Sobre Sheherazades, Batmans e demônios
Nas últimas semanas dois episódios ocorridos no Rio de Janeiro não saem dos noticiários, dos papos de botequim, das redes sociais, dos jornais de 0,70 centavos: o adolescente negro assaltante que foi “justiçado” por jovens de classe média no Flamengo, que apanhou e foi algemado nu por uma tranca de bicicleta junto a um poste; e a morte do cinegrafista da Rede Bandeirantes de televisão por um rojão lançado por dois jovens “Black blocs”, na manifestação contra o reajuste das passagens de ônibus.
Trata-se de
dois fatos que não guardam semelhança entre si, a não ser pela “odisséica”
cobertura midiática, em seu papel costumeiro de juiz, júri e tribunal,
conjugados num mesmo corpo institucional. Se em relação ao primeiro episódio
vimos distintos setores sociais defenderem o “justiçamento” contra a bandidagem
e clamarem pelo exercício da violência por conta do Estado, que nos
“desprotege”, em se tratando do segundo caso o que estamos presenciando é a
condenação sumária dos jovens envolvidos no ato, antes mesmo de serem apurados
os fatos. Cometeram um assassinato e responderão por isso, mas antes mesmo da
“fala do especialista” da vídeo-esfera (SEMERARO, 2006, p. 142) analisar as
imagens, já estavam sentenciados. Nada de novo no front midiático tupiniquim,
que numa primeira mirada, encontrou seus Nardoni e Richthofen da vez e garantiu
pauta para os próximos dez dias. Todavia, um segundo olhar sobre o ocorrido
mostra que a prisão de Fabio Raposo e Caio Silva de Souza não é apenas mais um
julgamento espetacular dos mass media, na acepção debordiana, mas a “revanche”
que tanto queria o establishment burguês, “alvejado” pela opinião pública com
suas próprias balas de borracha, lançadas à exaustão pela polícia militar em
Pinheirinho ou no Junho Rebelde.
O caso do
“pelourinho do Flamengo”, onde um negro pobre “pagou” por seu crime ao velho
estilo Batman (o herói aristocrata que não mata, mas pune os infratores e
redime aquela sociedade corrupta e desigual) em Gotham City, teve seu ápice
midiático no comentário autoral de Rachel Sheherazade (SBT Brasil, 04/02/2014),
apresentadora do SBT Brasil, que destilou o mais raivoso ódio de classe (assim
como fez em relação aos rolezinhos, organizados por “arruaceiros”), ao
estilo TFP (Tradição, Família e Propriedade), contra o “marginalzinho de ficha
mais suja que pau de galinheiro” e em defesa dos cidadãos “de bem”, lançando a
campanha “Adote um bandido” para os militantes de direitos humanos e a campanha
“Legítima defesa coletiva” para as “vítimas de bem” da indefesa sociedade
civil. O vídeo já tem quase um milhão de visualizações do YouTube (entre
entusiastas e críticos), mas talvez seu “direito de resposta”, no mesmo SBT Jornal de dois
dias depois (06/02), exponha de forma mais crua o conservadorismo atroz de
nossa sociedade, quando a jornalista – apresentada por seu colega de programa
como uma mulher cristã e mãe – diz que é uma ferrenha crítica da violência, que
está ali todo dia “batendo na violência”, defendendo as “pessoas de bem” que
estão “abandonadas à própria sorte” e “desesperadas”. Quem ouve as palavras de
Sheherazade – que em Mil e uma noites sobrevive após ludibriar o sultão por
noites seguidas – sem saber do que se trata pode achar que se refere a algum
jovem da periferia de uma grande cidade, provavelmente negro, provavelmente sem
perspectivas. Só que não! O programa termina dizendo que o que deve prevalecer
sempre é a liberdade de expressão. É o cinismo como forma de ideologia na
manutenção da lei dos “de cima”. O direito de resposta na verdade é o endosso
do agressor, que não apenas reitera o que disse como zomba daqueles que o
criticaram.
“O modo
mais destacado dessa ‘mentira sob o disfarce da verdade’, nos dias atuais,é o
cinismo: com desconcertante franqueza, ‘admite-se tudo’”, mas esse pleno
reconhecimento de nossos interesses não nos impede, de maneira alguma, de
persegui-los; a fórmula do cinismo já não é o clássico enunciado marxista do
‘eles não sabem, mas é o que estão fazendo’; agora, é ‘eles sabem muito bem o
que estão fazendo, mas fazem assim mesmo’.” (ŽIŽEK, 1996, p. 13).
Por sua
vez, o episódio da morte do cinegrafista da Bandeirantes representa mais uma
cruzada midiática contra setores radicalizados da sociedade civil, que desde
junho do ano passado trouxeram para a cena política pautas sociais que, em
outros momentos, passavam ao largo dos noticiários televisivos, com destaque
para o preço das passagens dos transportes que deveriam ser públicos. A morte
de Santiago de Andrade foi a revanche esperada e ensaiada há meses pelo mainstream
da mídia brasileira, ávida por “desmascarar” os Black blocs, tratando-os como
uma organização homogênea, institucionalizada, porém controlada de fora. Após o
rojão ferir fatalmente o funcionário da Band, foi rápida a construção de um
consenso que costurava entre si: asuposta associação dos envolvidos com o
deputado estadual do PSOL-RJ, Marcelo Freixo, opositor ferrenho do governador
Sérgio Cabral, do prefeito Eduardo Paes e da grande mídia; a “ficha suja” de
Fabio e Caio, com passagens pela polícia e participação em outras manifestações
(pasteurizando de forma magistral todas as pessoas que ousam se manifestar de
forma mais incisiva, como por exemplo aquelas que ocupam prédios públicos ou
enfrentam o cerco policial); a defesa de que a nação brasileira e os
brasileiros são pacíficos e que a violência de alguns é esporádica,
injustificável e intolerável, forjando o “mito da não-violência” (CHAUÍ, 2006,
p. 125), que apaga a “realidade das divisões sociais e da luta de classes,
reduzindo sua emergência à situação de meros momentos enlouquecidos da
sociedade” (Ibidem, p. 134).
O nó final
dessa costura ideológica é a recuperação da chamada Teoria dos Dois Demônios,
adaptada ao contexto atual. Muito conhecida de sociedades latino-americanas que
passaram por ditaduras civil-militares no século passado, notadamente a
Argentina, tal concepção representa um “malabarismo retórico” (Vladimir
Safatle, “Dois
demônios”) de quem crê que esquerdae direita cometeram “excessos” e que,
por isso, deixar as coisas no passado seria o melhor a ser feito. De um lado,
um demônio popular, terrorista de esquerda que despertou outro demônio,
militar, terrorista de Estado. Em meio a isso tudo estaria a atemorizada
sociedade civil, inocente e ingênua, que assiste impassível ao drama da
violência (IRAMAIN, 2009-2010, p. 18).
Num
contexto atual, como de praxe, a mídia encena o acontecimento, forjando e
manipulando simulacros do real (CHAUÍ, 2006, p. 18), onde o fato cede lugar à
sua versão, sintonizada com os interesses dos grupos dominantes do país. Os Dois
Demônios retornam com vigor, sob nova roupagem (não deixando coisas no
passado), com os manifestantes – que “precipitam as coisas” – e o Estado, agora
“democrático”, nos dois polos opostos, e a frágil e não-violenta sociedade
civil no meio do tiroteio. Apaga-se dos noticiários a questão da violência como
recurso sempre à mão do chamado Estado de Direito – Estado de Exceção para os
subalternos e paradigma de governo dominante na política contemporânea
(AGAMBEN, 2004, p. 13) –, que salvaguarda a propriedade privada burguesa e
mantém a desigualdade como pressuposto
Na atual
cena política brasileira Sheherazades, Batmans e Demônios estão à solta, em
meio à planejada resposta-revanche dos grandes meios de comunicação à Junho de
2013, colocada na rua no momento oportuno, tendo como alvos personagens reais e
lutas reais, que na “mídia-esfera” aparecem como simulacros, mas no mundo
concreto são ameaças reais à hegemonia que a mídia representa.
REFERÊNCIAS
AGAMBEN,
Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004.
ALIGHIERI,
Dante. A Divina Comédia: Inferno. São Paulo: Editora 34, 2008.
CHAUÍ,
Marilena. Simulacro e poder: uma análise da mídia. São Paulo: Editora Fundação
Perseu Abramo, 2006.
DEBORD,
Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
IRAMAIN,
Demetrio. Una historia de las Madres de Plaza de Mayo (suplemento
coleccionable). Revista Sueños Compartidos. Fundación Madres de Plaza de Mayo.
2009-2010.
ŽIŽEK,
Slavoj. O Espectro da Ideologia. In.:ŽIŽEK, Slavoj. Um mapa da ideologia. Rio
de Janeiro: Contraponto, 1996.
***
Carlos
Eduardo Rebuá é Historiador, doutorando em Educação pela UFF e
professor da UNIGRANRIO. Dele, leia também, Hereges marxistas: similaridades e permanências, sobre
Walter Benjamin e Antonio Gramsci.
Fonte: http://blogdaboitempo.com.br/
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