O Lenin de Maiakovski: poema-turbilhão
Vladimir
Maiakoviski
Publicada
recentemente no Brasil, obra expõe desejo de superar capitalismo também na
forma poética, apaixonadamente, recusando reduções e utilitarismos do “realismo socialista"
Há cerca de
um ano foi publicado pela primeira vez no Brasil o longo poema Vladimir Ilitch
Lenini, do grande poeta Vladimir
Maiakovski, em boa tradução de Zoia Prestes, feita diretamente do russo. Como
de hábito quando se trata de textos de alta complexidade estética, a recepção
na imprensa conservadora foi apressada e pautada em velhos clichês. Basta que
se faça uma breve incursão por essas leituras simplificadoras para que o leitor
encontre nos críticos uma ânsia por classificar o longo poema entre as
fronteiras do modelo burguês de apreciação literária, ou seja: considerando-o
“didático”, “homenagem” e, é claro, “engajado”. Parece claro que a maioria dos
críticos que emprega esses termos ao ler o longo poema de Maiakovski não só
rebaixa a amplitude político-estética do texto, urdido no difícil tumulto do
tempo revolucionário, como também aproveita para destilar certo veneno cujo fim
é discretamente infamar tanto o autor quanto o seu herói. Já passa da hora de
superar esse tipo de leitura e saudar esta bela publicação que, um século
depois, começa a finalmente apresentar de forma legítima o poeta Maiakovski ao
público brasileiro, que o conhecia de traduções de segunda mão ou que
arbitrariamente criavam uma fantasmagoria maiakoviskiana, capaz de atender
especialmente a outros interesses em jogo no nosso sistema literário.
Como o
próprio título deixa claro, o poema é um longo canto poético-político, em que a
figura central é Lenin (1870-1924), o grande estrategista e líder político da
Rússia revolucionária do início do século XX. Todavia, o vigor, a atualidade e
o interesse do texto não se encontram na reconstituição de passagens da sua
vida. É claro que Lenin é o herói do poema, mas isso é muito diferente de se
dizer que a obra de Maiakovski funciona apenas como uma espécie de biografia,
registro histórico ou louvação do protagonista no processo revolucionário que
ainda estava em curso quando da sua morte. Os fatos da Revolução não aparecem
no poema apenas como documento, mas conformados em uma narrativa de
contradições graves da história do movimento anticapitalista, as quais, por sua
vez, exibem-se e agitam-se no anseio de uma forma que lhes transfigure
esteticamente e lhes dê alguma inteligibilidade realista. Para começar,
portanto, uma abordagem crítica que se pretenda à altura da complexidade desse poema,
é preciso assumi-lo primeiramente como forma poética que problematiza o lugar
da arte, sua função e suas formas num mundo que estava tendencialmente voltado
para a superação das estruturas burguesas, seja no que se refere ao que é
econômico e político, seja no que se refere ao que é estético, ético, sensorial
e moral. O poema poderá, nesses termos, ser tomado como uma grande questão
poética/ontológica e também como o ensaio de sua resposta. Que lugar e que
forma tem/teria a arte num mundo pós-capitalista? Essa é a força de Vladimir
Ilitch Lenin, a qual é preciso saber observar para julgar razoavelmente a sua
eficácia estética.
Primeiramente
deve-se lembrar o altíssimo grau de consciência exibido por Maiakovski acerca
dos limites e potencialidades do ato literário em um contexto de intensa
agitação histórica. Os problemas da expressão estética no poeta russo sempre
tiveram a amplitude da possibilidade de superação do sistema capitalista, ou
seja, a forma poética deveria intuir (talvez descobrir?) a nova língua
literária que seria capaz de traduzir o novo mundo imaginado pelas utopias e
pelas ações políticas. No poema de que tratamos aqui, a dialética
transfiguradora essencial do texto reside na tensão entre a imagem histórica de
Lenin e a de um vigoroso narrador sentimental, o próprio Maiakovski. Sendo
assim, mais do que personagem histórico, este Lenin do poema é um problema
estético-político encarado radicalmente pelo seu narrador. Como nos lembra
Leandro Konderii: “Maiakovski sabia que o artista
revolucionário deve corresponder a uma exigência social, decorrente do seu
compromisso com as forças propulsoras do progresso. Mas sabia, também, que a exigência
social não coincide, necessariamente, com as exigências práticas que são
formuladas em nome dela”. Noutras palavras, Maiakovski não apenas possuía os
meios técnicos para reformular a expressão literária conferindo-lhe lastro
revolucionário, mas também um sagaz e inquieto vigor ideológico, que
possibilitava a ele forçar as fronteiras canônicas da instituição literária,
nos termos que lhe foram atribuídos pela sociedade burguesa em seu movimento de
apropriação deste bem universal. Com Maiakoviski vê-se, pela primeira vez e
radicalmente, o horizonte de superação da arte na sociedade de classes
capitalista.
Um elemento
determinante da arte poética de Maiakovski (diga-se de passagem, nem sempre bem
visto por críticos marxistas de diversos matizes) está na centralidade
expressiva do seu conhecido “pathos de exaltação sentimental”, da sua
“passionalidade”. Pathos este que é exemplarmente configurado nos seus já
famosos versos “A anatomia comigo ficou louca / sou todo coração”. Pois bem:
tal “passionalidade” é um grande filtro ético/estético, que põe o poeta em
salvaguarda de uma construção ideológica imediatizada ou instrumentalizada.
Tudo em Maiakovski, portanto, sofre uma mediação dialeticamente meditativa e
passional. Tal meditação poética não se resolve pela razão instrumental: nem
burguesa, nem pseudo-revolucionária. Sua meditação se resolve no íntimo do
“coração”, de um pathos poético que é capaz de traduzir o mundo sentindo-o como
pessoa comum.
Esse
movimento de estruturação passional da poesia maiakovskiana é fundamental, como
já dissemos, para a configuração inusitada do longo poema Vladimir Ilitch Lenin.
Com ela, Maiakovski apresenta uma concepção poética bastante distinta daquilo
que foi, por exemplo, o âmago do pensamento de André Zdanov, que, como um dos
principais ideólogos de Stalin, sancionou, pela via do espírito de partido, uma
visão reducionista, imediatista e utilitarista da literatura em particular e da
arte em geral no contexto revolucionário. Em fim de contas, tratava-se, tanto
em Maiakovski quanto em Zdanov de encontrar meios de superação das categorias
fundamentais da expressão artística sob a égide do sistema capitalista, tais
como o “formalismo”, a “gratuidade”, o “subjetivismo”, a “tibieza ideológica”.
Se no caso do zdanovismo objetivava-se negar essas categorias como defeitos que
não deveriam estar presentes na pretensa arte revolucionária, no caso de
Maiakovski, tratava-se de tensionar ao máximo as contradições dessas e de algumas
outras das mais consagradas categorias da arte literária construída ao longo de
anos de sedimentação da cultura ocidental. Ou seja, para Maiakovski certamente
a arte de todos os tempos era um patrimônio que precisava ser revolucionado,
não uma fortaleza pertencente à burguesia e que, portanto, deveria ser
destruída. Maiakovski nunca foi um pensador, crítico ou filósofo de grande
estofo, mas é forçoso reconhecer que o princípio da “passionalidade” que guia
suas obras fez com que os riscos instrumentalizadores de alguns matizes da ação
revolucionária fossem afastados de sua obra, a qual termina por se configurar
como um eficiente e dilacerado motocontínuo de pensamento/sentimento sobre a
potência da utopia e a materialidade da força necessária para realizá-la.
Vladimir
Ilitch Lenin é um dos melhores retratos desse esforço de problematização
metalinguística e ação revolucionária via literatura de Maiakovski. Pela sua
amplitude e complexidade, pela multiplicidade de elementos da tradição
literária que estão dentro dele revolucionados, sob a inquieta dialética
firmeza do herói X passionalidade do narrador, ele pode ser lido como um
poema-turbilhão. Como a força épica e lírica disparada pela tormenta que é
morte do grande herói, o poema de Maiakovski vai, vorazmente, arrastando em seu
turbilhão um sem número de matérias histórico/poéticas, ressignificando-as e
dando-lhes novas funções, ao agitá-las numa turbamulta ordenada pela paixão e
pela missão de dar inteligibilidade seja ao sentimento do povo, de que o poeta
é porta-voz, seja aos fatos ligados à biografia de Lenin, dentro do escopo
histórico e semântico da Rússia revolucionária.
Iniciando-se
a narração com a morte de Lenin, deslinda-se, ao longo do extenso poema, uma
dinâmica e multipoética forma que dará vazão a um canto de esclarecimento, de
iluminação clara e consciente, embora não puramente racional, porque, como já
dissemos, será guiada pela “passionalidade” da dor humana e comum gerada pela
perda do herói. Nos seus primeiros versos, o poema estampa: “É hora – / inicio
/ a história de Lenin. / Não porque / não há mais / desgraça, / é hora / porque
/ uma tristeza brusca / virou uma dor / clara e consciente. / É hora, /
novamente / os lemas de Lenin em turbilhão”. Deste turbilhão fazem parte,
sobretudo, os elementos da poética burguesa, reativados, revolucionados,
tensionados ao limite de suas contradições. O leitor verá que o Vladimir Ilitch
Lenin é uma multidão de trejeitos, gêneros e tipos poéticos. Lá estão em
movimento e ressignificados em atiladíssima revolta formal o poema
metalinguístico de trabalho com a palavra-coisa, a poesia-propaganda, o
mergulho mais intimamente lírico, a disposição épica, a narrativa ficcional de
memória histórica, a agitação, a oratória poético política, a análise e a crítica
política etc. Nada disso, entretanto, encerra-se em si mesmo. Nada disso se
basta a si mesmo. Maiakovski decididamente faz as formas tradicionais da
literatura burguesa delirarem de utopia e desejo revolucionário.
Entre os
traços mais importantes desse movimento está problematização em progresso no
longo texto de Maiakovski acerca, por um lado, do chamado do poeta pela
sociedade que se revoluciona e, por outro, da impotência e da pequenez humana
sentida pelo escritor diante dos limites históricos reais da palavra poética. O
narrador exibe-se consciente da necessidade de assunção pelo poeta do mandato
da escrita: “Meu coração pede – / tenho que escrever / pelo dever do mandato”.
Contudo, mais à frente, vê-se que o poeta problematiza a assertividade do mandato,
ao dizer: “Como é pobre / no mundo / a oficina da palavra! / Onde a mais
adequada / pegar?”. Assim, pode-se, por meio desse breve exemplo, perceber que
tudo vai sendo dialeticamente problematizado, revolvido, em meio à missão de
narrar a história de Lenin, do marxismo, da revolução, e também, de alguma
forma, da nova situação da poesia naquele momento agudo da história da
humanidade.
No caso da
figura de Lenin, o poeta procura resgatar a característica de humanidade do
líder político, de modo literariamente muito moderno, isto é: exibindo leis
poéticas desse mesmo trabalho de resgate. Tal humanidade será reiterada
inúmeras vezes no poema, muitas vezes por meio de belíssimas metáforas. É essa
humanidade de Lenin que gera a principal liga de empatia entre o herói e seu
narrador; é o que, por assim dizer, dispara o turbilhão que até aqui se tem
apresentado. Diz o poeta, na cena que retrata o enterro do líder: “Diante de
milhões de olhos, / e dos meus / dois, / apenas caramelos congelados de
lágrimas, / grudados / às bochechas. / Para Deus / as honras oficiais / não são
novidade. / Não! / Hoje / de dor verdadeira / gele, coração.” A “dor
verdadeira”, desentranhada da imagem do protocolar funeral do líder, é também
um dos motores do poema-turbilhão. Essa “dor verdadeira” visa esclarecer ao
leitor a humanidade terrena de Lenin e contrastá-la com a desumanização do
sistema capitalista. Esse é o desejo narrativo do poeta que diz: “O que ele
fez, / que é ele / e de onde – / esse / mais humano dos humanos?”. Trata-se do
“líder / semelhante a nós / – mais simples que o pão, mais direto que os
trilhos”. Dessa forma, o “mais humano dos humanos”, deixa de ser um líder
político instrumentalizado para, no contexto do poema, se transformar no
personagem, a um só tempo, forte e frágil, humano em todos os sentidos, que é o
antípoda do capital. Nesse espírito se articulam dinamicamente a biografia de
Lenin e a genética do capitalismo, que sofre no texto uma transfiguração
personificadora. Diz o poeta, imbuído da sua demanda social e política: “Para
os netos / escrevo / numa folha / o retrato / genético do capitalismo”. Nessa
missão de narrar o capitalismo personificado, a intensidade das imagens é
lancinante: “Apenas engordando, / comendo e dormindo, / o capitalismo inchou /
e flácido ficou. / Flácido / deitou-se / na história a caminho / do mundo, /
como se sua cama fosse. / Não dá para contornar, / nem desviar; / a única saída
– / é explodi-lo!” Parte da tarefa de explodi-lo é reinventar meios e formas
novas de sentir e expressar artisticamente esse sentimento. Este é o intento de
Maiakovski, não apenas em Vladimir Ilitch Lenin, mas em toda a sua trajetória
que culmina com o duro e corajoso suicídio.
Na bela
apresentação que faz do poema, Adalberto Monteiro alerta o leitor brasileiro:
“Em seus poemas, Maiakovski frequentemente se dirige ao futuro, conversa com
gerações de séculos vindouros. Por este e outros motivos, seus adversários
diziam que ele padecia de gigantomania. Os desafetos da atualidade assacam-no:
sua poesia teria sido enterrada no mesmo túmulo onde jaz a URSS. Mas a
autoprofecia vai se confirmando. Sua poesia, como uma seta, a travessa a carne
macia do tempo”. O poeta russo é mais do que nunca atual, com seu lirismo
altissonante, delicado e energicamente engajado.
Estética,
política, poética e pathos são insepráveis neste grande escritor. Não se pode
aquilatar um desses elementos sem se considerar dialeticamente outro, ou
outros. O poema a que o público brasileiro hoje tem acesso começa, pois, a
finalmente recolocar Maiakovski numa situação mais próxima da original e, por
isso, mais verdadeira historicamente. Até hoje a recepção que se teve dele no
Brasil frequentemente esforçou-se por aquilatá-lo quase a fórceps em anódinos
moldes concretistas, desrevolucionando a forma maiakovskiana com uma leitura
pautada por um conceito desenergizado de temporalidade histórica e por uma
concepção de poesia que se baseava, no mais das vezes, em platitudes pedantes
acerca da palavra-coisa. Quando a crítica conservadora brasileira resgata o
slogan maiakovskiano da forma revolucionária, deseja, no fundo, despolitizar
uma poesia que, na verdade, sempre foi política e revolucionária, porque abriu
suas comportas para a imanência do processo social.
Será
preciso revolucionar a leitura que fizemos até aqui do poeta russo. Vladimir
Ilitch Lenin provoca os termos de que dispomos hoje na crítica literária, os
quais parecem não alcançar a possibilidade de descrever a beleza incisiva, dos
versos a seguir, que jamais poderão ser observados unilateralmente, ou
programaticamente: “Sou feliz. / A água da marcha que soa / leva / meu corpo
imponderável. / Eu sei – a partir de agora / e para sempre / em mim / esse
minuto / é o minuto. / Sou feliz, / que sou / a força dessa partícula, / que
são comuns até mesmo as lágrimas dos olhos. / Impossível / com mais força / e
mais pureza comungar / do grande sentimento / chamado – classe!”. A progressão
poético imagética do trecho realiza o magma lírico que mescla indivíduo e
grupo, classe e coletividade. Depois de lermos as palavras do poeta, nada é
mais aquilo que o capitalismo nos ensinou a ser. Todos somos, podemos ser
outros; o Ser o é de outra forma. A poesia de Maiakovski é, sem dúvida, uma
revolução literária, em que já não é possível separar o poético do político, o
gratuito do empenhado. Infelizmente, nossa miopia crítica, acirrada com o mundo
pós-moderno, não nos deixa fruir em toda a sua amplitude o belo desses versos. Vladimir
Ilitch Lenin é um livro-poema para se ler várias vezes, pois a cada nova
leitura tudo se tornará ainda mais claro e mais intenso, como os cem sóis que
habitavam prodigamente os versos de Maiakovski.
i MAIAKOVSKI, Vladimir. Vladimir
Ilitch Lenin : poema. Tradução Zoia Ribeiro Prestes. Apresentação Adalberto
Monteiro. Ilustrações de Mazé Leite. São Paulo: Anita Garibaldi / Fundação
Maurício Grabois, 2012.
Fonte: http://outraspalavras.net/
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