do “cidadão de bem amável e simpático”. Pena que isso seja uma mentira. “O homem cordial não pressupõe bondade, mas somente o predomínio dos comportamentos de aparência afetiva”, explica o sociólogo Antônio Cândido. O brasileiro se obriga a ser simpático com os colegas de trabalho, a receber bem a visita indesejada e a oferecer o pedaço do chocolate para o estranho no ônibus. Depois fala mal de todos pelas costas, muito educadamente.

Olhemos o dicionário: cordial significa referente ou próprio do coração. Ou seja, significa ser mais sentimental e menos racional. Mas o ódio também é um sentimento, assim como o amor.  (Aliás os neurocientistas têm descoberto que ambos sentimentos ativam as mesmas partes do cérebro.) Nós odiamos e amamos com a mesma facilidade. Dizemos que “gostaríamos de morar num país civilizado como a Alemanha ou os Estados Unidos, mas que aqui no Brasil não dá para ser sério.” Queremos resolver tudo num passe de mágica. Se o político é corrupto devemos tirar ele do poder à força, mas se vamos para rua e “fazemos balbúrdia” devemos ser espancados e se somos espancados indevidamente, o policial deve ser morto e assim seguimos nossa espiral de ódio e de comportamentos irracionais, pedindo que “cortem a cabeça dele, cortem a cabeça dele”, como a rainha louca de Alice no País das Maravilhas. Ninguém para 5 segundos para pensar no que fala ou no que comenta na internet. Grita-se muito alto e depois volta-se para a sala para comer o jantar. Pede-se para matar o menor infrator e depois gargalha-se com o humorístico da televisão. Não gostamos de refletir, não gostamos de lembrar em quem votamos na última eleição e não gostamos de procurar a saída que vai demorar mais tempo, mas será mais eficiente. Com escreveu  Sérgio Buarque de Holanda, em “Raízes do Brasil“,  o criador do termo “homem cordial” : “No Brasil, pode dizer-se que só excepcionalmente tivemos um sistema administrativo e um corpo de funcionários puramente dedica­dos a interesses objetivos e fundados nesses interesses. Ao contrário, é possível acompanhar, ao longo de nossa história, o predomínio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente pró­prio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação im­pessoal” Ou seja, desde o começo do Brasil todo mundo tem pensando apenas no próprio umbigo e leva as coisas públicas como coisa familiar. Somos uma grande família, onde todos se amam. Ou não?

O já citado Leandro Karnal diz que os livros de história brasileiros nunca usam o termo guerra civil em suas páginas. Preferimos dizer que guerras que duraram 10 anos (como a Farroupilha) foram revoltas. Foram “insurreições”. O termo “guerra civil” nos parece muito “exagerado”, muito “violento” para um povo tão “pacífico”. A verdade é que nunca fomos pacíficos. A história do Brasil é marcada sempre por violência, torturas e conflitos. As decapitações que chocam nos presídios eram moda há séculos e foram aplicadas em praça pública para servir de exemplo nos casos de Tiradentes e Zumbi. As cabeças dos bandidos de Lampião ficaram expostas em museu por anos. Por aqui, achamos que todos os problemas podem ser resolvidos com uma piada ou com uma pedrada. Se o papo informal não funciona devemos “matar” o outro. Duvida? Basta lembrar que por aqui a república foi proclamada por um golpe militar. E que golpes e revoluções “parecem ser a única solução possível para consertar esse país”. A força é a única opção para fazer o outro entender que sua ideia é melhor que a dele? O debate saudável e a democracia parecem ideias muito novas e frágeis para nosso país.

Em 30 anos, tivemos um crescimento de cerca de 502% na taxa de homicídios no Brasil. Só em 2012 os homicídios cresceram 8%. A maior parte dos comentários raivosos que se lê e se ouve prega que para resolver esse problema devemos empregar mais violência. Se você não concorda “deve adotar um bandido”. Não existe a possibilidade de ser contra o bandido e contra a violência ao mesmo tempo.  Na minha opinião, primeiro devemos entender a violência e depois vomitar quais seriam suas soluções. Por exemplo, você sabia que ocorrem mais estupros do que homicídios no Brasil? E que existem mais mortes  causadas pelo trânsito do Brasil do que por armas de fogo? Sim, nosso trânsito mata mais que um país em guerra. Isso não costuma gerar protestos revoltados na internet. Mas tampouco alivia as mortes por arma de fogo que também tem crescido ano a ano e se equiparam, entre 2004 e 2007, ao número de mortes em TODOS conflitos armados dos últimos anos. E quem está morrendo? 93% dos mortos por armas de fogo no Brasil são homens e 67% são jovens. Aliás, morte por arma de fogo é a principal causa de mortalidade entre os jovens brasileiros. Quanto à questão racial, morrem 133% mais negros do que brancos no Brasil. E mais: o número de brancos mortos entre 2002 e 2010 diminuiu 25%, ao contrário do número de negros que cresceu 35%. É importante entender, no entanto, que essas mortes não são causadas apenas por bandidos em ações cotidianas. Um dado expressivo: no estado de São Paulo ocorreram 344 mortes por latrocínio (roubo seguido de morte) no ano de 2012. No mesmo ano, foram mortos 546 pessoas em confronto com a PM. Esses números são altos, mas temos índices ainda mais altos de mortes por motivos fúteis (brigas de trânsito, conflitos amorosos, desentendimentos entre vizinhos, violências domésticas, brigas de rua,etc). Entre 2011 e 2012, 80% dos homicídios do Estado de São Paulo teriam sido causados por esses motivos que não envolvem ação criminosa. Mortes que poderiam ter sido evitadas com menos ódio. É importante lembrar que vivemos numa sociedade em que “quem não reage, rasteja”, mas geralmente a reação deve ser violenta. Se “mexeram com sua mina” você deve encher o cara de porrada, se xingaram seu filho na escola “ele deve aprender a se defender”, se falaram alto com você na briga de trânsito, você deve colocar “o babaca no seu lugar”. Quem não age violentamente é fraco, frouxo, otário. Legal é  ser ou Zé Pequeno ou Capitão Nascimento.  Nossos heróis são viris e “esculacham”

Se tivesse nascido no Brasil, Gandhi não seria um homem sábio, mas um “bundão” ou um “otário”.
O discurso de ódio invade todos os lares e todos os segmentos. Agora que o gigante acordou e o Brasil resolveu deixar de ser “alienado” todo mundo odeia tudo. O colunista da Veja odeia o âncora da Record que odeia o policial que odeia o manifestante que odeia o político que odeia o pastor que odeia o “marxista” que odeia o senhor “de bem” que fica em casa odiando o mundo inteiro em seus comentários nos portais da internet. Para onde um debate rasteiro como esse vai nos levar? Gritamos e gritamos alto, mas gritamos por quê?

Política não é torcida de futebol, não adianta você torcer pela derrota do adversário para ficar feliz no domingo. A cada escândalo de corrupção, a cada pedreiro torturado, a cada cinegrafista assassinado, a cada dentista queimada, a cada homossexual espancado; todos perdemos. Perdemos a chance de conseguir dialogar com o outro e ganhamos mais um motivo para odiar quem defende o que não concordamos.
O discurso de ódio invade todos os lares e todos os segmentos (Reprodução/Gluck Project)

Eu também me arrependo muitas vezes de entrar no calor das discussões de ódio no Brasil; seja no Facebook, seja numa mesa de bar. Às vezes me pergunto se eu deveria mesmo me pronunciar publicamente sobre coisas que não conheço profundamente, me pergunto por que parece tão urgente exprimir minha opinião. Será essa a versão virtual do “quem não revida não é macho”? Se eu tivesse que escolher apenas um lado para tentar mudar o mundo, escolheria o lado da não-violência. Precisamos parar para respirar e pensar o que queremos e como queremos. Dialogar. Entender as vontades do outro. O Brasil vive um momento de efervescência, vamos usar essa energia para melhorar as coisas ou ficar nos matando com rojões, balas e bombas? Ou ficar prendendo trombadinhas no poste, torturando pedreiros e chacinando pessoas na periferia? Ou ficar pedindo bala na cabeça de políticos? Ficar desejando um novo câncer para o Reinaldo Azevedo ou para o Lula? Exigir a volta da ditadura? Ameaçar de morte quem faz uma piada que não gostamos?

Se a gente escutasse o que temos gritado, escrito e falado, perceberíamos como temos descido em direção às trevas interiores dos brasileiros às quais Nélson Rodrigues avisava que era melhor “não provocá-las. Ninguém sabe o que existe lá dentro.

Será que não precisamos de mais inteligência e informação e menos ódio? Quando vamos sair dessa infantilidade de “papai bate nele porque ele é mau” e vamos começar a agir como adultos? Quando vamos começar a assumir que, sim, somos um povo violento e que estamos cansados da violência? Que queremos sofrer menos violência e provocar menos violência? Somos um povo tão religioso e cristão, mas que ignora intencionalmente diversos ensinamentos de Jesus Cristo. Não amamos ao nosso inimigo, não damos a outra face, não deixamos de apedrejar os pecadores. Esquecemos que a ira é um dos sete pecados capitais. Gostamos de ficar presos na fantasia de que vivemos numa ilha de gente de bem cercada de violência e barbárie e que a única solução para nossos problemas é exterminar todos os outros que nos cercam e nos amedrontam.

Mas quando tudo for só pó e solidão, quem iremos culpar pelo ódio que ainda carregaremos dentro de nós.

Fonte: http://revistaforum.com.br/

Como reconhecer um coxinha? Pelos seus discursos inconfundíveis. - por Latuff

Fonte: http://latuffcartoons.wordpress.com/

O passado maligno que assombra o presente da Ucrânia - por Latuff


Manifestantes derrubaram monumento erguido para soldados que lutaram contra nazismo!

Fonte: http://latuffcartoons.wordpress.com/

Brasil, Estados Unidos e o hemisfério ocidental (2) – por José Luís Fiori


Brasil, Estados Unidos e o hemisfério ocidental (2)

Para Kissinger, o continente sul-americano segue sendo, no novo século, uma zona de influência onde os EUA não podem admitir nenhum tipo de contestação.

 “A new form of nationalism may emerge, seeking national or regional identity by confronting the United States. In its deepest sense, the challenge of texto_detalhe Hemisphere policy for the United States is whether it can help bring about the world envisioned by Free Trade Area of the Americas, or whether the texto_detalhe Hemisphere, for the first time in its history, will break up into competing blocs; whether democracy and free markets will remain the dominant institutions or whether there is a gradual relapse into populist authoritarianism.” 
    
H. Kissinger, 2001, Does America Need a Foreign Policy,  Simon&Schuster, New York, p: 84

Em grandes linhas, foi a visão estratégica de Nicholas Spykman [1], formulada na década de 1940, que orientou a política externa dos EUA, para a América do Sul - democrata e republicana -  durante toda a segunda metade do século XX. Nesse período, só Henry Kissinger teve -  dentro dos EUA -  uma visão geopolítica do mundo tão ampla e inovadora, mas apesar disso, ele não mudou uma vírgula, com relação à visão hemisférica de Spykman. Com a diferença, que Kissinger foi também um executivo,  e ocupou cargos de importância crescente, dentro das administrações republicanas, a partir do primeiro governo de Dwight Eisenhower, em 1953,  até o final das administrações de Richard Nixon e  Gerald Ford, de quem foi Conselheiro de Segurança, e Secretario de Estado, respectivamente.

Nesse tempo, participou de conjunturas e decisões  internacionais que o transformaram numa das figuras mais importantes da política externa norte-americana,  da segunda metade do século XX.  Sobretudo durante as administrações de Nixon e Ford, quando deu uma contribuição decisiva para a  formulação da nova estratégia dos EUA, de resposta à crise econômica mundial dos anos 70,  e à derrota americana no Vietnã, em 1973.  Ele  participou diretamente das negociações de paz, no Vietnã, que levaram à assinatura dos Acordos de Paris, em 1973; e das negociações secretas com Chou en Lai e Mão Tse Tung , em 1971 e 1972, que levaram à reaproximação dos Estados Unidos com a China, e a reconfiguração completa da geopolítica mundial, antes e depois do fim da Guerra Fria.

Mas ao mesmo tempo, Kissinger tomou várias decisões “sangrentas”, que também foram cruciais, como foi o caso da ordem de bombardeio aéreo do Camboja e do Laos, sem a autorização do Congresso Americano, em 1969;  do apoio à guerra do Paquistão com a Índia, no território atual de Bangladeshi, em 1971; do apoio e financiamento ilegal da invasão do Chipre, pela Turquia, em 1974;  do apoio à invasão sul-africana de Angola, em 1975; e finalmente, também em 1975, do apoio à invasão do Timor Leste, pela Indonésia,  que se transformou numa ocupação de 24 anos, e custou 200 mil vidas.

Sobre a América do Sul, entretanto, Henry Kissinger inovou muito pouco, com relação à visão de Spykman, sobre o potencial de ameaça para os EUA,  dos países do Cone Sul. Já haviam passado três décadas da publicação da sua obra clássica, “America´s Strategy in World Politics”, em 1942,  mas Kissinger seguia considerando inaceitável o surgimento de um poder hemisférico alternativo nessa região, e ainda mais, se fosse da parte de um governo de esquerda, ou comunista. Razão pela qual, apoiou e sustentou os violentos golpes militares [2] que derrubaram os governos eleitos da Bolívia, em 1971, do Uruguai e do Chile, em 1973, e da Argentina, em 1976. E existem evidencias inapeláveis de que também teve injunção na  Operação Condor [3], que integrou os serviços de inteligência das Forças Armadas da Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai, para seqüestrar, torturar e assassinar personalidades políticas de oposição, nesses países.   

Nas décadas de 80 e 90, Henry Kissinger afastou-se da diplomacia direta, mas manteve uma influência pessoal e intelectual muito grande dentro do establishment  americano,  e entre as elites conservadoras sul-americanas. Em  2001 - uma década depois do fim da Guerra Fria e da “ameaça comunista” -  Kissinger publicou um livro [4] que marcou época, discutindo  o futuro geopolítico do mundo, e sintetizando os novos consensos da politica externa dos EUA, para o século XXI.  Chama atenção, de novo, nesse livro, sua posição com relação à América do Sul: para Kissinger, o continente sul-americano  segue sendo -  no novo século -  uma “zona de influência”  onde os EUA não podem admitir nenhum tipo de contestação à sua supremacia estratégica e econômica. Da mesma forma que no século anterior,  só que agora, a grande ameaça à supremacia americana já não vem  do comunismo, vem do “populismo autoritário”,  e do “nacionalismo” dos governos que rejeitam as propostas  norte-americanas de integração econômica,  do tipo ALCA, na década de 90, e do tipo Aliança do Pacífico, nos anos mais recentes.  Ou seja, desse ponto de vista dominante nos EUA, nesse momento, todos os governos da América do Sul representariam uma ameaça aos interesses norte-americanos, que deve ser contida e derrotada, com exceção da  Colômbia,  do Peru, e do Chile.

NOTAS
[1] J.L.Fiori, “Brasil, EUA e o Hemisfério Ocidental ” (1), Valor Econômico, 29/01/2014

[2] Na França, Henry Kissinger foi chamado a depor, pelo juiz Roger Lê Loire, no processo sobre a morte de cidadão franceses na Operação Condor, e sob a ditadura militar chilena. O mesmo ocorrendo na Espanha, com a investigação do juiz Juan Guzman, sobre a morte do jornalista americano Charles Horman, sob a ditadura chilena. E também na Argentina, onde Kissinger foi investigado  pelo juiz Rodolfo Canicoba, por envolvimento na Operação Condor, assim como em Washington , onde existe um processo na corte federal com acusação, contra Kissinger, de haver dado a ordem  para o assassinato do Gal Schneider, Comandante em Chefa das Forças Armadas Chilenas, em 1970.

[3] Vide Chistopher Hitchens, The Trial of Henry Kissinger(2003);  e também a resenha de Kenneth Maxwelll, do livro de Peter Kornbluh,  The Pinochet file: a Desclassified Dossier on Atrocity and Accountability, publicado na Revista Foreign Affairs, de Dezembro de 2003, sobre as relações de Kissinger com o regime de Augusto Pinochet, em particular com o assassinato do diplomata chileno Orlando Letelier, em Washington, 1976.

[4] H. Kissinger, 2001, Does America Need a Foreign Policy,  Simon&Schuster, New York
Fonte: http://www.cartamaior.com.br

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

A borracha de apagar direitos – por Latuff

Fonte: http://latuffcartoons.wordpress.com/

Sobre Sheherazades, Batmans e demônios - Por Carlos Eduardo Rebuá.


Sobre Sheherazades, Batmans e demônios
Nas últimas semanas dois episódios ocorridos no Rio de Janeiro não saem dos noticiários, dos papos de botequim, das redes sociais, dos jornais de 0,70 centavos: o adolescente negro assaltante que foi “justiçado” por jovens de classe média no Flamengo, que apanhou e foi algemado nu por uma tranca de bicicleta junto a um poste; e a morte do cinegrafista da Rede Bandeirantes de televisão por um rojão lançado por dois jovens “Black blocs”, na manifestação contra o reajuste das passagens de ônibus.
 
Trata-se de dois fatos que não guardam semelhança entre si, a não ser pela “odisséica” cobertura midiática, em seu papel costumeiro de juiz, júri e tribunal, conjugados num mesmo corpo institucional. Se em relação ao primeiro episódio vimos distintos setores sociais defenderem o “justiçamento” contra a bandidagem e clamarem pelo exercício da violência por conta do Estado, que nos “desprotege”, em se tratando do segundo caso o que estamos presenciando é a condenação sumária dos jovens envolvidos no ato, antes mesmo de serem apurados os fatos. Cometeram um assassinato e responderão por isso, mas antes mesmo da “fala do especialista” da vídeo-esfera (SEMERARO, 2006, p. 142) analisar as imagens, já estavam sentenciados. Nada de novo no front midiático tupiniquim, que numa primeira mirada, encontrou seus Nardoni e Richthofen da vez e garantiu pauta para os próximos dez dias. Todavia, um segundo olhar sobre o ocorrido mostra que a prisão de Fabio Raposo e Caio Silva de Souza não é apenas mais um julgamento espetacular dos mass media, na acepção debordiana, mas a “revanche” que tanto queria o establishment burguês, “alvejado” pela opinião pública com suas próprias balas de borracha, lançadas à exaustão pela polícia militar em Pinheirinho ou no Junho Rebelde.

O caso do “pelourinho do Flamengo”, onde um negro pobre “pagou” por seu crime ao velho estilo Batman ­(o herói aristocrata que não mata, mas pune os infratores e redime aquela sociedade corrupta e desigual) em Gotham City, teve seu ápice midiático no comentário autoral de Rachel Sheherazade (SBT Brasil, 04/02/2014), apresentadora do SBT Brasil, que destilou o mais raivoso ódio de classe (assim como fez em relação aos rolezinhos, organizados por “arruaceiros”), ao estilo TFP (Tradição, Família e Propriedade), contra o “marginalzinho de ficha mais suja que pau de galinheiro” e em defesa dos cidadãos “de bem”, lançando a campanha “Adote um bandido” para os militantes de direitos humanos e a campanha “Legítima defesa coletiva” para as “vítimas de bem” da indefesa sociedade civil. O vídeo já tem quase um milhão de visualizações do YouTube (entre entusiastas e críticos), mas talvez seu “direito de resposta”, no mesmo SBT Jornal de dois dias depois (06/02), exponha de forma mais crua o conservadorismo atroz de nossa sociedade, quando a jornalista – apresentada por seu colega de programa como uma mulher cristã e mãe – diz que é uma ferrenha crítica da violência, que está ali todo dia “batendo na violência”, defendendo as “pessoas de bem” que estão “abandonadas à própria sorte” e “desesperadas”. Quem ouve as palavras de Sheherazade­ – que em Mil e uma noites sobrevive após ludibriar o sultão por noites seguidas – sem saber do que se trata pode achar que se refere a algum jovem da periferia de uma grande cidade, provavelmente negro, provavelmente sem perspectivas. Só que não! O programa termina dizendo que o que deve prevalecer sempre é a liberdade de expressão. É o cinismo como forma de ideologia na manutenção da lei dos “de cima”. O direito de resposta na verdade é o endosso do agressor, que não apenas reitera o que disse como zomba daqueles que o criticaram.

“O modo mais destacado dessa ‘mentira sob o disfarce da verdade’, nos dias atuais,é o cinismo: com desconcertante franqueza, ‘admite-se tudo’”, mas esse pleno reconhecimento de nossos interesses não nos impede, de maneira alguma, de persegui-los; a fórmula do cinismo já não é o clássico enunciado marxista do ‘eles não sabem, mas é o que estão fazendo’; agora, é ‘eles sabem muito bem o que estão fazendo, mas fazem assim mesmo’.” (ŽIŽEK, 1996, p. 13).

Por sua vez, o episódio da morte do cinegrafista da Bandeirantes representa mais uma cruzada midiática contra setores radicalizados da sociedade civil, que desde junho do ano passado trouxeram para a cena política pautas sociais que, em outros momentos, passavam ao largo dos noticiários televisivos, com destaque para o preço das passagens dos transportes que deveriam ser públicos. A morte de Santiago de Andrade foi a revanche esperada e ensaiada há meses pelo mainstream da mídia brasileira, ávida por “desmascarar” os Black blocs, tratando-os como uma organização homogênea, institucionalizada, porém controlada de fora. Após o rojão ferir fatalmente o funcionário da Band, foi rápida a construção de um consenso que costurava entre si: asuposta associação dos envolvidos com o deputado estadual do PSOL-RJ, Marcelo Freixo, opositor ferrenho do governador Sérgio Cabral, do prefeito Eduardo Paes e da grande mídia; a “ficha suja” de Fabio e Caio, com passagens pela polícia e participação em outras manifestações (pasteurizando de forma magistral todas as pessoas que ousam se manifestar de forma mais incisiva, como por exemplo aquelas que ocupam prédios públicos ou enfrentam o cerco policial); a defesa de que a nação brasileira e os brasileiros são pacíficos e que a violência de alguns é esporádica, injustificável e intolerável, forjando o “mito da não-violência” (CHAUÍ, 2006, p. 125), que apaga a “realidade das divisões sociais e da luta de classes, reduzindo sua emergência à situação de meros momentos enlouquecidos da sociedade” (Ibidem, p. 134).

O nó final dessa costura ideológica é a recuperação da chamada Teoria dos Dois Demônios, adaptada ao contexto atual. Muito conhecida de sociedades latino-americanas que passaram por ditaduras civil-militares no século passado, notadamente a Argentina, tal concepção representa um “malabarismo retórico” (Vladimir Safatle, “Dois demônios”) de quem crê que esquerdae direita cometeram “excessos” e que, por isso, deixar as coisas no passado seria o melhor a ser feito. De um lado, um demônio popular, terrorista de esquerda que despertou outro demônio, militar, terrorista de Estado. Em meio a isso tudo estaria a atemorizada sociedade civil, inocente e ingênua, que assiste impassível ao drama da violência (IRAMAIN, 2009-2010, p. 18).

Num contexto atual, como de praxe, a mídia encena o acontecimento, forjando e manipulando simulacros do real (CHAUÍ, 2006, p. 18), onde o fato cede lugar à sua versão, sintonizada com os interesses dos grupos dominantes do país. Os Dois Demônios retornam com vigor, sob nova roupagem (não deixando coisas no passado), com os manifestantes – que “precipitam as coisas” – e o Estado, agora “democrático”, nos dois polos opostos, e a frágil e não-violenta sociedade civil no meio do tiroteio. Apaga-se dos noticiários a questão da violência como recurso sempre à mão do chamado Estado de Direito – Estado de Exceção para os subalternos e paradigma de governo dominante na política contemporânea (AGAMBEN, 2004, p. 13) –, que salvaguarda a propriedade privada burguesa e mantém a desigualdade como pressuposto

Na atual cena política brasileira Sheherazades, Batmans e Demônios estão à solta, em meio à planejada resposta-revanche dos grandes meios de comunicação à Junho de 2013, colocada na rua no momento oportuno, tendo como alvos personagens reais e lutas reais, que na “mídia-esfera” aparecem como simulacros, mas no mundo concreto são ameaças reais à hegemonia que a mídia representa. 

REFERÊNCIAS
AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.
ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia: Inferno. São Paulo: Editora 34, 2008.
CHAUÍ, Marilena. Simulacro e poder: uma análise da mídia. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2006.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
IRAMAIN, Demetrio. Una historia de las Madres de Plaza de Mayo (suplemento coleccionable). Revista Sueños Compartidos. Fundación Madres de Plaza de Mayo. 2009-2010.
ŽIŽEK, Slavoj. O Espectro da Ideologia. In.:ŽIŽEK, Slavoj. Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
***
Carlos Eduardo Rebuá é Historiador, doutorando em Educação pela UFF e professor da UNIGRANRIO. Dele, leia também, Hereges marxistas: similaridades e permanências, sobre Walter Benjamin e Antonio Gramsci.
Fonte: http://blogdaboitempo.com.br/ 

A pergunta que não quer calar em Santa Maria: quem deu a ordem? - por Latuff

Fonte: http://latuffcartoons.wordpress.com/

Mensalão tucano: run, Azeredo, run! - por Latuff

Fonte: http://latuffcartoons.wordpress.com/

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Quem será enquadrado na lei antiterrorismo que o Congresso quer aprovar? - por Latuff

Fonte: http://latuffcartoons.wordpress.com/

Há mais do que fúria na Bósnia - Por Slavoj Zizek


Zizek: Há mais do que fúria na Bósnia
Ao unirem três etnias da ex-Iugoslávia, protestos retomam projeto emancipatória e revelam: é possível enfrentar onda de fundamentalismo que atravessa o planeta

Semana passada, cidades queimavam,[1] na Bósnia-Herzegovina. Tudo começou em Tuzla, cidade de maioria muçulmana. Os protestos então se espalharam até a capital, Sarajevo, e Zenica, mas também até Mostar, onde vive largo segmento da população croata, e Banja Luka, capital da parte sérvia da Bósnia. Milhares de manifestantes furiosos ocuparam e incendiaram prédios públicos. Embora a situação já tenha se acalmado, persiste no ar uma atmosfera de alta tensão.

Os eventos fizeram surgir teorias da conspiração (por exemplo, que o governo sérvio teria organizado os protestos para derrubar o governo bósnio), mas é preciso ignorá-las firmemente, porque, haja o que houver por trás das manifestações, o desespero dos manifestantes é autêntico. Fica-se tentado a parafrasear aqui a famosa frase de Mao Tse Tung: há caos na Bósnia, a situação é excelente![2]

Por quê? Porque as exigências dos manifestantes são as mais simples que há – emprego, uma chance de vida decente e o fim da corrupção – mas mobilizaram pessoas na Bósnia, país que, nas últimas décadas, tornou-se sinônimo de feroz limpeza étnica.

Antes disso, os únicos protestos de massa na Bósnia e em outros estados pós-Iugoslávia tinham a ver com paixões étnicas ou religiosas. Em meados de 2013, dois protestos públicos foram organizados na Croácia, país mergulhado em profunda crise econômica, com desemprego alto e profundo sentimento de desespero: os sindicatos uniram-se para organizar uma manifestação em apoio aos direitos dos trabalhadores, ao mesmo tempo em que nacionalistas de direita[3] iniciavam um movimento de protesto contra o uso do alfabeto cirílico em prédios públicos em cidades de minoria sérvia. A primeira iniciativa levou umas duas centenas de pessoas para uma praça em Zagreb; a segunda mobilizou centenas de milhares, como, antes, acontecera num movimento fundamentalista contra o casamento de homossexuais.[4]

A Croácia está longe de ser exceção: dos Bálcãs à Escandinávia, dos EUA a Israel, da África Central à Índia, está começando uma nova Idade das Trevas, com paixões étnicas e religiosas explodindo, e com os valores das Luzes retrocedendo. Essas paixões sempre arderam por trás de tudo, mas a novidade é que, hoje, aparecem desavergonhadamente expostas.

Assim sendo, o que fazer? Liberais dominantes nos dizem que, quando os valores básicos da democracia são ameaçados por fundamentalistas étnicos ou religiosos, temos todos de nos unir numa agenda liberal-democrática de tolerância cultural, salvar o que possa ser salvo e deixar de lado todos os sonhos de transformação social mais radical. Nossa tarefa, dizem eles, é clara: temos de escolher entre a liberdade liberal e a opressão fundamentalista.

Porém, quando nos fazem, em tom triunfalista, perguntas (exclusivamente retóricas!) como “Você deseja que as mulheres sejam excluídas da vida pública?” ou “Você deseja que todos os que critiquem a religião sejam condenados à morte?”, o que mais nos deve fazer desconfiar da pergunta é a obviedade da resposta.

O problema aí é que esse universalismo liberal simplório já perdeu a inocência, há muito tempo. O conflito entre a permissividade liberal e o fundamentalismo é, na verdade, um falso conflito – um círculo vicioso e viciado no qual os dois polos pressupõem-se e geram-se mutuamente, um o outro.
O que Max Horkheimer[5] disse sobre o fascismo e o capitalismo lá nos anos 1930s (que os que não querem falar criticamente sobre o capitalismo devem também calar sobre o fascismo) pode aplicar-se ao fundamentalismo de hoje: os que não querem falar criticamente sobre a democracia liberal devem também calar a boca sobre o fundamentalismo religioso.

Reagindo contra caracterizar-se o marxismo como “o Islã do século 20”, Jean-Pierre Taguieff escreveu que o Islã está em vias de mostrar-se como o “marxismo do século 20” para prolongar o violento anticapitalismo do comunismo, depois do declínio do comunismo.

Mas as recentes vicissitudes do fundamentalismo muçulmano confirmam, pode-se dizer, o antigo insight de Walter Benjamin, de que “cada ressurgimento do fascismo dá testemunho de uma revolução fracassada”. O crescimento do fascismo é, em outras palavras, o fracasso da esquerda e, simultaneamente, prova de que subsiste um potencial revolucionário, uma insatisfação, que a esquerda não é capaz de mobilizar. E não se pode dizer exatamente a mesma coisa do hoje chamado “islamo-fascismo”? O surgimento do islamismo radical não é perfeito correlato do desaparecimento da esquerda secular nos países muçulmanos?

Quando o Afeganistão é apresentado como país fundamentalista islamista “típico”, quem ainda lembra que, há 40 anos, foi o país de mais forte tradição secular, incluindo um poderoso Partido Comunista que chegou ao poder no Afeganistão, independente da União Soviética?

Esse é o contexto no qual se tem de compreender os recentes eventos na Bósnia. Numa das fotos dos protestos, veem-se os manifestantes exibindo três bandeiras lado a lado: da Bósnia, da Sérvia e da Croácia, mostrando o desejo de ignorar todas as diferenças étnicas. Para resumir, temos aqui uma rebelião contra elites nacionalistas: o povo da Bósnia afinal compreendeu quem é o seu verdadeiro inimigo: não outros grupos étnicos, mas os seus próprios “representantes” políticos que fingem protegê-los contra os demais. É como se o velho e tantas vezes mal usado lema titoísta[6] da “fraternidade e unidade” das nações iugoslavas ganhasse nova atualidade.

Um dos alvos dos manifestantes era o governo da União Europeia que supervisiona o estado bósnio, forçando a paz entre as três nações e oferecendo considerável ajuda financeira para ajudar no funcionamento do Estado. Pode parecer estranho, porque os objetivos dos manifestantes são, nominalmente, os mesmos objetivos de Bruxelas: prosperidade e o fim das tensões étnicas e da corrupção.

Contudo, o modo como a União Europeia realmente governa a Bósnia cria divisões: a União Europeia só vê, como suas parceiras privilegiadas, as elites nacionalistas, entre as quais faz uma mediação.

O que as explosões na Bósnia confirmam é que ninguém jamais conseguirá superar paixões étnicas impondo a elas uma agenda liberal: o que uniu os manifestantes foi uma mesma radical exigência de justiça.

O passo seguinte e mais difícil será organizar os protestos num novo movimento social que ignore as divisões étnicas; e organizar novos protestos – já imaginaram uma cena, com bósnios e sérvios furiosos, reunidos num comício conjunto, em Sarajevo?

Ainda que os protestos percam gradualmente a força, ainda assim permanecerão como uma fagulha de esperança, como soldados inimigos que se abraçavam nas trincheiras, na primeira guerra mundial. Eventos autenticamente emancipatórios sempre incluem ignorar identidades.

E vale o mesmo para a recente visita de duas representantes do movimento Pussy Riot a New York: num grande show de gala foram apresentadas por Madonna, na presença de Bob Geldof, Richard Gere, etc., toda a gangue dos direitos humanos de sempre. Deveriam ali, isso sim, manifestar solidariedade a Snowden, para mostrar que o Pussy Riot e Snowden são parte do mesmo movimento global. Sem esses gestos que aproximem o que, na nossa experiência ideológica diária, parecem ser coisas incompatíveis (muçulmanos, sérvios e croatas na Bósnia; secularistas turcos e muçulmanos anticapitalistas na Turquia, etc.), os movimentos de protesto sempre serão manipulados por alguma superpotência, em sua luta contra outra.


[2] A citação, atribuída a Mao, é “Há grande caos sob os céus – a situação é excelente” (de http://beijingcream.com/week-in-review/ ) [NTs].




[6] Referência a Josip Broz Tito (sobre ele, ver http://pt.wikipedia.org/wiki/Josip_Broz_Tito) [NTs].

Guardian | Tradução: Vila Vudu

Fonte: http://outraspalavras.net/