Pensando um esquema tático. Final da Copa: Capital x Multidão
Agora o
desafio para a autonomia organizada não é apenas conquistar as ruas, mas
controlar o sentido e significado dessa conquista. Por Leo Vinicius
Sim, o
Capital joga em casa, e com juiz a favor.
A intenção
aqui é trazer 20 centavos de contribuição para pensar as lutas de 2014 em torno
do tema “Copa do Mundo”. Pensar de um ponto de vista autonomista, ou socialista
libertário, isto é, a partir do entendimento de que o fortalecimento da
organização autônoma do proletariado (da multidão, se se preferir) e a
criação de novas instituições igualitárias que a acompanham estão no cerne de
toda transformação social desejável.
Partimos da
situação concreta, de hoje. E ela nos diz que, quer os governistas, junto com a
FIFA e empresas patrocinadoras, esperneiem ou não, manifestações ocorrerão;
mobilizadas em maior parte em torno de um sentimento de aversão ao escancarado
favorecimento dos interesses dos lucros sobre as pessoas em função ou com a
desculpa da Copa. Sentimento que deu origem ao slogan “Não Vai Ter Copa” e que
ao mesmo tempo tem sido mobilizado por ele.
Motivos
para alguém de esquerda se insurgir em função da Copa não faltam [1].
Mas
afinal, o que está
em jogo nessa partida entre Capital x Multidão?
O que
podemos conquistar ou deixar de perder?
Partindo do
mais concreto, há a questão das remoções forçadas e de indenizações não
recebidas e mal recebidas por elas. Barrar e se insurgir contra remoções de
hoje significa possivelmente barrar outras que poderiam acontecer amanhã, com
pretextos e interesses similares [2]. Há também o impedimento de
comerciantes trabalharem em um raio em torno dos estádios. Outras questões se
tornam mais difusas ou mais difíceis de serem pautadas com destaque ou de
ganharem um objetivo imediato concreto: as leis de exceção impostas durante a
Copa, a própria violência policial (desmilitarização, fim do uso de armas menos
letais), entre outras. Em parte, isso traz uma certa semelhança com o movimento
altermundista, ou “antiglobalização”, no qual uma série de diferentes
reclamações e bandeiras eram levantadas por serem consequência de uma mesma
política econômica global, a qual os manifestantes enxergavam como origem dos
problemas. A diferença é que o movimento “antiglobalização”, em escala mundial,
juntava grupos organizados de um imenso espectro político e social:
ecologistas, sindicalistas, anarquistas, comunistas, povos tradicionais e
também, embora em número inexpressivo, grupos nacionalistas de direita. Outra e
crucial diferença: os organismos internacionais que eram vistos como símbolos e
gestores da globalização capitalista (OMC, FMI, Banco Mundial, etc.) eram
fechados a disputas de poder, isto é, não estavam no âmbito de um Estado-nação.
A Copa do Mundo, embora seja um evento de uma transnacional (FIFA), tem suas
consequências única e exclusivamente no país-sede, num Estado-nação, no caso o
Brasil. E para qualquer um que esteja vivo não é preciso dizer que os grupos
que disputam o poder do Estado farão da Copa e dos protestos um cavalo de
batalha na disputa pelo governo, num ano de eleições. Isso coloca uma série de
novas variáveis em jogo.
Mas, para
além do objetivo muito concreto ligado às remoções, há algo muito fundamental
em disputa, e que parece que os anticapitalistas não atentaram:
O controle
sobre o produto da nossa atividade
Há uma
única nova lição a ser aprendida do junho de 2013. Que mobilizações
populares desencadeadas pela esquerda, com bandeiras de esquerda, possam ser
reduzidas a uma espécie de estopim por serem transmutadas em seguida em
mobilizações massivas direcionadas pela direita, através dos meios de
comunicação, é um dado novo da luta de classes e que terá que ser levado em
conta desde então. A “mutação” ocorrida agora não é mais uma tática
desconhecida. Ela entrou no rol das possibilidades, para as quais os
anticapitalistas devem estar preparados para lidar ou neutralizar na medida do
possível.
Não há
espaço aqui para se alongar na tática que uma fração da classe burguesa usou
para lidar com as manifestações pela redução da tarifa dos transportes em junho
de 2013. Obviamente não tinham total controle sobre os desdobramentos, mas
foram relativamente bem sucedidos em direcionar por algum tempo as
manifestações e alcançaram um intuito que certamente tentarão repetir nesse
anos de eleições: fazer despencar a aprovação da Dilma. Mesmo que o leitor
dessas linhas ache desprezível quem ganhará as próximas eleições, a questão que
se coloca da perspectiva autonomista é a da disputa pelo controle do produto da
nossa atividade, senão de parte do próprio processo de atividade. Essa direita
é incapaz de iniciar e produzir manifestações com qualquer relevância, mas não
é incapaz de parasitá-las: são empresários pós-fordistas, que já aprenderam faz
tempo a capturar os fluxos de fazer autônomos, pré-constituídos a seus
empreendimentos, e explorá-los economicamente. Agora procuram aplicar o
pós-fordismo, a captura e exploração do impulso autonomista do proletariado (da
multidão), a seus empreendimentos políticos, mesmo que pontuais e
pragmáticos. O que ocorreu após o 13 de junho de 2013 e deve se repetir em
2014 é também um laboratório, não simplesmente de lutas sociais, mas de
desenvolvimento de um modelo de produção ou sua expansão a outras esferas. Em
alguns meios anticapitalistas em que se usa o conceito de multidão costuma-se
exaltá-la como uma potência, mas esquecendo-se de que é essa potência que
empurra o desenvolvimento do modo de produção capitalista, que é essa potência
que tem sua atividade capturada e explorada. Esquecem-se de que a luta entre
capital e trabalho (seja na forma de multidão ou qualquer nome que se dê) é a
luta permanente pelo controle do processo produtivo, da atividade, e de seus
produtos. Esses produtos podem ser materiais como uma placa de chumbo, ou
imateriais como a expressão da indignação coletiva. Não, não é mais apenas
sobre a Copa, é sobre a capacidade de gerir nossas próprias lutas e ter
controle sobre seus resultados!
Podemos
esperar que a tentativa de captura e exploração se dê através da tentativa de
dar o sentido e significado das manifestações, principalmente pela grande
imprensa, mas também inflando-as com sua base social (seja com direitistas
mesmo ou os “coxinhas”) e com “demandas” mais adaptadas a seus interesses [3].
Diante
disso,
O que
fazer?
Se o slogan
“Não Vai Ter Copa” por um lado possui a qualidade indubitável de ter vindo das
ruas e captar um espírito, uma rebeldia e revolta, tornando-se um brand perfeito,
capaz de mobilizar sentimentos latentes de uma parcela da população ou de uma
juventude; por outro lado sua fraqueza está em ser vago, podendo servir com
relativa facilidade a propósitos distintos. Ele mobiliza, mas exatamente para
onde? Contra quem? Pelo que? Não fixa uma direção. Quem duvida pode ver a
ambiguidade explicitada na Operation World Cup que circula em meios virtuais e
pelo ainda mais ambíguo Anonymous. Isso não seria muito problemático se o
contexto em que nos encontramos não fosse pós-junho de 2013. A história não
volta atrás, e a disputa pelo significado das manifestações será e tem sido uma
realidade desde então.
O slogan
completo na verdade é “Se Não Tiver Direitos, Não Vai Ter Copa”. Mas diante de
forças que foram capazes de, em expressiva medida, transformar num período de
tempo uma pauta tão concreta e única, a revogação de um aumento de tarifa do
transporte, em uma quantidade de reclamações difusas e significativamente em
acordo com os interesses pragmáticos de uma fração da burguesia, podemos crer
que nem um slogan que é ao mesmo tempo uma reivindicação concreta como “Tarifa
Zero” impede por si só que os resultados de ações coletivas sejam em alguma
medida capturados e explorados.
Lembrando o
exemplo da Revolta do Buzu, uma questão se colocava para entender o fato do
movimento não ter conquistado a redução da tarifa na ocasião e ter sido
esvaziado após entidades estudantis negociarem outras pautas em nome do
movimento: a falta de articulação daquela multidão politicamente independente e
autônoma, deixando espaços vazios que eram preenchidos por pessoas alheias ao
espírito e desejo da multidão [4]. Mas pensando nas ações em torno da
Copa, a questão vai além da articulação e organização dessa autonomia em uma
potência política que ocupe espaços de fala, negociação, referência. É
preciso estar organizado e articulado suficientemente para ocupar ou, melhor,
constituir espaços de significação. Ambas questões não devem ser separadas, se
entrelaçam numa estratégia de autogestão das lutas e controle dos resultados.
A
importância de constituir organizações de referência vem também da necessidade
de que táticas sejam pensadas de acordo com as movimentações do adversário e da
conjuntura e possam ser minimamente postas em prática. Os Comitês Populares da
Copa, que existem desde 2009, e a Articulação Nacional deles (ANCOP) seriam a
princípio as organizações que deveriam emergir como principal referência. São
certamente as que melhor podem articular as demandas sobre remoções. A
perspectiva das manifestações parece que irá fazer o governo chamar os Comitês
para negociar essas demandas [5]. Mas talvez eles tenham dificuldade de se
tornarem referência a um setor mais amplo que vai às ruas.
A
constituição de organizações de referência, além do trabalho contínuo sobre um
tema, passa também nesse caso por táticas de luta que favoreçam esse
reconhecimento. E nisso devemos lembrar que manifestações de rua são apenas uma
tática, e não a luta ou movimento em si. A previsibilidade além de tudo é uma
fraqueza de qualquer movimento e em qualquer luta. Ocupações de locais
realizadas por grupos menores e organizados podem trazer a visibilidade e a
possibilidade de divulgar uma demanda de forma mais clara e profunda do que as
manifestações de rua têm permitido, as quais tendem a não conseguir ultrapassar
o mote “contra a Copa”, sufocadas pela espetacularização em torno delas.
A constituição
de espaços de significação passa pela organização de uma mídia própria.
Qual, em que formato? Uma? Muitas? Impossível uma pessoa dizer. Isso é parte da
criação e das possibilidades e capacidades do próprio movimento frente a suas
necessidades vistas a partir dos que estão imersos nele. Mas a necessidade já
não é apenas aquela que esteve por trás da criação do Indymedia em relação ao
movimento “antiglobalização” e ao N30 em Seattle, em específico. Não se trata
de apenas produzir, disponibilizar e difundir informação que se contraponha a
uma desqualificação moral do movimento e das manifestações feita pela grande
imprensa, e que ajude a defender os manifestantes da violência policial.
Trata-se de mídia que seja parte do processo de controle dos resultados das
ações, que ajude a produzir o sentido e significado das ações na sociedade.
Se a ideia
é não ter Copa se não houver direitos, é desejável agir no sentido de tornar as
palavras em realidade, isto é, estar preparado para impedi-la. Impedir a
realização da Copa, a essa altura, guarda semelhança de objetivos simbólicos
com a tentativa de impedir a reunião da OMC, em novembro de 1999 em Seattle. É
preciso lembrar que esse bloqueio, razoavelmente bem sucedido, foi fruto, entre
outros fatores, de muita preparação, articulação de ativistas, treinamento e organização,
a partir da formação da Direct Action Network no início daquele ano. A
dificuldade é maior no caso da Copa, no sentido de bloquear completamente o
evento, uma vez que ocorre simultaneamente em várias cidades e diferentes
datas. Mas por certo o impedimento ou mesmo atraso numa única partida causaria
mais do que um impacto simbólico, pois teria impacto econômico sobre as
empresas que lucram com ela. Seria uma inegável demonstração não só de
indignação, mas de capacidade organizativa. Porém, agora o desafio para a
autonomia organizada não é apenas conquistar as ruas, mas controlar o sentido e
significado dessa conquista.
Notas
[1] Ver
por exemplo “No mundo onde cresci, protestar contra violações é ser de
esquerda”, por Igor Ojeda, aqui.
[2] Foi o que o “movimento de ação direta” britânico conseguiu nos anos 1990 em relação ao megaprojeto de construção de estradas. Apesar de não conseguir barrar as estradas em iminente início de construção, fez o governo abortar o programa nacional de construção de estradas como um todo. Ver aqui.
[3] Essas demandas são em geral heterônomas, produzidas por essa própria grande imprensa. Como ouvi alguém dizer durante o junho de 2013, os coxinhas protestavam contra notícias, não contra fatos, contra uma realidade vivida. As pautas vinham dos noticiários de TV: corrupção, PEC 37 …
[4] Essa questão está um pouco melhor elaborada na página 64 e 65 aqui.
[5] Ver aqui.
[2] Foi o que o “movimento de ação direta” britânico conseguiu nos anos 1990 em relação ao megaprojeto de construção de estradas. Apesar de não conseguir barrar as estradas em iminente início de construção, fez o governo abortar o programa nacional de construção de estradas como um todo. Ver aqui.
[3] Essas demandas são em geral heterônomas, produzidas por essa própria grande imprensa. Como ouvi alguém dizer durante o junho de 2013, os coxinhas protestavam contra notícias, não contra fatos, contra uma realidade vivida. As pautas vinham dos noticiários de TV: corrupção, PEC 37 …
[4] Essa questão está um pouco melhor elaborada na página 64 e 65 aqui.
[5] Ver aqui.
Fonte: http://passapalavra.info
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