SOBRE O SILÊNCIO OU MANIFESTO PELA VOZ
Por muitos
dias, eu optei por permanecer calada. Talvez numa tentativa de parecer madura
(como se o silêncio fosse reflexo de maturidade) ou evitando que mais feridas
fossem abertas, eu escolhi, nesse último mês, por vivenciar o inferno em que
fui colocada com declarações breves e abstratas e conversas pessoais
cautelosas. Mas se tem uma coisa que eu descobri nesse mês é que a maior dor
que poderiam me causar era o meu silenciamento, o meu apagamento por ser
mulher, jovem, “elo fraco” de toda relação de poder. Eu decidi portanto
recuperar minha voz. Esse texto é um apelo a não só o meu direito de resposta,
mas o meu direito a existir e me manter de pé enquanto mulher.
Eu nunca vi
necessidade de esconder meus posicionamentos. Seja sobre o meu feminismo ou
minhas preferências políticas, sempre fui muito firme e verdadeira com o que
acredito. Mantive sempre a consciência de que minha voz era importante e que,
junto com muitas outras vozes, seriamos fortes. Exatamente por isso, nunca vi
necessidade de me esconder. Decidi fazer Direito baseada nessa minha ideia de
que a união de vozes e forças poderia mudar a quantidade brutal de situações
hediondas que o sistema apresenta.
Dentro da
Faculdade de Direito da UERJ, acabei encontrando um professor que possui
postura claramente liberal. Ele também nunca fez questão de esconder suas
preferências políticas, mesmo no exercício de sua função. Apesar de ser meu
primeiro ano na faculdade, passei alguns muitos anos no colégio durante os
ensinos fundamental e médio e tive professores militares, conservadores,
cristãos ferrenhos. Embates aconteciam, mas nunca ninguém se sentiu ofendido ou
depreciado pelas suas preferências ideológicas. O debate, quando feito de
maneira saudável, pode sim ser enriquecedor. Para minha surpresa, isso não
aconteceu no ambiente universitário.
Ouvindo
Bernardo Santoro se referir aos médicos cubanos como “escravos cubanos”, a Marx
como “velho barbudo do mal”; explicar o conceito de demanda dizendo que ele era
um “exímio ordenhador pois produzia muito leitinho” (sic) e que o “nazismo era
um movimento de esquerda”, decidi por me afastar das aulas e tentar acompanhar
o conteúdo por livros, gravações, grupos de estudo… Já ciente do meu
posicionamento político e percebendo minha ausência, o professor chegou a
indagar algumas vezes, durante suas aulas: “onde está a aluna marxista?”
No dia 15
de maio deste ano, Bernardo postou em sua página do Facebook, de maneira
pública, um post sobre o feminismo. Usando o argumento de que se tratava de uma
“brincadeira”, o docente escarneceu da luta feminista e das mulheres de maneira
grosseira e agressiva. A publicação alcançou muitas visualizações, inclusive de
grupos e coletivos feministas que a consideraram particularmente grave, em se
tratando de um professor, como foi o caso do Coletivo de Mulheres da UFRJ,
universidade em que Bernardo também leciona.
A partir do
episódio, o Coletivo de Mulheres da UFRJ escreveu uma nota de repúdio à
publicação do professor, publicada no dia 27 de maio na página do próprio
Coletivo, chegando rapidamente ao seu conhecimento.
Foi o
estopim. Fazendo suposições, o professor começou a me acusar pela redação da
nota de repúdio e a justificou como fruto de sua “relação conflituosa” comigo,
se mostrando incapaz de perceber quão problemático é escarnecer, de maneira
pública, de um movimento de luta como o feminismo.
Fui então
ameaçada de processo. Primeiro com indiretas por comentários, onde meu nome não
era citado. Alguns dias se passaram com uma tensão se formando, tanto no meio
virtual quanto nos corredores da minha faculdade. Já se tornava difícil andar
sem ser questionada sobre o assunto.
Veio então,
dias depois, uma mensagem privada do próprio Bernardo. A mensagem me
surpreendeu por não só contar com o aviso sobre o “processo criminal por
difamação” que o professor abriria contra mim, mas por um pedido do mesmo para
que nos encontrássemos na secretaria da faculdade para que eu me desligasse da
minha turma, pois o professor não tinha interesse em continuar dando aula para
alguém que processaria.
Nesse
ponto, meu emocional já não era dos melhores. Já não conseguia me concentrar
nas aulas, chorava com uma certa frequência quando pensava em ir pra faculdade
e essa mensagem do professor serviu para me desestabilizar mais ainda. Procurei
o Centro Acadêmico da minha faculdade com muitas dúvidas sobre como agir. Foi
decidido então levar o assunto até o Conselho Departamental que aconteceria
dali alguns dias.
No
Conselho, mesmo com os repetidos informes de que não se tratava de um tribunal
de exceção, Bernardo agiu como se fosse um julgamento. Preparou uma verdadeira
defesa que foi lida de maneira teatral por mais de quarenta minutos. Conversas
e posts privados meus foram expostos numa tentativa de deslegitimar minha
postura. Publicações minhas sobre a militância feminista e textos sobre minhas
preferências políticas foram lidos pelo professor, manipulando o conteúdo e me
expondo de maneira covarde e cruel. Dizendo-se perseguido por mim, uma aluna do
primeiro período, Bernardo esqueceu-se que dentro do vínculo aluno/professor há
uma clara relação de poder onde o aluno é obviamente o elo mais fraco.
Eu,
enquanto aluna, mulher, jovem, não possuo instrumentos para perseguir um
professor.
O Conselho, por fim, decidiu pela abertura de uma sindicância para apurar a postura antipedagógica de Bernardo. Não aceitando a abertura da sindicância, o professor, durante o próprio Conselho, comunicou que iria se exonerar e deixou a sala.
O Conselho, por fim, decidiu pela abertura de uma sindicância para apurar a postura antipedagógica de Bernardo. Não aceitando a abertura da sindicância, o professor, durante o próprio Conselho, comunicou que iria se exonerar e deixou a sala.
Foi
repetido incansavelmente que a questão para a abertura da sindicância não era
ideológica, mas sim sobre a postura dele como docente. Bernardo, ao que parece,
não entendeu.
No dia
seguinte, saiu uma reportagem no jornal O Globo sobre a questão. O professor
declara que eu sempre fui uma “influência negativa para a turma”. Alguns dias
depois, a cereja do bolo: seu amigo pessoal, Rodrigo Constantino, publicou, em
seu blog na Revista Veja, uma reportagem onde eu era completamente difamada e
exposta sem nenhum aviso prévio sobre a citação do meu nome. A reportagem por
si só já era deprimente, mas o que ela gerou foi ainda mais violento.
Comecei a
receber mensagens ameaçadoras que passavam desde xingamentos como “vadia caluniadora”
até ameaças de “estupro corretivo”. Meu e-mail pessoal foi hackeado e meu
perfil do facebook suspenso.
A situação
atual parece estável, mas só parece. Ontem, no meu novo perfil do facebook,
recebi mais uma mensagem de um homem desconhecido dizendo que eu deveria ser
estuprada. Não, eu não deveria. Nem eu nem nenhuma outra mulher do planeta
deveria ser estuprada, seja lá qual for o contexto. Nada nesse mundo justifica
um estupro ou serve de motivação para tal.
Decidi quebrar o silêncio, romper com essa postura conformista e empoderar minha voz. É preciso que as pessoas tenham noção da tensão social que vivemos onde as relações de opressão estão cada vez mais escancaradas e violentas.
Em todo
esse desenrolar, eu me vi em muitos momentos me odiando. Me odiando por ser
mulher, me odiando por um dia ter dado valor à minha voz. Me vi procurando
esconderijos, me arrependendo de ter entrado na faculdade de Direito, de ter
acreditado na minha força. Me detestei, senti asco de mim. Mas eu não sou
assim. Eu sou mulher. Já nasci sentindo sobre mim o peso da opressão, do
machismo, do medo frequente de ser violada e violentada. Eu sou forte, está na
minha essência ter força. E é com essa força que eu escrevo esse texto.
Estejamos
fortes e unidos. A situação não tende a ficar mais mansa ou fácil. Nós
precisamos estar juntos. É essa união que vai criar rede de amor e uma barreira
contra essas investidas violentas dos fascistas que nos cercam. Foi essa rede
de amor e apoio que me manteve sã durante esse mês e é essa rede que vai nos
manter vivos quando o sistema ruir. Porque esse sistema está, definitivamente,
fadado ao fracasso.
Abrace e
empodere sua voz.
Maria Clara Bubna
Rio de Janeiro, junho de 2014.
Rio de Janeiro, junho de 2014.
Fonte: http:
www.diariodocentrodomundo.com.br
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