Iraque, em chamas, sacudirá o Oriente Médio?
Civis fogem de Mosul, terceira maior cidade
iraquiana, conquistada pelo ISIS. Doze anos após invasão norte-americana,
pesadelo do país parece não ter fim
Ameaça do ultra-fundamentalismo islâmico pode suscitar
aliança surpreendente entre Irã e Arábia Saudita, que transformaria geopolítica
da região
Um movimento jihadista, denominado Estado Islâmico no Iraque
e na Síria (Islamic State in Iraq and Syria, ou ISIS, em inglês), acaba de
obter uma vitória impressionante e arrasadora ao capturar Mosul, terceira maior
cidade do Iraque, ao norte do país. Suas forças prosseguiram para o sul, em
direção a Bagdá, e tomaram Tikrit, cidade natal de Saddam Hussein. O exército
iraquiano parece ter desabado, tendo inclusive cedido Kirkuk aos curdos. O ISIS
também aprisionou diplomatas e caminhoneiros turcos. Ele agora controla
efetivamente um grande pedaço do Norte e do Oeste do Iraque, bem como uma zona
contígua no Nordeste da Síria. Comentaristas têm rotulado esta zona
transfronteiriça de Jihadistão. O ISIS tenta restabelecer um califado numa área
tão grande quanto possível, com base numa versão particularmente estrita da lei
islâmica, a sharia.
O choque e o medo que os sucessos deste movimento têm
provocado podem levar a grandes realinhamentos geopolíticos no Oriente Médio.
Geopolítica é uma arena de frequentes surpresas, na qual conhecidos
antagonistas repentinamente reconciliam-se e transformam sua relação naquilo
que os franceses chamam de frères ennemis, inimigos fraternos. O exemplo mais
famoso do último meio século foi a viagem de Richard Nixon à China para
reunir-se com Mao Tsé Tung, uma viagem que serviu fundamentalmente para rever
os alinhamentos dentro do sistema-mundo moderno e desde então serve de apoio à
relação China-Estados Unidos.
Há tempos, a mídia global enfatiza a profunda hostilidade
existente entre a Arábia Saudita e o Irã. Uma reconciliação parecia improvável.
Mas, considerando-se que nos últimos meses tem havido encontros secretos entre
os dois países, pode-se perguntar se uma surpreendente inversão geopolítica não
é iminente.
Sempre que essas reviravoltas ocorrem, a questão a ser
respondida é o que os dois lados ganham com isso. É necessário que haja
interesses comuns que superem as bases conhecidas de hostilidade. Comecemos
pondo de lado um argumento dos analistas para explicar o antagonismo. Trata-se
do fato de que o governo do Irã é controlado por imãs xiitas e a Arábia
Saudita, por uma monarquia sunita. Isso é verdade, naturalmente. Mas
lembremo-nos de que, até 1979, Irã (sob o governo do Xá) e Arábia Saudita (sob
a mesma monarquia sunita de hoje) foram aliados geopolíticos próximos, e
trabalharam juntos na Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP),
em todas as questões relacionadas ao preço de petróleo – uma preocupação
central na economia de ambos os países. Só a partir de 1979 o Irã mudou sua
política e teve início o antagonismo público entre os dois, mas só então.
O ponto fundamental da disputa pública entre Arábia Saudita
e Irã foi a competição pelo domínio geopolítico na região. O que poderá mudar
isso agora é precisamente o levante do ISIS, que representa grave ameaça a
ambos os Estados. O interesse comum aos regimes da Arábia Saudita e do Irã é a
necessidade de uma relativa estabilidade dentro de seus estados e na região
como um todo.
Claro que ambos os regimes são assaltados por divisões
internas entre elementos “liberalizantes” da classe média urbana e defensores
de uma versão estrita e conservadora do Islamismo tradicional. Mas a ameaça que
o ISIS representa para ambos os grupos, em ambos os países, poderia levá-los a
aquietar outros tipos de luta. Existem atualmente lutas entre diversas forças,
que não a do movimento ISIS, acontecendo na Síria, Líbano, Iraque, Bahrein,
Iêmen e outros lugares.
Há, além disso, outros elementos pressionando por esse tipo
de reconciliação. Ambos os regimes compartilham certa consternação a respeito das
intervenções, incertas porém contínuas, dos Estados Unidos e países europeus em
sua região. Os sauditas perderam a fé na confiabilidade de alianças passadas, e
estão chegando mais perto da visão iraniana de que o Ocidente deveria permitir
que as forças regionais resolvessem suas próprias diferenças. Ambos os regimes
estão também descontentes com o papel constante e um tanto imprevisível do
Qatar na região. E estão descontentes com os impasses que impedem a criação de
um Estado Palestino significativo. Ambos os regimes lançam um olhar atento
sobre o regime militar secular agora estabelecido no Egito. E, finalmente, os
dois querem ver algum tipo de resolução política dos conflitos no Afeganistão.
É uma longa lista de interesses comuns. Em síntese, eles têm
mais em comum do que os analistas externos frequentemente acreditam. Além
disso, se chegarem a firmar um acordo histórico, o novo arranjo pode atrair um
apoio considerável – antes de tudo da Turquia, mas também, em seguida, dos
curdos, do Magreb, da Jordânia, do Paquistão e da Índia, da Rússia e da China,
e até mesmo de dentro do Afeganistão. Claro, isso é especulação, mas não
especulação ociosa. A realidade é que os regimes, tanto da Arábia Saudita como
do Irã, estão preocupados com sua sobrevivência em meio à crescente
desintegração do Oriente Médio. Manter a tendência atual provavelmente não os
ajudará a sobreviver. Eles podem avaliar que é hora de mudar de rumo.
Tradução: Inês Castilho
Fonte: http://outraspalavras.net/
Nenhum comentário:
Postar um comentário