quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Pensando um esquema tático. Final da Copa: Capital x Multidão – por Leo Vinicius


Pensando um esquema tático. Final da Copa: Capital x Multidão
 
Agora o desafio para a autonomia organizada não é apenas conquistar as ruas, mas controlar o sentido e significado dessa conquista. Por Leo Vinicius

Sim, o Capital joga em casa, e com juiz a favor.
A intenção aqui é trazer 20 centavos de contribuição para pensar as lutas de 2014 em torno do tema “Copa do Mundo”. Pensar de um ponto de vista autonomista, ou socialista libertário, isto é, a partir do entendimento de que o fortalecimento da organização autônoma do proletariado (da multidão, se se preferir) e a criação de novas instituições igualitárias que a acompanham estão no cerne de toda transformação social desejável.

Partimos da situação concreta, de hoje. E ela nos diz que, quer os governistas, junto com a FIFA e empresas patrocinadoras, esperneiem ou não, manifestações ocorrerão; mobilizadas em maior parte em torno de um sentimento de aversão ao escancarado favorecimento dos interesses dos lucros sobre as pessoas em função ou com a desculpa da Copa. Sentimento que deu origem ao slogan “Não Vai Ter Copa” e que ao mesmo tempo tem sido mobilizado por ele.

Motivos para alguém de esquerda se insurgir em função da Copa não faltam [1]. 

Mas afinal, o que está em jogo nessa partida entre Capital x Multidão?
O que podemos conquistar ou deixar de perder?

Partindo do mais concreto, há a questão das remoções forçadas e de indenizações não recebidas e mal recebidas por elas. Barrar e se insurgir contra remoções de hoje significa possivelmente barrar outras que poderiam acontecer amanhã, com pretextos e interesses similares [2]. Há também o impedimento de comerciantes trabalharem em um raio em torno dos estádios. Outras questões se tornam mais difusas ou mais difíceis de serem pautadas com destaque ou de ganharem um objetivo imediato concreto: as leis de exceção impostas durante a Copa, a própria violência policial (desmilitarização, fim do uso de armas menos letais), entre outras. Em parte, isso traz uma certa semelhança com o movimento altermundista, ou “antiglobalização”, no qual uma série de diferentes reclamações e bandeiras eram levantadas por serem consequência de uma mesma política econômica global, a qual os manifestantes enxergavam como origem dos problemas. A diferença é que o movimento “antiglobalização”, em escala mundial, juntava grupos organizados de um imenso espectro político e social: ecologistas, sindicalistas, anarquistas, comunistas, povos tradicionais e também, embora em número inexpressivo, grupos nacionalistas de direita. Outra e crucial diferença: os organismos internacionais que eram vistos como símbolos e gestores da globalização capitalista (OMC, FMI, Banco Mundial, etc.) eram fechados a disputas de poder, isto é, não estavam no âmbito de um Estado-nação. A Copa do Mundo, embora seja um evento de uma transnacional (FIFA), tem suas consequências única e exclusivamente no país-sede, num Estado-nação, no caso o Brasil. E para qualquer um que esteja vivo não é preciso dizer que os grupos que disputam o poder do Estado farão da Copa e dos protestos um cavalo de batalha na disputa pelo governo, num ano de eleições. Isso coloca uma série de novas variáveis em jogo.

Mas, para além do objetivo muito concreto ligado às remoções, há algo muito fundamental em disputa, e que parece que os anticapitalistas não atentaram:

O controle sobre o produto da nossa atividade
Há uma única nova lição a ser aprendida do junho de 2013. Que mobilizações populares desencadeadas pela esquerda, com bandeiras de esquerda, possam ser reduzidas a uma espécie de estopim por serem transmutadas em seguida em mobilizações massivas direcionadas pela direita, através dos meios de comunicação, é um dado novo da luta de classes e que terá que ser levado em conta desde então. A “mutação” ocorrida agora não é mais uma tática desconhecida. Ela entrou no rol das possibilidades, para as quais os anticapitalistas devem estar preparados para lidar ou neutralizar na medida do possível.
Não há espaço aqui para se alongar na tática que uma fração da classe burguesa usou para lidar com as manifestações pela redução da tarifa dos transportes em junho de 2013. Obviamente não tinham total controle sobre os desdobramentos, mas foram relativamente bem sucedidos em direcionar por algum tempo as manifestações e alcançaram um intuito que certamente tentarão repetir nesse anos de eleições: fazer despencar a aprovação da Dilma. Mesmo que o leitor dessas linhas ache desprezível quem ganhará as próximas eleições, a questão que se coloca da perspectiva autonomista é a da disputa pelo controle do produto da nossa atividade, senão de parte do próprio processo de atividade. Essa direita é incapaz de iniciar e produzir manifestações com qualquer relevância, mas não é incapaz de parasitá-las: são empresários pós-fordistas, que já aprenderam faz tempo a capturar os fluxos de fazer autônomos, pré-constituídos a seus empreendimentos, e explorá-los economicamente. Agora procuram aplicar o pós-fordismo, a captura e exploração do impulso autonomista do proletariado (da multidão), a seus empreendimentos políticos, mesmo que pontuais e pragmáticos. O que ocorreu após o 13 de junho de 2013 e deve se repetir em 2014 é também um laboratório, não simplesmente de lutas sociais, mas de desenvolvimento de um modelo de produção ou sua expansão a outras esferas. Em alguns meios anticapitalistas em que se usa o conceito de multidão costuma-se exaltá-la como uma potência, mas esquecendo-se de que é essa potência que empurra o desenvolvimento do modo de produção capitalista, que é essa potência que tem sua atividade capturada e explorada. Esquecem-se de que a luta entre capital e trabalho (seja na forma de multidão ou qualquer nome que se dê) é a luta permanente pelo controle do processo produtivo, da atividade, e de seus produtos. Esses produtos podem ser materiais como uma placa de chumbo, ou imateriais como a expressão da indignação coletiva. Não, não é mais apenas sobre a Copa, é sobre a capacidade de gerir nossas próprias lutas e ter controle sobre seus resultados!

Podemos esperar que a tentativa de captura e exploração se dê através da tentativa de dar o sentido e significado das manifestações, principalmente pela grande imprensa, mas também inflando-as com sua base social (seja com direitistas mesmo ou os “coxinhas”) e com “demandas” mais adaptadas a seus interesses [3].

Diante disso,

O que fazer?
Se o slogan “Não Vai Ter Copa” por um lado possui a qualidade indubitável de ter vindo das ruas e captar um espírito, uma rebeldia e revolta, tornando-se um brand perfeito, capaz de mobilizar sentimentos latentes de uma parcela da população ou de uma juventude; por outro lado sua fraqueza está em ser vago, podendo servir com relativa facilidade a propósitos distintos. Ele mobiliza, mas exatamente para onde? Contra quem? Pelo que? Não fixa uma direção. Quem duvida pode ver a ambiguidade explicitada na Operation World Cup que circula em meios virtuais e pelo ainda mais ambíguo Anonymous. Isso não seria muito problemático se o contexto em que nos encontramos não fosse pós-junho de 2013. A história não volta atrás, e a disputa pelo significado das manifestações será e tem sido uma realidade desde então.
O slogan completo na verdade é “Se Não Tiver Direitos, Não Vai Ter Copa”. Mas diante de forças que foram capazes de, em expressiva medida, transformar num período de tempo uma pauta tão concreta e única, a revogação de um aumento de tarifa do transporte, em uma quantidade de reclamações difusas e significativamente em acordo com os interesses pragmáticos de uma fração da burguesia, podemos crer que nem um slogan que é ao mesmo tempo uma reivindicação concreta como “Tarifa Zero” impede por si só que os resultados de ações coletivas sejam em alguma medida capturados e explorados.

Lembrando o exemplo da Revolta do Buzu, uma questão se colocava para entender o fato do movimento não ter conquistado a redução da tarifa na ocasião e ter sido esvaziado após entidades estudantis negociarem outras pautas em nome do movimento: a falta de articulação daquela multidão politicamente independente e autônoma, deixando espaços vazios que eram preenchidos por pessoas alheias ao espírito e desejo da multidão [4]. Mas pensando nas ações em torno da Copa, a questão vai além da articulação e organização dessa autonomia em uma potência política que ocupe espaços de fala, negociação, referência. É preciso estar organizado e articulado suficientemente para ocupar ou, melhor, constituir espaços de significação. Ambas questões não devem ser separadas, se entrelaçam numa estratégia de autogestão das lutas e controle dos resultados.

A importância de constituir organizações de referência vem também da necessidade de que táticas sejam pensadas de acordo com as movimentações do adversário e da conjuntura e possam ser minimamente postas em prática. Os Comitês Populares da Copa, que existem desde 2009, e a Articulação Nacional deles (ANCOP) seriam a princípio as organizações que deveriam emergir como principal referência. São certamente as que melhor podem articular as demandas sobre remoções. A perspectiva das manifestações parece que irá fazer o governo chamar os Comitês para negociar essas demandas [5]. Mas talvez eles tenham dificuldade de se tornarem referência a um setor mais amplo que vai às ruas.
A constituição de organizações de referência, além do trabalho contínuo sobre um tema, passa também nesse caso por táticas de luta que favoreçam esse reconhecimento. E nisso devemos lembrar que manifestações de rua são apenas uma tática, e não a luta ou movimento em si. A previsibilidade além de tudo é uma fraqueza de qualquer movimento e em qualquer luta. Ocupações de locais realizadas por grupos menores e organizados podem trazer a visibilidade e a possibilidade de divulgar uma demanda de forma mais clara e profunda do que as manifestações de rua têm permitido, as quais tendem a não conseguir ultrapassar o mote “contra a Copa”, sufocadas pela espetacularização em torno delas.

A constituição de espaços de significação passa pela organização de uma mídia própria. Qual, em que formato? Uma? Muitas? Impossível uma pessoa dizer. Isso é parte da criação e das possibilidades e capacidades do próprio movimento frente a suas necessidades vistas a partir dos que estão imersos nele. Mas a necessidade já não é apenas aquela que esteve por trás da criação do Indymedia em relação ao movimento “antiglobalização” e ao N30 em Seattle, em específico. Não se trata de apenas produzir, disponibilizar e difundir informação que se contraponha a uma desqualificação moral do movimento e das manifestações feita pela grande imprensa, e que ajude a defender os manifestantes da violência policial. Trata-se de mídia que seja parte do processo de controle dos resultados das ações, que ajude a produzir o sentido e significado das ações na sociedade.
Se a ideia é não ter Copa se não houver direitos, é desejável agir no sentido de tornar as palavras em realidade, isto é, estar preparado para impedi-la. Impedir a realização da Copa, a essa altura, guarda semelhança de objetivos simbólicos com a tentativa de impedir a reunião da OMC, em novembro de 1999 em Seattle. É preciso lembrar que esse bloqueio, razoavelmente bem sucedido, foi fruto, entre outros fatores, de muita preparação, articulação de ativistas, treinamento e organização, a partir da formação da Direct Action Network no início daquele ano. A dificuldade é maior no caso da Copa, no sentido de bloquear completamente o evento, uma vez que ocorre simultaneamente em várias cidades e diferentes datas. Mas por certo o impedimento ou mesmo atraso numa única partida causaria mais do que um impacto simbólico, pois teria impacto econômico sobre as empresas que lucram com ela. Seria uma inegável demonstração não só de indignação, mas de capacidade organizativa. Porém, agora o desafio para a autonomia organizada não é apenas conquistar as ruas, mas controlar o sentido e significado dessa conquista.

Notas
[1] Ver por exemplo “No mundo onde cresci, protestar contra violações é ser de esquerda”, por Igor Ojeda, aqui.
[2] Foi o que o “movimento de ação direta” britânico conseguiu nos anos 1990 em relação ao megaprojeto de construção de estradas. Apesar de não conseguir barrar as estradas em iminente início de construção, fez o governo abortar o programa nacional de construção de estradas como um todo. Ver aqui.
[3] Essas demandas são em geral heterônomas, produzidas por essa própria grande imprensa. Como ouvi alguém dizer durante o junho de 2013, os coxinhas protestavam contra notícias, não contra fatos, contra uma realidade vivida. As pautas vinham dos noticiários de TV: corrupção, PEC 37 …
[4] Essa questão está um pouco melhor elaborada na página 64 e 65 aqui.
[5] Ver aqui.

Fonte: http://passapalavra.info

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