Vigiar, punir e exibir!
Novos casos de linchamento relembram:
transformar violência em espetáculo é uma forma de mascarar a
brutalidade oculta que permeia sociedade
As pessoas que amarram seres humanos em postes ou os
imobilizam com travas de bicicleta – cenas que se repetem de diferentes
maneiras pelo Brasil, assim como os linchamentos – têm as mesmas motivações
daqueles que pregaram Cristo na cruz. Não há diferenças, por mais cristãos que
os contemporâneos imaginem ser. Salvo a distância no tempo, são atos com um
mesmo propósito, o de exibir a punição para servir de exemplo.
São os mesmos que queimaram entre 100 mil e 500 mil mulheres
nas fogueiras da Inquisição Católica, na Europa, acusadas de bruxaria (há quem
fale em 9 milhões).
Não diferem dos que enforcaram Tiradentes, o esquartejaram e
penduraram sua cabeça em Vila Rica e pedaços de seu corpo nos lugares em que
fizera seus discursos revolucionários.
Para que os exemplos não frutifiquem, é preciso sempre uma dura
lição!
São os mesmos que enforcaram ou decapitaram com machados ou
guilhotinas milhares de seres humanos em praças públicas. Ou os torturaram com
os métodos mais cruéis já inventados pela mente humana, diante de grandes
plateias. A crueldade precisa de espectadores. E não são poucos, ontem como
hoje, aqueles que se regozijam com esses atos.
Na Revolução Francesa, na Europa da Idade Média, em vários
lugares e épocas, o povo comparecia às execuções em praça pública com o mesmo
entusiasmo de quem vai a uma festa popular. Era um espetáculo
“familiar” em que até as crianças estavam presentes. Lá como cá, a aceitação da
pena aplicada pelos algozes sempre foi enorme.
Por isso, não importa o grau de violência perpetrado, em
todos esses casos, mais do que punir, o objetivo sempre foi o de exibir a
punição à sociedade com o intuito de desencorajar, de amedrontar pelo terror,
de inibir atos semelhantes.
Não bastou condenar Jesus à pena de morte, era preciso
mostrá-lo pregado à cruz, para que o exemplo pudesse intimidar quem ousasse
seguir o mesmo caminho. Como podem concluir, o método tem suas falhas… Os
cristãos se espalharam pelo mundo. Junto a Cristo estavam, também pregados a
cruzes, dois ladrões. Não muito diferentes desses que hoje são punidos de modo
violento pela sociedade, seja pela tortura, pela mutilação ou pela prisão em
cadeias superlotadas, piores que as masmorras medievais.
A moderna sociedade brasileira pouco se difere das de épocas
tenebrosas ao permitir castigos cruéis aos apenados. A única diferença é que,
atualmente, não há no aparato político-jurídico quem os justifique, mas é certo
que pouco se faz para impedir que a tortura seja método usual e corriqueiro em
delegacias do país, para obtenção de informações e como instrumento de poder.
Para os “homens e mulheres de bem”, como boa parte se autoidentifica, não basta
privar o sentenciado da liberdade, é preciso infligir castigos cruéis. E, se
possível, a pena capital: “bandido bom é bandido morto”. (E depois
vão à missa, ao culto, às orações, para pedir paz e um lugar reservado no
céu…).
Cerca de 55 mil pessoas são assassinadas anualmente no
Brasil. A maioria, 39 mil, são negros. Para os pesquisadores, o racismo e as
condições econômicas e sociais são as principais causas.
A pena de morte, na cruz, na fogueira, na cadeira elétrica,
na forca, na guilhotina, por injeção ou pelas balas da PM – não importa o
método – nunca funcionou para deter nenhum tipo de violência. E muito menos
para calar ideias e ideais. Mas serve para o júbilo dos que assistem e para
aqueles que assumem, por alguns momentos, o papel de carrasco.
Segundo Priscila Lessa (“A tortura no Ocidente: atrocidade
cultural ou exercício do poder”, disponível aqui), o carrasco tinha uma posição de status no
Antigo Regime, na França, entre os séculos XVI e XVIII, e era uma profissão bem
remunerada e hereditária. “A arte do ofício da tortura e da execução passava,
por tradição, de pai para filho. O jovem carrasco tinha sua iniciação desde
muito pequeno, aos cinco ou seis anos, quando já estava apto a ajudar o pai em
pequenos castigos, como banhar o acusado em óleo quente ou queimar-lhe a sola
dos pés.”
Os filhos desses jovens e adultos que atualmente se deliciam
em fazer justiça com as próprias mãos também já estão aptos a aprender o
ofício? Aprenderão, desde cedo, como tratar adolescentes e jovens envolvidos em
furtos e assaltos? Afinal, quem aprende mais com quem? Quem pratica eventual
ato ilegal ou violento aprende a não fazê-lo mais depois de espancamento,
tortura e prisão num poste, ou o aprendizado é maior para aqueles dispostos a
ingressar nessa cruzada por justiçamento, que, sem demora, corre o
risco de “sentenciar” pequenos “marginais” à morte, amarrados em postes?
Indivíduos são estimulados desde cedo pela ideologia
autoritária, pelos telejornais e programas de TV especializados em exibir
violências de todos os tipos, menos aquelas cometidas pelos donos do poder.
Afinal, também não é violência o modelo de sociedade onde 0,7% de seus
habitantes detêm 41% de toda a riqueza mundial? E que leva milhões à morte? E
empurra milhares ao crime? No caso brasileiro, não é uma violência a mesma
sociedade ostentar o sexto maior PIB e a quarta maior desigualdade social do
planeta? Por que não ocorre aos “justiceiros” amarrar aos postes os
responsáveis por tamanha crueldade contra toda a população – ela, classe média,
incluída? Tão próxima de um dia se juntar aos que estão mais abaixo?
O aparato de controle da escola, dos meios de comunicação,
das igrejas, das tradições familiares, do Estado, ou seja, toda uma ideologia
que se aprende desde o nascimento, tem justamente essa função de manter a
maioria da população na ignorância sobre quem, de fato, são os seus principais
verdugos. Quem são os maiores responsáveis pela inexistência de políticas
públicas que poderiam evitar a maior parte das brutalidades cotidianas? Boa
parte dos cidadãos, sem acesso à informação de qualidade, a uma boa formação
humanística, só consegue enxergar como inimigo direto, o “marginal”
que pratica vários delitos.
E contra ele descarrega toda a sua torta ideia de justiça,
deixa-se assombrar por vontades arcaicas que o colocam a um passo da barbárie.
Séculos, milênios de civilização permitiram ao ser humano construir obras
monumentais e desenvolver tecnologias próximas da ficção, mas não o afastaram
muito das emoções mais primitivas, de raiva, ódio, vingança, egoísmo, medo e
crueldade.
Da cruz ao poste, Estado e cidadãos, numa relação dialética
que se retroalimenta, mantêm o modelo ineficaz para conter a violência: vigiar,
punir e exibir.
Imagem: Katerina Apostolakou
Fonte: http://outraspalavras.net
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