Um novo balanço de Junho
Michael Hardt pergunta, em livro sobre revoltas de 2013: “Como
movimentos atuais, organizados na forma da multidão, podem tornar-se duradouros
e efetivos contra poderes dominantes?”
Inspirado por três dias de barricadas e insurreição nas ruas de Paris,
em junho de 1848, Karl Marx escreveu que o “leão proletário” tinha se levantado
e rugido. O proletariado parisiense revoltoso foi rapidamente vencido, mas a
sua face sombria e ameaçadora chegara à cena da história. Nas “jornadas de
junho” brasileiras, em 2013, a multidão mostrou a sua face de modo semelhante.
Embora não tenha vencido imediatamente, este leão também pode anunciar notícias
sobre nosso futuro.
Dizer que as revoltas surgidas nas ruas de Rio e São, em 2013, foram
organizadas na forma da multidão significa dizer que, – em vez de dirigidas
pelo partido ou uma direção centralizada ou mesmo um comitê de liderança acima
das massas, – os movimentos foram auto-organizados, conectados horizontalmente
pelo território social. Os movimentos não foram (e não se esforçam por ser)
unificados e homogêneos, mas sim encontraram meios adequados para exprimir suas
diferenças e antagonismos internos – e apesar de (ou por causa de) suas
diferenças, descobriram maneiras de troca comum e cooperação, gerando uma série
de demandas e perspectivas agrupadas na luta. Tal multidão não é desorganizada
e não se forma espontaneamente, ao invés disso, ela requer uma atividade
constante e intensa de organização.
A multidão no Brasil – como na Turquia, Espanha e em todos os lugares
do ciclo de lutas que se alonga desde 2011 – exige uma “democracia real”,
contra a democracia fantoche que nos vendem o tempo todo. É, de fato, uma ideia
bonita. Mas estariam as lutas políticas da multidão, apesar de explodir
ruidosamente em cena, condenadas a ser fugazes e efêmeras, inefetivas contra os
poderes dominantes? A falta de unidade e liderança central minaria qualquer
consequência política duradoura para as lutas da multidão? Seria a vida dessa
multidão “sem liderança” cheia de barulho e de fúria, mas sem significar nada?
Ou, ao contrário, seria a força da multidão como o “leão proletário” de Marx:
embora temporariamente subjugado e aparentemente domado, uma força selvagem que
só vai ser verdadeiramente reconhecida no futuro?
Antes de abordar essas questões, devemos enfatizar duas condições
políticas e sociais contemporâneas que proveem o terreno sobre o que surge as
revoltas da multidão.
Primeiro, as revoltas no Brasil, – assim como os acampamentos e
ocupações pelo mundo, nos últimos anos, – estão baseadas na afirmação do comum
– uma afirmação, especialmente, de tornar comum a metrópole ela própria. O
acampamento no Parque Gezi, em Istambul, é exemplar para a exigência pela
criação do comum. A fagulha dos protestos turcos se deu com a resistência ao plano
neoliberal de privatizar o espaço público – no caso, a construção de um
shopping center imitando antigos quartéis otomanos bem no parque central da
cidade. Os movimentos, por um lado, se opuseram à privatização. Mas, por outro
lado, também se opuseram ao controle público (quer dizer, estatal) do espaço
urbano. No curso da luta, o movimento tornou o parque e a circunvizinha Praça
Taksim um espaço comum, – aberto a todos e organizado segundo mecanismos de
governança democrática. Esse desejo por um comum através de Istambul e além é
uma maneira de exprimir o direito à metrópole. No Brasil, as fagulhas foram
diferentes – a tarifa do transporte, os projetos de obras para a Copa do Mundo
etc – mas reverberam o mesmo projeto de tornar o espaço urbano comum, reivindicando
o direito à metrópole, para fazer nossa a cidade, como um território comum. O
desejo pelo comum, especialmente em formas metropolitanas, é a cola que mantém
unidos os movimentos da multidão.
Segundo, as revoltas da multidão no Brasil e em toda parte revelaram o
poder de uma força de trabalho emergente. Gente jovem extremamente inteligente
e, às vezes, altamente instruída, muitos com grande habilidade no uso da
internet, se destacaram nas lutas. Alguns observadores, que se fiam em noções
ultrapassadas, ligando a inteligência e as competências tecnológicas somente às
classes altas, caracterizaram-nos como “classe média”. Mas, de fato, essa
população mais frequentemente é empregada no mundo do trabalho de maneira
precária. Essas pessoas são, a despeito disso, extraordinariamente produtivas,
criativas e procriam novas formas de vida social – o que pode ser chamado de
“produção biopolítica”. Com efeito, a lacuna entre as extraordinárias
capacidades produtivas desses jovens e as oportunidades miseráveis oferecidas a
eles, na sociedade contemporânea, tem sido uma das forças primárias das
revoltas nos anos recentes. Temos que reconhecê-las como revoltas do trabalho,
noutras palavras, revoltas do trabalho talvez de um novo tipo.
As duas condições – capacidades produtivas da multidão e desejo
generalizado de fazer o espaço metropolitano comum – dão dicas dos poderes,
consistência e durabilidade com que podemos definir o desdobramento das lutas
presentes. Fornecem uma base sólida, para projetos de desenvolvimento das
revoltas em processos que possam verdadeiramente transformar a sociedade
contemporânea.
Mas elas não dão, ainda, uma resposta às questões políticas que
coloquei acima. Como os movimentos atuais, organizados na forma da multidão,
vão se tornar duradouros e efetivos contra os poderes dominantes? Pode ser
também muito cedo para dar uma resposta adequada. Mas eu penso que seja útil
guiar-se por duas proposições que Mario Tronti colocou no começo dos anos 1960,
quando os movimentos de trabalhadores industriais na Itália estavam, de um modo
semelhante, num estágio emergente da luta.
Em primeiro lugar, em termos gerais, Tronti propôs que a resistência é
primeira em relação ao poder e, especificamente, que as revoltas da classe
trabalhadora precedem e prefiguram os desenvolvimentos subsequentes do capital.
As revoltas da multidão inteligente, noutras palavras, constituem uma força
criativa que, mesmo se não seja imediata ou diretamente vitoriosa, determinará
nos próximos anos os modos e eixos do desenvolvimento social. Esta proposição manda
que se concentre nos poderes, na inteligência, e na criatividade da multidão em
luta.
Disto, segue a segunda proposição, que ajuda mais claramente a abordar
o nosso dilema político corrente. A política moderna (incluindo a tradição
comunista) coloca a organização política como uma dialética entre a
espontaneidade das massas e a direção dos líderes, por meio do que os
movimentos (junto com suas demandas econômicas) exprimem interesses parciais e
operam no nível da tática, enquanto os líderes políticos exprimem o interesse
geral e são responsáveis pela estratégia. Nós chegamos num momento, contudo,
Tronti propõe, em que devemos inverter a relação: daqui por diante, movimentos
= estratégia, enquanto liderança = tática. Noutras palavras, os movimentos hoje
são capazes eles próprios de formular e ditar a estratégia política, enquanto
estruturas de liderança (junto com o próprio partido) devam ser usadas como
matéria para a tática. Isto não consiste, no entanto, na visão de movimentos
“sem liderança” – e muito menos uma afirmação da espontaneidade – mas, em vez
disso: por um lado, a reivindicação das capacidades estratégicas coerentes dos
movimentos para abordar efetivamente assuntos gerais políticos e sociais e, por
outro lado, a proposta de usar (e descartar) as estruturas de liderança segundo
as necessidades presentes e cambiantes da luta.
Parece-me que os movimentos já estejam quase na posição de cumprir a
primeira metade do desafio. Eles já possuem – através da construção do espaço
metropolitano como comum, por exemplo, e através das expressões da produção
biopolítica – a capacidade de gerar uma visão política estratégica, geral,
duradoura. Muito menos desenvolvida é a capacidade de gerar e operar estruturas
de liderança de um modo tático. Tais estruturas temporárias de liderança devem
criar contrapoderes potentes, mas sem se calcificar ou ameaçar tomar o
controle; elas devem permanecer permanentemente subordinadas ao controle
democrático e à vontade dos movimentos. Muito trabalho deve ser feito, mas a
inversão de estratégia e tática fornecem um quadro útil para entender alguns
dos desafios do futuro e também reconhecer a importância do que já está
acontecendo – porque afinal tanto já foi realizado desde junho!
Talvez algum dia, no futuro, os senhores da ordem atual terão de olhar
pra trás e lamentar aqueles dias malditos de junho, quando o leão rugiu e a
multidão no Brasil mostrou a sua verdadeira face.
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* O lançamento da coletânea de 25 artigos, divididos em cinco partes (Ruas, Redes, Afetos, Conceitos e Metrópoles), que se debruçam sobre as várias facetas das manifestações iniciadas no Junho “maldito” de 2013, cuja polifonia continuar a ressoar, contará com a presença de: Giuseppe Cocco (Professor titular da UFRJ, e organizador) Bernardo Gutiérrez (Posperiodista, (r)escritor y enREDa digital) Pablo Ortellado (Professor da USP e ativista), Marina Mattar (ativista do Comitê Popular da Copa 2014 em SP), Hugo Albuquerque (advogado, blogueiro, mestrando em Direito pela PUC-SP, Uninomade-SP), Jean Tible (Professor de Relações Internacionais Fundação Santo André, Uninomade-SP), Renata Gomes (professora universitária, Uninomade-SP), Pedro Dotto (jurista, mestrando em Filosofia pela PUC-SP).
* O lançamento da coletânea de 25 artigos, divididos em cinco partes (Ruas, Redes, Afetos, Conceitos e Metrópoles), que se debruçam sobre as várias facetas das manifestações iniciadas no Junho “maldito” de 2013, cuja polifonia continuar a ressoar, contará com a presença de: Giuseppe Cocco (Professor titular da UFRJ, e organizador) Bernardo Gutiérrez (Posperiodista, (r)escritor y enREDa digital) Pablo Ortellado (Professor da USP e ativista), Marina Mattar (ativista do Comitê Popular da Copa 2014 em SP), Hugo Albuquerque (advogado, blogueiro, mestrando em Direito pela PUC-SP, Uninomade-SP), Jean Tible (Professor de Relações Internacionais Fundação Santo André, Uninomade-SP), Renata Gomes (professora universitária, Uninomade-SP), Pedro Dotto (jurista, mestrando em Filosofia pela PUC-SP).
Fonte: http://outraspalavras.net/
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